Blasfêmia: Crime Impossível
Carlos
Alberto Lungarzo
Prof. Tit. (r) Univ. Est. Campinas,
SP, Br.
21 de
outubro de 2012
O código penal brasileiro, como os códigos de outros países,
define o crime impossível. Este se encontra em seu artigo 17:
Não se pune a tentativa [de crime] quando, por ineficácia
absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível
consumar-se o crime.
Por exemplo, são crimes impossíveis:
1) assassinar um cadáver;
2) roubar-se a si mesmo;
3) produzir lesões com um beijo a distância;
4) pretender enganar uma árvore, e assim
em diante.
Não menos
impossível que este é o crime de blasfêmia, por conta do qual,
muitas pessoas são presas, torturadas e assassinadas em países orientais, e
algumas outras sofrem penas de prisão e multa, incluso nos países ocidentais,
considerados “civilizados” e “democráticos”.
Há dois
casos terríveis que aconteceram há algumas semanas, e que representam, por um
lado, a barbárie de pretender punir um crime impossível e, por outro lado, a
insanidade de gerar uma onda vandalismo com numerosos feridos e até mortos.
O primeiro é
o caso de Rimsha Masih, uma adolescente paquistanesa acusada de “ofender”
o Al Qur’ãn. (Vide) O outro é o da reação demencial de
bandas de fanáticos de diversos países, que protestaram por causa de um filme que
“ofenderia” o profeta Maomé. (Vide). Este último caso não merece
especial comentário, na minha opinião.
Estes
exemplos se referem a “ofensas” de figuras ou objetos ditos “sagrados”
venerados pela fé islâmica, mas também
existem casos em que estas punições impossíveis se aplicam em outros credos,
como o católico. O fato de que as condenações por blasfêmia sejam menores nos
países cristãos, deve-se apenas a um acaso, e não ao fato de que a teocracia ocidental seja menos cruel que a
oriental. Simplesmente, uma parte importante de países europeus conseguiu
libertar-se (parcialmente) da
teocracia no século 19, enquanto a maioria dos orientais não conseguiu.
O Caso de Rimsha Masih
Uma jovem
paquistanesa pertencente à pequena comunidade cristã, chamada Rimsha (ou Riftah) Masih, foi detida
em Agosto desse ano pela polícia por uma suposta ofensa contra o dito “livro
sagrado” do Islã, o Al Qur’ãn. O estado de abandono em que vive a enorme
maioria de miseráveis do Paquistão é tão grande que não foi possível determinar
sequer a idade da menina, pois ela não está registrada, oscilando as
estimativas entre 11, 14 e 16 anos. Sabe-se que ela é doente mental, mas se
desconhece a natureza exata da doença, supondo alguns que seja Síndrome de Down.
Rimsha foi
encontrada com um livro queimado, cuja destruição talvez tenha sido o resultado
da tendência ao fogo de algumas pessoas com disfunções mentais. Dentro desse
livro, foram encontradas algumas páginas do livro “sagrado”. Encontrar estas
folhas queimadas produziu uma bárbara e insana reação de um grupo de adultos
que a acusavam de blasfêmia (ofensa
aos símbolos sagrados, que no caso do islamismo é Al Qur’ãn), e se preparavam
para seu linchamento.
Segundo
disse a polícia no primeiro momento, ela foi detida para evitar que fosse
linchada por essas hordas de fanáticos religiosos, que exigiam que se aplicasse
contra a ele a pena de morte. Esta
punição, repudiada na Europa, incluso para crimes gravíssimos, é comum nas
teocracias para punir as “ofensas” contra os símbolos ditos sagrados. A policia
aduziu que a queria proteger. Mas a jovem foi confinada numa prisão de alta
segurança, que é um local um pouco exótico para proteger alguém.
O caso
produziu uma fortíssima reação da opinião esclarecida mundial, mas encontrou
pouca repercussão nos governos que se beneficiam de suas relações diplomáticas
com o bárbaro estado. Os americanos, que tiram proveito da subserviência
paquistanesa, apenas protestaram simbolicamente, e só seis senadores enviaram
notas de repúdio a Islamabad.
O Papa se
pronunciou, não por sentimento humanitário, mas porque o ataque contra a menina
significava ameaçar a pequena comunidade cristã do Paquistão. Como diz a música
de Violeta Parra, o santo padre estava preocupado por sua “pomba”.
As Nações
Unidas protestaram com a pouca energia possível numa organização decadente, que
não consegue nem garantir a neutralidade nuclear de Oriente Médio. Mas, de
qualquer maneira, diversas agências internacionais e, sobretudo, numerosas
organizações de direitos humanos, se manifestaram com bastante indignação. Como
de hábito em questões de direitos humanos, o Brasil esteve “prudente”. Para que
brigar com os algozes paquistaneses por causa de uma menina doente e pobre?
Afinal, pode ser que Islamadab se interesse pelo pré-sal e até ajude com a
sempre sonhada bomba atômica tupiniquim.
Entre
diversas vocês respeitáveis, ouviu-se, como em outras épocas, a do governo
socialista da França:
França há “exigido às autoridades
paquistanesas libertar esta jovem”, e há reafirmado que “a simples existência do crime
de blasfêmia viola liberdades fundamentais, como a liberdade de religião e de
crença, e a liberdade expressão.” [Grifo meu] (vide)
Finalmente, Rimsha foi solta e só nos últimos dias os
tribunais paquistaneses a “absolveram” numa primeira instância, algo que é
totalmente absurdo, porque não se absolve a alguém que nunca cometeu nenhum
crime.
Entretanto, a história não acaba aqui, porque o “julgamento”
definitivo já foi adiado várias vezes.
Pior ainda: Rimsha não foi solta porque os carrascos tivessem
sido iluminados por uma mínima faísca de humanidade... Não! Ela foi absolvida
por uma razão tonta: o “crime” de blasfêmia foi cometido por um sacerdote
paquistanês (um imã), que colocou entre as páginas queimadas pela menina
algumas folhas do Al Qu’rãm.
Ele queria culpar a
comunidade cristã da região de Rawalpindi para causar sua expulsão do lugar.
Mas, se
Rimsha tivesse realmente queimado aquelas folhas, talvez ela teria ficado presa
ou teria sido executada... no meio ao cinismo das potências ocidentais que
falam de democracia, liberdade, direitos humanos e outras palavras nobres cujos
correspondentes factuais desprezam.
Finalmente,
em 18 de outubro, o ministro para a harmonia nacional Paul Bhatti prometeu que
a menina e sua família seguiriam sobre a proteção do governo. Pode parecer
inacreditável, mas o mais alto tribunal que julga o caso ainda não se
manifestou, e ADIOU SEU VEREDICTO PARA 14 DE NOVEMBRO.
Lamentavelmente,
a militância internacional contra esta atrocidade parece estar esgotada e não
tem podido prover uma solução drástica ao problema. É natural que a luta seja
tão árdua que quase ninguém resiste em permanente estado de protesto. Mas isto deve
abrir, junto com o caso recente de Malala (a menina que foi ferida a tiros por
assistir à escola, também em Paquistão), para que a minoria que possui alguma
honestidade na ONU, proponha algumas medidas.
A punição
por blasfémia deve ser considerada pelo Tribunal Penal Internacional como crime
de lesa humanidade, e o conceito de liberdade religiosa deve ser relativizado.
Se isso não aconteceu ainda é porque as grandes religiões do planeta movem
trilhões de dólares em todo tipo de investimento (desde imóveis até armas e
petróleo), embora também gastem muito na proteção jurídica de pedófilos.
Blasfêmia, Injúria Religiosa e Ódio Religioso
Estes três
conceitos não devem ser confundidos. Uma coisa é a injúria religiosa
contra um indivíduo ou uma comunidade. Isto pode oscilar de um insulto pessoal
que merece repúdio moral, mas está sujeito ao direito privado, até uma injúria
forte que coloca a quem a recebe numa situação de humilhação pública, constituindo, portanto, uma violação a seus
direitos humanos.
Ao insultar
uma pessoa por ser cristão, judeu, muçulmano, budista, umbandista, etc., a
vítima está sofrendo uma ferida moral que consiste em desprezar seu valor
humano, por considera-lo crente ou respeitoso numa fé ou seita que o injuriador
repudia. Este insulto pode ser pessoal ou de grupo, e sua gravidade dependerá
das circunstâncias em que foi proferida, da forma em que o ato do insulto tomou
estado público, das consequências psicológicas ou morais para essa pessoa.
Tanto o
valor da injúria como o tamanho da punição dependerá, em grande medida, na
maneira em que a “vítima” se sente afetada. Como toda crença pacífica merece inicialmente respeito, também um ateu
poderia se ofender se fosse injuriado. Mas, nesse caso, como em outros, a
gravidade dependerá da situação particular e da apreciação do próprio
injuriado.
Em geral, a
injúria religiosa é um ataque contra uma pessoa, e não contra uma
crença, pois as crenças são objetos abstratos e não podem ser factualmente
atacadas.
Já a mensagem de ódio religioso é algo muito
mais grave. Ele é um crime contra a humanidade e, dependendo de sua
intensidade, pode produzir danos reais numa comunidade, como acontece também com as
mensagens de racismo, de xenofobia, de homofobia, de misoginia, etc.
O holocausto
dos judeus pelos nazistas foi resultado da pregação de ódio racial, mas também,
parcialmente, religioso. Luteranos e Católicos alemães foram mobilizados contra
outros alemães que tinham “sangue” hebraica não apenas pelos racistas oficiais
do Reich, mas também pelos pastores e padres que exigiam o castigo dos que
mataram a Cristo 2000 anos antes. (Pelo jeito, no direito canônico não existe
prescrição, ou ela demora muito.)
A blasfêmia é algo totalmente
diferente. Quando alguém critica, satiriza, trata sem respeito, etc., um
símbolo dito “sagrado”, esta pessoa não
está querendo ofender àqueles que acreditam na sacralidade do objeto.
O que ele pretende
salientar é que não considera que esse objeto seja sagrado, e que não compartilha a
convicção de alguém que considera esse objeto intocável.
Por exemplo:
Muitas vezes, na América Latina, artistas progressistas desenharam cruzes
católicas atreladas a aviões ou bombas, querendo simbolizar a cumplicidade da
Igreja com ditaduras, guerras e genocídios. Isso foi chamado “blasfêmia” pelos
crentes, e até um prestigioso escultor argentino teve seu atelier destruído por
vândalos financiados pela prefeitura de Buenos Aires da época. Em realidade,
essas obras eram a descrição do ponto de vista de alguém que não acredita que
os símbolos inanimados (duas barras de prata cruzadas, por exemplo, cum uma estatua
necrológica pregada nelas) tenham qualquer qualidade de sagrado.
O blasfemo denuncia a sacralidade como uma
falsa crença, uma superstição, um fetiche. Isso não significa que os adoradores
desses fetiches sejam desprezados pelo “blasfemo”. Ele apenas mostra sua
rejeição por esse totemismo, e fixa uma oposição que, certa ou errada, tem todo
o direito de manifestar.
Por outro
lado, esse tipo de blasfemo contribui a iluminar as pessoas combatendo a
superstição e tentando que os que ainda possam, escapem do cabresto das castas
sacerdotais.
Se você
coloca um crucifixo de sua propriedade num local público e toca fogo em ele,
podem acontecer várias situações:
1. Você se limita a dizer que não
acredita em seu caráter sagrado. Isso chama-se iconoclastia e é uma crença que existe até entre os próprios
religiosos e possui uma história e uma influência muito grande. Por exemplo, os
dissidentes cristãos gregos do século XI destruíram crucifixos e estátuas de
santos para mostrar sua própria opinião sobre a adoração de objetos. Muitas seitas cristãs acham idolatria
considerar certos objetos sagrados. Neste caso, simplesmente está sendo
respeitada a liberdade de opinião.
2. Se você aproveita a queima do
crucifixo para provocar os católicos presentes, você pode estar proferindo uma injúria contra alguns deles. Se essa
injúria é grave ou não dependerá de vários fatores específicos.
3. Se, junto com a queima do crucifixo,
você lança uma mensagem propondo a guerra contra os católicos, você está
promovendo um crime contra a humanidade, algo como fizeram os nazistas com os
judeus. Você pode ser seriamente punido, não
por queimar um fetiche, mas por propor agressão contra os adoradores desse
fetiche. Com efeito, os símbolos são fetiches, mas seus adoradores são seres
humanos que merecem ser tratados com dignidade.
Na linguagem atual, (1) é uma
blasfémia e, num país minimamente civilizado, não pode ser delito; (2) é uma
injúria, cuja gravidade é relativa. (3) É um convite ao ódio de grupo e é um
crime gravíssimo.
Cabe ainda a possibilidade de que você
esteja queimando um crucifixo sobre o qual não tem direito de propriedade.
Nesse caso, você pode ser acusado de roubo ou destruição da propriedade alheia.
Observe que esta idéia de objetos
sagrados acontece também com símbolos
patrióticos e não apenas religiosos. Atualmente, a maioria dos países,
incluindo os Estados Unidos, consideram que a agressão à bandeira não é uma
infração e faz parte do direito de protesto contra o governo, o estado, ou
contra quem seja. Entretanto, alguns vestígios de arcaísmo ainda dominam em
certos países, como a Suíça e a Alemanha, onde existem punições contra a
dessacralização da bandeira.
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