Fiquei sabendo que lá no Brasil voltou a ditadura, disfarçada, mas voltou. Teria sido um acordo entre o tal de Lula, o presidente deles, que é uma mistura de nordestino com paulista, para poder concorrer e vencer as eleições, desde o seu primeiro mandato, já faz tempo. Um acordo com os militares e seus representantes. Nada no papel, tudo na palavra. Uma troca de favores.
O partido do Lula estava louco para tomar o poder, mas não poderia ser sozinho. Eles teriam a sua parte e os militares a outra. Uma divisão honesta. Coisas que só acontecem no Brasil. Não sei até que ponto essa verdade é verdade, mas leva jeito.
Aqui no Rio Grande nós já desistimos de fazer revoluções por eles. Não vale a pena. Até participamos da federação porque o Brasil precisa dos gaúchos, mas nós somos nós. Agora eles inventaram que o povo é que é subversivo. Parte do povo, a que eles chamam de “bandidos”. E estão lá, matando todos os que podem. Começaram pelo Rio de Janeiro e vão continuar. Também é uma maneira de eliminar a pobreza. Mas isso é coisa deles. Que se entendam.
Depois que desistimos das revoluções, nós, gaúchos, passamos a procurar desenvolver a espiritualidade. Muitos viraram franciscanos, outros foram para aquelas comunidades cheias de lengo-lengo, onde alguns recebem mensagens e outros as repetem; outros preferiram a domesticidade das cidades e outros, ainda, continuaram apenas gaúchos.
Eu sou um pouco de tudo isso, mas o meu lado franciscano se deu conta de uma coisa: da necessidade urgente de achar o Santo Graal. A idéia surgiu quando eu vi pela televisão, ao vivo e a cores, aquela matança lá no Rio de Janeiro. E me disseram que não é a primeira. Logo me dei conta que aquele povo está precisando de um pouco de espiritualidade, a espiritualidade gaúcha, e até mais que isso, porque espiritualidade gaúcha é coisa de gaúcho e entre os cariocas eles não iriam entender muito. Teria que ser algo mais a fundo, tipo achar a Taça Sagrada, encher de água – que ficaria santificada instantaneamente – pegar um avião e ir jogando um pouco em cada estado, deixando a maior parte para os cariocas.
Nesses anos todos de gauderiadas, quando adquiri muita experiência de vida percebi finalmente que as rosas não falam, somente exalam. E isso foi para mim uma grande surpresa, pois a minha busca – todos os que me conhecem sabem – sempre foi pelo Graal, não pelo falar ou exalar das rosas. Mas, entre buscar e buscar, tenteando aqui, tenteando ali, foi-me dado vislumbrar não o brilho único da taça sagrada, mas a extrema perfeição com que os brasileiros escrevem letras de música, principalmente samba e ritmos aderentes, ou ritmos semelhantes... Enfim!, ritmos parecidos!
Nunca desisti de procurar o Graal. Mas passei a observar mais os brasileiros e os seus ritmos. É claro que só poderá estar no Brasil ou no restante da América do Sul, América Central e Caribe, porque aqueles outros países no resto do mundo estão em franca decadência moral. Mas comecei pelo Brasil.
No Rio Grande, todos sabem, basta uma gaita ou um violão e está feito o baile. Mas no Brasil, logo ali passando a fronteira com Santa Catarina, onde tem cidades com nomes expressivos, como Xaxim, Xanxerê e Chapecó, e mais adiante pelo todo plantado Paraná e chegando àquele monstro chamado São Paulo, assim de formigas trabalhando!, e descendo para as praias idílicas dos cariocas, que falam arrastado, chiando, parece que com pena de dizer as palavras, dois olhares curiosos para cada frase, passei a admirar a perfeição e cuidado com que os mestres da música fazem samba.
E vocês vão me perguntar: mas e São Paulo? Sem dúvida que, além das formigas, lá também tem música. Só que de uns anos pra cá aquele estado que dá o ritmo para o Brasil funcionar sofregamente, anestesiadamente, perdeu o ouvido, coitado! Ainda tem gente que conhece música por lá, mas a maioria... Parece que baixou uma peste de mau gosto. Chamam isso de música sertaneja, num lugar que nem tem sertão, que eu saiba, vejam só!
E é um tal de duplas tipo Zé com Zó, Tintim com Tantão e outros do gênero, que até assusta. É claro que o Graal não está lá. Se estivesse já teria sido remanufaturado e vendido pros estadunidenses. Eles adoram americanos do norte.
Infelizmente, não fui no bairro do Bexiga. Não deu. Bem que tentei. Mas, depois de dois dias naquele trânsito desisti. Dizem que é um lugar sagrado, onde as pessoas conhecem música e sabem se divertir. E eu sempre pensei que a Taça deve estar em lugares assim, onde haja harmonia e felicidade.
