Foi, talvez, uma das últimas vezes que se viu o Pedro alegre daquele jeito. Escancarou o seu sorriso no justo momento em que retirava o nariz redondo e vermelho, tentando se desvencilhar do fino elástico preso no emaranhado dos seus cabelos encaracolados, os quais denunciavam os primeiros fios brancos. O clown já havia cumprido a sua parte, agora era a vez dele se divertir. Juntou-se aos convidados e, então, saiu cantando e dançando pelo salão.
Quando se encontraram pela primeira vez, há muitos anos, lá no banco da praça de esportes, nem seria preciso que ele estivesse em pé para que se percebesse o estado de embriaguez em que se encontrava. Ofereceu a garrafa para que o novo amigo compartilhasse do seu prazer. Não haveria como recusar àquele convite; o outro aceitou e tomou um gole bem demorado da cachaça e, logo a seguir, tirou um cigarro do maço, que estava no bolso da camisa. Antes que acendesse o isqueiro, Pedro dirigiu-se a ele, num tom de indiscutível aquiescência, de aprovação:
- Sabia que estava faltando alguma coisa! (Com a voz já bem arrastada).
Deixando parte de um cigarro para fora do maço, o companheiro retribuiu a gentileza oferecendo-o àquele sujeito surgido do meio da noite e da praça, tão espontâneo. A seguir, perguntou:
Deixando parte de um cigarro para fora do maço, o companheiro retribuiu a gentileza oferecendo-o àquele sujeito surgido do meio da noite e da praça, tão espontâneo. A seguir, perguntou:
- Você é daqui?
- Não faz diferença... Já vivi em tantos lugares...
Pedro tinha aquele lugar apenas como uma referência na sua vida. Já havia rodado mundo afora.
Talvez o que mais tivesse impressionado a pequena aniversariante foi quando ele retirou do fundo (falso) de uma caixa de papelão que carregava consigo, em meio a algumas brincadeiras, um livro de história infantil, cujo personagem – um astronauta de primeira viagem – encontrava-se, sozinho, num outro planeta, muito distante, pouco maior do que o seu tamanho. Foi um momento de magia, quando, retirando, vagarosamente, o seu braço direito, trouxe na mão o livro, embrulhado para presente, com uma bela dedicatória do seu clown. O gesto lembrou aquele mesmo que ele teve – de pura sinceridade - ao oferecer a cachaça lá na praça.
Pedro mal conseguiu acabar de fumar o cigarro e logo se foi estirando, de papo pro ar, na extensão do banco, onde antes estava sentado. A garrafa de cachaça, que já estava vazia, ficou jogada no canteiro, logo ali, atrás do banco. O amigo achou melhor deixá-lo descansar e, sem perdê-lo de vista, atravessou a rua, foi até ao bar pegar mais uma bebida e ficou por perto. De repente, levantou-se, sabendo muito bem onde estava, deu tchau e foi-se embora em direção à sua casa.
Os adultos eram em maior número – como em quase todos os aniversários de criança – e estavam mais admirados e perplexos com aquela figura do que toda a criançada. Foram, aos poucos, fechando o círculo ao redor da aniversariante e de seus pequenos convidados, os quais acompanhavam atentos toda a movimentação e perguntavam tudo sobre a vida do clown. Ele até mostrou uma fotografia da sua namorada, que trazia na carteira; a estampa de uma personagem conhecida de todos através da televisão. Ninguém, pelo menos a garotada, duvidou. Vez que outra comia um salgadinho ou algum doce que eram oferecidos sobre as mesas e um pouco de refrigerante, o que deixava visível que o clown era como eles, real. Assim, as crianças iam ficando familiarizadas com ele. Os adultos é que ainda se mostravam um tanto desconfiados:
- Que estranho tipo é este que circula livremente por todos os cantos do salão sem a menor cerimônia ou formalidade?
Ao mesmo tempo em que deixava transparecer certa ingenuidade, não escondia que se aproveitava da cumplicidade da criançada para comportar-se daquela maneira, podendo-se até pensar, irresponsável. Só o nariz é que era de bêbado: até ali, ele só havia bebido refrigerante, comido alguns doces e salgadinhos. O clown, assim, dominava o espaço, movimentando-se com perfeita desenvoltura. Pedro se valia de todas as técnicas e exercícios que por tanto tempo havia desenvolvido junto ao seu grupo lá do teatro, além de sua passagem por uma infinidade de palcos; apresentações de rua e, ainda, as suas participações no cinema.
