Carlos Alberto Lungarzo
Anistia Internacional (USA) – 2152711
O Pretório Excelso (que é nosso conhecido Supremo Tribunal Federal para aqueles que possuem um léxico requintado) deverá celebrar, nos próximos dias, mais uma rodada do interminável caso de Cesare Battisti. Essa rodada pode acabar logo de começar, se uma maioria dos ministros entender que o presidente Lula, ao decidir contra a extradição do escritor italiano, usou um direito garantido de maneira explícita pelo próprio Pretório na oitiva de 16/12/2009. Nesse caso, em vez de manifestar-se, seja a favor, seja contra, os juízes poderão considerar a questão prejudicada, o que seria obviamente o correto.
Essa faculdade reconhecida a Lula era a de decidir em favor ou em contra da extradição, com base apenas na obediência ao Tratado entre o Brasil e a Itália. De fato, como o acórdão de abril de 2010 o reconhece, entre os cinco juízes que votaram em favor da faculdade decisória do chefe de estado, quatro admitiam a absoluta discricionariedade e apenas um (Eros Grau) exigiu a vinculação com o tratado.
Em qualquer hipótese, a crença de que o chefe de estado estava obrigado a proceder à efetiva extradição do prisioneiro foi derrotada por 5 a 4. A confusão criada no seio do pretório, abusando do estado de fragilidade emocional do ministro Grau, que o colocou em situação humilhante, não foi, apesar de toda a pressão, suficiente para que o resultado final ficasse confuso, a despeito das dramáticas declarações do relator sobre o caráter pouco inteligível da proclamação. A melhor prova disso é que, mesmo que Peluso se rasgasse as vestes e pedisse ajuda para redigir um texto sobre um assunto “tão confuso”, o acórdão foi produzido no prazo usual no STF. As dificuldades do Senhor Pretor não eram tantas como ele dizia!
A maioria do Supremo agiu da maneira correta. Entretanto, um comentário que não desmerece a lucidez da maioria, é que o caminho que devia ser seguido era evidente. A faculdade do chefe de estado de decidir a aplicação ou recusa de uma extradição, após aprovada pelo judiciário, existe em todas as sociedades democráticas, e também na brasileira. Uma extradição é um ato tipicamente internacional, não é? (Se não for, qual é a natureza de uma ação que consiste em deslocar uma pessoa de uma nação a outra?) Não se precisa ter estudado lógica jurídica com Von Wright ou Hintikka para entender que, se o presidente é responsável pelas decisões que envolvem relações internacionais, e a extradição é um processo internacional, então, ele responde também por extradições. (Elementar, Cezar!)
Entretanto, alguns pretorianos (esse é o nome dos membros do Pretório?) têm cometido alguns deslizes ou, pelo menos, deixam a impressão de tê-los cometido.
O ex-presidente do STF e atual relator, Gilmar Mendes Ferreira, declarou publicamente que sempre tinha sido favorável a extradição e que não precisava formar nova convicção (ou algo parecido). Isso significa adiantamento de sentença? E, se a resposta for positiva, poderia ele continuar no processo?
Por outro lado, ele disse que havia “aquela questão” de que o presidente foi autorizado a não extraditar, etc.... o que, lembrado com gesto resignado, parece ter sugerido que um voto contra o ato de Lula de 31 de dezembro não seria juridicamente “bonito”. De fato, rigorosamente, não sabemos o que ele fará na reunião do STF quando o problema seja tratado.
Um assunto que chama minha atenção (e já falei com outros leigos em direito que também estão surpresos), é que Mendes seja o relator de uma assim dita Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN), movida pelos chamados ‘DEMOCRATAS’ contra o ato do presidente Lula. Segundo os profanos entendemos, uma ADIN pode ir dirigida apenas contra um ato normativo, e não contra uma ação referida a um fato concreto numa situação específica. Estamos errados?
Se realmente a ADIN é inadequada ao caso, ela pode ser relatada? Não deveria ter sido imediatamente descartada após ser protocolada? Em relação com um assunto relativo à lei eleitoral, em 2006, já o Ministro Marco A. de Mello tinha dito que, o dia que o juiz faça um julgamento com base numa norma que ele mesmo criasse, teríamos a ditadura do judiciário.
Há outros fatos que são deslizes evidentes. Por exemplo, o ministro Peluso, ao negar a soltura de Battisti, resmungou algo como “eu não vejo nenhum risco na extradição”.
Numa entrevista dada ontem a um órgão da mídia (27/01), o Advogado Geral da União, Luiz I. Adams fez notar um fato interessante: o tratado de extradição entre Brasil e a Itália inclui este ponto específico sobre riscos para o extraditando, o que significa que o fato de ambos os países serem democráticos não seria uma garantia da ausência de riscos.
O advogado tocou um ponto crítico, usualmente ignorado. Se dois países confiam cegamente (e esse é o tipo de confiança que os Pretorianos Chefes exigem a sua audiência) na dignidade de seu parceiro, por que há tantas ressalvas introduzidas nos artigos 3, 4 e 5 do Tratado? (O 4º não é aplicável, pois trata da pena de morte.)
Mas o maior deslize do Pretoriano Chefe não é sua exagerada confiança na democracia, mas sua pretensão de julgar a subjetividade do Chefe de estado. Este, como qualquer outro, pode errar, mas todos os países que usam o sistema misto ou o executivo de extradição, devem moderar sua desconfiança e admitir que, certo ou errado, a decisão do Chefe do Estado satisfaz o princípio In dubio, pro reo, embora nossos pretores chefes parecem gostar mais (neste caso) de uma variante: in dubio, contra reum.
As razões que sustentam a decisão do presidente são múltiplas:
1) Seu caráter de responsável das relações internacionais, de acordo com a constituição.
2) A jurisprudência, a doutrina e o direito comparado.
3) O Princípio do Direito Natural, que obriga o judiciário a proteger o extraditando, e não a satisfazer os desejos de punição do estado suplicado, mesmo que esta pretensão fosse justa. Então, o STF pode proibir rigorosamente ao presidente extraditar um estrangeiro, cuja extradição foi avaliada como inconveniente, mas não pode obrigar o chefe de estado a executar uma ação apenas porque o tribunal a considere viável.
Parece que o orientador do ministro Peluso em sua especialização em Filosofia do Direito, o famoso Miguel Reale, não ensinou a seus discípulos estes aspectos básicos. Mas, isso tem explicação: o Integralismo brasileiro e seus similares italianos nunca gostaram de muitas garantias, ou de medidas que tivessem “fedor” democrático ou humanitário.
Apesar da confusão artificialmente criada, a coisa é clara: Lula não pôde basear-se numa prova objetiva, por causa de um princípio filosófico crucial, que também o professor Miguel Reale deve ter esquecido ensinar a Peluso (ou este esqueceu): existe prova objetiva apenas do passado, não existe prova objetiva do futuro.
Isso acontece até em autênticas ciências, como na física: todos temos certeza de que uma xícara de água esquentada começará a ferver a 100 graus Celsius. Entretanto, embora isto tenha acontecido sempre até agora, não é 100% válido. Poderia acontecer que a energia térmica fornecida pelo fogo, que transfere energia cinética aos bilhões de moléculas de água que entram em movimento, gerasse colisões nas quais todos os grupos de moléculas batessem com a mesma intensidade, neutralizando o movimento. Claro que isto tem uma probabilidade de menos de 27 casas decimais após a vírgula, mas, impossível mesmo, não é.
Então, não podendo dar uma prova exata do risco a que o extraditando está exposto, o consultor da AGU subsidiou a convicção do presidente, mostrando que as terríveis e doentias manifestações de ódio na Itália já eram um indício suficiente para recursar a extradição com base no artigo 3,I,f. E ainda o consultor não tinha visto tudo. Não sabia que uma província completa ia proibir a leitura de livros de centenas de escritores, apenas porque estes assinaram em 2004 uma petição em contra da extradição de Battisti. Poucos daqueles livros são relativos a política. Na fogueira caem livros infantis, contos, romances... tudo. Mas, o que se tinha visto até o 31/12/2010 era suficiente.
Já estava a ameaça explícita, reiterada dúzias de vezes, de uma turva linchadora e vesânica, liderada por todo um Congresso, pelos ministros, pela diplomacia, pelos numerosos “voluntários”, e pelo ex-stalinista chefe de Estado, que parece não ter entendido bem qual era o momento certo para se aposentar. Foram ameaças explícitas de nada menos que o ministro da defesa, o sindicato de carcereiros, e o líder do sindicato nacional de policiais, Franco Maccari. É verdade que Maccari estava blefando ao sugerir a guerra ao Brasil, mas matar Battisti é algo 190 milhões de vezes mais fácil que essa suposta guerra, e poderia ser realizado sem muito problema. Quem duvida pode ler o denso artigo do jornal de ultradireita L’Occidentale, que propõe enviar um comando para sequestrar Battisti. Isto é bem mais fácil que uma guerra e não pode duvidar-se de que o pasquim fascista fala sério, pois em 2004, quando Battisti era muito menos popular, uma ação similar foi tentada pelo SISMI através do DSSA. (Esta ameaça motivou o Senador Suplicy a pedir ao ministério da justiça uma manifestação pública de repúdio ao ataque à soberania brasileira)
A pretensão do supremo pretoriano, se não fosse pela gravidade de estar em jogo a vida e a integridade de um ser humano, seria divertida. Ao dizer que “não acredita no risco”, Peluso sugere que sua subjetividade sobre o assunto é mais apurada que a subjetividade de Lula. Entretanto, um chefe de estado, mesmo que fosse um absolutista como Luis 14, tem consultores sobre política internacional, que são os adequados para saber se há risco ou não.
Se a opinião de Lula e de Peluso fossem equivalentes, por que então, o STF não autorizou o relator a executar ele próprio a extradição? Ou, aliás, porque não o nomeia chefe de estado, poupando os custos de umas eleições que, pelo jeito, o sábio pretor não aprecia?
Tudo isto mostra que é altamente improvável que a maioria do STF adira à continuação da saga vingativa do chefe pretoriano. A maioria do tribunal destruiria o prestígio que ganhou no passado por várias sentenças corretas no caso de extradição, inclusive de pessoas que estavam no mesmo caso (exatamente no mesmo) que Battisti. Em outras épocas, as de Gramsci, Giordano Bruno, Leonardo, Galileu, Beccaria, etc., ser amigo do estado italiano teria sido uma grande honra. Hoje é difícil que alguém se sinta honrado por ajudar a um estado que está por baixo de todos os padrões do mundo democrático, e de maioria dos padrões do mundo em geral.
Em relação com o recurso à Haia, nem as mais altas autoridades podem evitar dizer em alta voz que é uma total palhaçada. Maior palhaçada ainda que a miserável votação do Parlamento Europeu (83 num plenário de mais de 700 MEPS), cujos membros presentes, que eram quase 600 durante a votação imediata anterior, começaram a sair correndo quando o caso de Battisti ia ser votado. A palhaçada seria maior que a “banana” dada pelo representante da Comissão Européia, o tcheco Števen Füle, que está muito longe de simpatizar com a esquerda, e pela alta comissionada Catherine Ashton, grande esperança dos bersaglieri para levar seus rancores e psicopatias ao resto do mundo, um mundo que precisa muito de paz e de harmonia, e não de vendetta e outras aberrações.
Portanto, só cabe esperar a liberação de Cesare dentro de poucos dias. Mas, não devemos deixar cair os braços, porque, como diz um ditado espanhol: “Deus fecha a panela, mas o diabo levanta a tampa”. Em particular, exorto a todos a assinar a petição criada pela Universidade Nômade, e a difundi-la entre todas suas relações:
Também convido a assistir à execução de uma linda canção em solidariedade a Cesare produzida por um grupo musical português:
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