Um Futuro sem Eric Hobsbawm
Carlos Alberto
Lungarzo
Professor (r) UNICAMP, SP, Br.
2 de outubro
de 2012
Não é possível dizer que a morte de uma pessoa de 95 anos, em
pleno estado de lucidez e produtividade, seja uma crueldade do destino. O
historiador marxista Eric John Ernest
Hobsbawm (1917-2012), nascido numa família judia do Egito e grande símbolo da
intelectualidade da Grã Bretanha, viveu uma vida emocionante. A sociedade
inglesa hesitou em reconhecer o talento de um dos mais brilhantes inimigos dos
sistemas em que se baseou o florescimento britânico: o capitalismo e o
imperialismo. Só em 1970, com 53 anos, foi nomeado full professor, um cargo que merecia desde duas décadas antes. Como
ele mesmo disse, o macartismo britânico era um “macartismo brando”: “ele não te
bota na rua, mas também não te permite avançar”.
Eric Hobsbawn é o paradigma do intelectual que aproveitou bem a
vida. Sua morte priva ao mundo de uma aguda inteligência, de uma erudição
racional e científica e de uma mentalidade popular e simples que colocou os
fatos obscurecidos pela petulância da academia tradicional numa linguagem
limpa, lúcida e acessível aos grandes grupos. Aliás, ele descobriu fatos que
nunca tinham sido percebidos, e estabeleceu relações que nenhum outro
historiador (mesmo marxista) havia reconhecido antes.
De fato, pode ser considerado o primeiro historiador do século 20,
que abordou com critério científico (e não apenas partidário, como Lenin ou
Stalin) a realidade histórica da luta de classes. Este campo foi aberto por
Marx e Engels, mas depois foi obscurecido pela banalização da historiografia
nobiliária ou militarista, que centra seu estudo em “heróis” e “próceres”.
Deve ter-se em conta que muitos intelectuais marxistas de verdadeiro
peso, como Antonio Gramsci e György Lukács, elaboraram teorias que foram
originais, mas tinham uma forte motivação prática na militância. Eles queriam
construir ferramentas conceituais para o triunfo de suas causas, mas talvez não
houvessem estudado com a necessária profundidade os fenômenos dos quais essa
vitória dependia.
A Escola de Frankfurt, a grande criadora do nexo entre a temática
clássica do marxismo e a análise da subjetividade humana, teve algumas
contribuições capitais representadas por Herbert Marcuse, Erich Fromm e Wilhelm
Reich. Sem eles, seria impossível entender a motivação psicológica de fatos
cruciais do século 20, como o nazismo, o fascismo, o racismo e, em geral, a
brutalização das massas e a construção dos fetiches religiosos. Eles
descobriram que a causa da crueldade e a barbárie era a repressão do traço mais
emancipador dos humanos: a sexualidade.
Neste sentido, a obra conjunta da Escola de Frankfurt teve muito maior
impacto na luta pela liberdade que o trabalho de Hobsbawm. Mas a Escola não
quis ou não pôde dotar suas descobertas de rigor científico, preferindo manter
seus valiosos achados no nível de intuição e da heurística.
Trabalhando num plano menos ambicioso, o historiador anglo-egípcio
consegue harmonizar vários fatores da pesquisa e da exposição sócio histórica,
que não eram integrados com esse nível de coerência desde os clássicos
trabalhos historiográficos de Marx e Engels. Compare, por exemplo, A Era do Capital, de Hobsbawn com os estudos históricos dos fundadores
do marxismo na mesma época. (Uma fonte para esta tarefa pode ser a coletânea Marx-Engels, Geschichte und Politik, ed. Fisher)
Basicamente, os três principais fatores foram:
(a) Informação histórica
relevante, inteligentemente escolhida, cuidadosamente justificada,
rigorosamente descrita e verificada. (b) Análise profunda das consequências
desse saber histórico para abordar o presente. (c) Extrema clareza
de sua exposição, que, como aconteceu com Marx, Engels e Kropotkin, transformava
conhecimentos profundos em matéria acessível para os leitores mais simples.
Se nos cingirmos à qualidade científica, à clareza didática e à capacidade
de inserir as descobertas na perspectiva histórica, Hobsbawn pode ser comparado
apenas com poucos pesquisadores marxistas nas ciências humanas. Por exemplo, com os economistas Ernest Mandel
e Oskar Lange, os cientistas sociais Leo Huberman, Paul Baran e Paul M. Sweezy,
o sociólogo Thomas Bottomore, o historiador Perry Anderson e alguns outros. Mas,
ele conseguiu fazer um deciframento muito amplo dos fenômenos históricos dos
séculos 19 e 20, enquanto os outros colegas desenvolveram pesquisas mais
técnicas e circunscritas.
Em outros aspectos de sua atividade, Hobsbawm há sido criticado
por marxistas independentes e por liberais de esquerda, por sua filiação ao
Partido Comunista Britânico e sua permanência nele, apesar de todas as
atrocidades stalinistas. Mas, em realidade, sua posição neste ponto é confusa.
Ele criticou a invasão da URSS à Hungria em 1956 e à Tchecoslováquia
em 1967, mas, diferentemente da enorme maioria dos intelectuais europeus, não
foi capaz de romper com o partido. Possivelmente (como milhões de outras
pessoas de sua geração) sofresse do feroz trauma deixado pelo nazismo, e achava
que a União Soviética devia ser admirada como um símbolo da resistência.
Hobsbawm deve ser considerado como um dos maiores aplicadores dos
critérios científicos e historiográficos marxistas na análise da realidade
social dos séculos 19 e 20, incluindo o estudo dos primitivos grupos
revolucionários espontâneos descritos com comovedora beleza em Primitive Rebels.
Entretanto, seu posicionamento sobre os sacrifícios massivos da
sociedade para atingir um nível mais alto de desenvolvimento histórico (como a
luta semi-suicida de milhões de russos para proteger seu sistema social dos
nazistas) é ambíguo. Por um lado, ele parece justificar o sacrifício individual
em prol de uma estrutura abstrata e genérica como o “estado socialista”, em
oposição, nesse sentido, ao humanismo marxista da Escola de Frankfurt e do
próprio Marx da juventude. Por outro, o fracasso do “socialismo real” o afundou
na decepção e na necessidade de revisar suas propostas.
No entanto, o grande historiador não deve ser julgado como ideólogo
nem como militante, papeis nos quais não teve destaque nem pretendeu ter. Mas
devemos lembrar que o estudo histórico é um processo essencial para construir
um projeto racional e humano de sociedade. Aí, nas descobertas de novos fatos,
na percepção de conexões entre fenômenos históricos diversos e na capacidade de
interpretá-los de maneira clara e objetiva, aí está o mérito do velho Eric. Não podemos
pedir mais dele.
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