Naturalmente que aquele banco da praça, a partir dali, passou a ser o local de encontro dos dois. Quando tiravam para visitar a cidade, seria bem provável que lá encontrassem a companhia um do outro. Vez que outra eram ilustres fregueses do bar da Iracema; eles e o pai de Pedro.
Por algum tempo, chegaram até a morar juntos no apartamento do irmão do Pedro, lá na Capital. Pedro vivia às voltas com tanto ensaio do seu grupo de teatro e, também, com a bebida, com a qual já havia se habituado. Foi por essa época que o seu amigo cismou de escrever um livreto, resolvendo fazer o seu lançamento no meio da rua; mais precisamente na esquina mais conhecida e mais democrática da cidade e, depois, no domingo, foi expor essa sua publicação num brique, que funcionava num grande parque, próximo ao lugar onde estavam morando. Representando o personagem do seu livro, para chamar a atenção, recortou-o de uma folha grossa de isopor; a figura estava assentada sobre um pedestal, também feito de isopor. No brique, conseguiu vender somente um exemplar do pequeno livro, apesar do baixo preço. Ao se aproximar o final da feira resolveu distribuir, gratuitamente, todos os exemplares do seu primeiro trabalho literário a quem por ali passasse. A figura representada no recorte de isopor ofereceu como presente à menina de seis ou sete anos que estava em companhia dos seus pais, artesãos, os quais, também, tentavam vender os seus trabalhos, próximos ao local onde o “escritor” expunha o seu livro. A menina, pelo brilho dos seus olhos, não poderia esconder a alegria pelo fato de poder levar para casa o leão, o qual, possivelmente, iria juntá-lo aos seus brinquedos.
- O senhor tem certeza de que não quer mais o seu leãozinho?
- Sim. Agora, ele é seu.
Além daquela caixa de papelão, o clown carregava consigo uma série de outros objetos: um xale de crochê de duas cores, já bem surrado; de papelão, grosso e firme, um cone, daqueles que servem como suporte para as linhas usadas nos teares. No meio desse cone, um barbante amarrado e outras bugigangas que ele, parece, nem chegou a usá-las todas durante a sua aparição. Era convincente em seus gestos e o desempenho através de pantomimas, ao encostar o olho direito no lado que tinha o orifício menor do cone e, ao mesmo tempo rodando a ponta do pedaço de barbante, transformava-o numa manivela de verdade. Aquele gesto era para “dar corda” na sua filmadora improvisada que, ao apontá-la, principalmente em direção aos adultos, sugerindo o movimento de uma panorâmica, como se diz no cinema, todos ensaiavam uma pose, na feição de que, verdadeiramente, estivessem sendo filmados. Mexia e remexia de forma misteriosa, com o olhar fixo e arregalado, quase revelador, no interior da caixa de papelão, provocando um enorme suspense na plateia que, àquela altura, só tinha olhos para ele. Pelo que se viu mais tarde, não tinha nada mais lá dentro, além daquilo que ele já havia usado nos números que havia apresentado.
Somente ele e o amigo lá da praça, o pai da aniversariante sabiam. Ficou combinado entre eles que o clown do Pedro entraria no meio da festa, de surpresa e, na forma mais natural possível, por ela passearia o seu personagem; depois de certo tempo, sairia da mesma forma, rua afora. Mas ele preferiu alterar o roteiro. Quis mostrar que o clown era uma figura ideal, sugerindo que, na realidade, poderíamos ser melhores se todos habitassem o universo das crianças e dos clowns que, segundo ele acreditava, seria o mesmo.
Quando chegou à porta do salão onde transcorria a festa, todos pararam surpreendidos pela aparição daquela criatura tão doce. Mesmo com o nariz vermelho de um bêbado qualquer. Pedro assim o fazia somente para experimentar uma ponta, que fosse, da liberdade de ser o que realmente era.
Quase no final da festa podia-se notar a menina que comemorava os seus sete anos, andando, já sonolenta, entre os últimos convidados, vestindo parte do figurino do clown. O casaco preto, espécie de casaca, tinha um girassol preso à lapela, que a pequena deixava arrastar pelo chão a parte de trás, mais comprida; o chapéu, também preto, parecendo uma peça emprestada de Chaplin.
28.11.2010 - Pra Mariana, aos 23;
lembranças dos seus 7 anos.
lembranças dos seus 7 anos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário