Nos últimos dias, dois golpes mortais praticamente pulverizaram a pretensão do presidente do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes de convencer seus pares a usurparem do Executivo a prerrogativa de decidir sobre a concessão ou não de refúgio.
O primeiro foi a advertência do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) ao STF, no sentido de que, tomando uma decisão discrepante da orientação internacionalmente adotada, abriria um precedente perigosíssimo: o de que países discordantes do desfecho de outros casos igualmente finalizados viessem a reapresentar o pedido de estradição, agora às Cortes Supremas das nações que concederam o refúgio. Na prática, a instituição do refúgio seria debilitada em muito.
A Folha de S. Paulo simplesmente deixou de noticiar o envio desse documento do Acnur ao Supremo, bem como a manifestação do presidente do Comitê Nacional para Refugiados Luiz Paulo Barreto, opondo-se a uma eventual apropriação pelo STF da prerrogativa de resolver os casos de refúgio: "Nem sempre o Judiciário tem condições de avaliar todos os detalhes de um processo de refúgio. P. ex., no caso do Sudão, da Eritreia, da República Democrática do Congo, o Supremo tem condições de saber que neste momento e nesses países há perseguição? Talvez não, porque o Supremo não é órgão especializado para dar refúgio".
Mas, o pior (para a Folha, a Carta Capital e outros veículos da imprensa brasileira que serviram como caixa de ressonância das pressões italianas contra o governo brasileiro) viria em seguida: o procurador-geral da República Antonio Fernando de Souza encaminhou parecer ao STF reiterando a recomendação de que seja extinto o processo de extradição contra Cesare Battisti sem julgamento de mérito, com sua consequente libertação.
O motivo é o que eu e todos os cidadãos com o mínimo de conhecimentos jurídicos vimos repisando há meses: o ministro da Justiça concedeu status de refugiado a Battisti e as decisões anteriores do próprio STF sempre foram no sentido de que tal benefício impede o prosseguimento de extradições.
Mas, o procurador-geral foi além: ainda que não prevaleça este entendimento, o Supremo deve decidir pela improcedência do mandado de segurança apresentado pelo governo italiano contra a decisão de Tarso Genro, pois somente pessoas e entes de caráter privado podem entrar com mandados de segurança, faltando legitimidade ao governo italiano para utilizar essa via, já que se constitui numa pessoa jurídica de direito público internacional.
Como, desta vez, a notícia era importante demais para ser sonegada de seus leitores, a Folha a publicou -- da forma mais negativa e distorcida possível.
Já no título colocou que "novo advogado de terrorista italiano apela a jurisprudência", conseguindo embutir duas falácias em apenas oito palavras, provavelmente um recorde digno de figurar no Guiness.
É discutível que Cesare Battisti haja sido terrorista na década de 1970 e incontestável que, desde então, não passou de um perseguido político sem nenhum envolvimento com ações violentas. Que direito a Folha tem de qualificar alguém pelo que porventura tenha sido 30 anos atrás e não pelo que é na atualidade (escritor)?
Trata-se, claro, de uma jogada manipulatória para insuflar preconceitos em seus leitores, tentando fazê-los crer que Battisti seria uma espécie de Bin Laden.
E, ao dizer que o novo advogado de Battisti apela a jurisprudência, a Folha insinua ser uma filigrana jurídica a que estaria recorrendo como tábua de salvação, por falta de munição melhor.
Na verdade, foram três os memoriais que o advogado Luís Roberto Barroso protocolou em 05/05/2009 no STF:
- o primeiro sobre fatos já constante dos autos, como os de que Battisti já havia sido julgado anos antes, sem sequer tido sido acusado dos homicídios pelos quais acabou por ser condenado; o de que o segundo julgamento na Itália fundou-se apenas em depoimento obtido em programa de delação premiada; e o de que, afora os homicídios que lhe foram indevidamente imputados, Battisti foi condenado por uma série de crimes políticos puros;
- o segundo demonstrando que a concessão do refúgio é válida, já que a competência para sua prática é do Poder Executivo e o ato foi devidamente fundamentado; e
- o terceiro enunciando as razões pelas quais o pedido de extradição não poderia ser deferido, mesmo que o refúgio não houvesse sido concedido.
Pior ainda foi a nada sutil tentativa de apresentar o procurador-geral da República como incoerente, para desacreditar seu último e importantíssimo documento: "Em parecer ao enviado ao STF nesta semana, o procurador-geral - que antes tinha se manifestado pela extradição - considerou legítimo o refúgio assinado por Tarso".
ISTO NÃO PASSA DE UMA MENTIRA DESCARADA! O parecer anterior de Antonio Fernando de Souza, em 26/01/2009, foi no mesmíssimo sentido, opinando que o processo de extradição deveria ser extinto e arquivado, pois Battisti conquistara status de refugiado e o STF já concluíra que esse benefício impede o prosseguimento de extradições.
Daquela vez, o procurador-geral apenas incluíra a ressalva de que, se o Supremo optasse por desconsiderar a Lei do Refúgio e a jurisprudência já estabelecida, decidindo apreciar o mérito da questão, ele era favorável à extradição.
Trocando em miúdos: ele discordava da decisão do ministro da Justiça, mas recomendou que fosse seguida, como sempre acontece nesses casos.
A Folha está ultrapassando todos os limites da ética jornalística.
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