Minas Gerais é uma possibilidade, mas tem ouro demais naquelas igrejas e Jesus era um cara pobre que pregava a pobreza. A arte do Aleijadinho e os murais de Portinari na igreja da Pampulha diminuíram um pouco aquele astral pesado. Mesmo assim, eu não “sinto” o Graal em Minas.
Achei que poderia estar no Rio de Janeiro, guardado pelos doutores do samba. Por isso, fiquei lá por algum tempo, visitando os templos sagrados da música e procurando aprimorar o meu ouvido.
Vocês já ouviram algum carioca tocando samba destoar – ou “atravessar” a música, como eles dizem? Eu não. Pensei que se isso acontecesse e eu conseguisse identificar o instrumento desafinado, seria uma pista. Imaginem um samba sendo bem tocado numa roda, pessoas cantando naquele delírio quase lacrimoso e, de repente, o agogô ao invés de dizer cococó-có - cococó, fazer cococó-cô-rorô? Desafinado não estaria, teria algo dentro... Sei lá... E esse algo poderia ser o Graal...
Tá, eu já sei que o agogô é um instrumento inadequado para conter o Graal, mas eu só dei um exemplo. Entendam que a minha busca pelo Graal passou a ser através do ouvido, desde quando me dei conta de que harmonia, beleza e santidade devem, necessariamente, andar juntas. E lá no Rio eles fazem tudo com ritmo. Até quando estão tiroteando. Um faz pá-pá-pá-pá! O outro responde: pá-pá-pá-pá-pá-pá, e vão acrescentando sílabas a cada pá-pá-pá. Quem houve se extasia.
Foi quando comecei a desconfiar do Hermeto Pascoal, mesmo ele sendo nordestino - e talvez por isso. Aquele som dele, totalmente dissonante, que acaba sendo harmonioso e deslumbrante... E depois até o nome é um tanto quanto esotérico: Hermeto! Passei a segui-lo, a freqüentar os lugares aonde ele ia, a assistir os seus shows, a tentar contato... Nada! Depois, ele sumia, ia dar shows em outros lugares do Brasil e eu ali, chupando o dedo.
Então, resolvi ouvir melhor as letras dos sambas cariocas. Talvez alguma me indicasse uma pista.
Eu tinha razão. Fiquei sabendo que “fazer samba é uma forma de oração”, que “a Ordem é samba”, “a luz que ilumina cada ser”, “pra quem sabe ler um pingo é letra” – principalmente esta de Bezerra da Silva. É o mesmo que dizer: “pra bom entendedor meio toque basta”. Eu estava chegando lá.
Mas para entrar na confraria do samba é muito difícil, tem que saber as gírias e a malandragem – aquele jeito “vai-não-vai", "quem sabe aqui – quem sabe lá", "tico-tico no fubá", "me engana que eu gosto”. Muita onda. Onda é o que mais tem. Aquele mar imenso, cheio de ondas, as pessoas na praia, olhando umas pras outras e pro mar e vice-versa, cada onda diferente da outra. Aliás, este foi o grande segredo iniciático que eu recebi. Alguém me disse, numa roda de samba – eu só de espectador – ali na praia mesmo: “cada onda é diferente das outras”. Mas bá! Profundo, profundíssimo! Senti que tremia e não era de frio. O meu apuradíssimo ouvido ouvia gritos de “hu!-hu!-hu!-hu!”, e eu vi passar pessoas fardadas, carecas e grotescas por tantos músculos, armadas por tantas armas que apontavam e atiravam em alvos indistinguíveis. Era o tiroteio de fim de tarde.
Fui embora. Pra mim, tiro só em Cruzeira e se estiver muito próxima, senão deixo passar pra sua toca.
Foi quando me dei conta que o Graal não pode estar em mãos cariocas. Seria uma profanação. Poderá estar no Nordeste, bem guardado por algum pescador, ou no Norte, de preferência em Roraima, onde nasceu Macunaíma. Vocês já pescaram no Rio Branco ou tomaram batida de maracujá às suas margens? Pois eu já. É o Paraíso. O Graal bem que pode estar lá aos cuidados de uma morena jambo macuxi ou em alguma tribo indígena.
No Centro-Oeste tem Brasília e o Niemeyer que me perdoe, mas aquilo lá virou uma estrumeira de tanta sujeira. Graal lá? Nem pensar! E os demais estados daquela região recebem diretamente as suas emanações pútridas.
Talvez esteja aqui mesmo, no meu Rio Grande, provavelmente transformado em cuia de mate. Mas não descarto o Hermeto Pascoal.
Fausto Brignol.
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