Apresento aqui um artigo escrito pelo comunicador Vinícius
Bocato, que encontrei em meu Facebook. Este artigo é rigoroso, documentado,
possui dados quantitativos e reflexões sociológicas impecáveis.
Todos os que devem tomar decisão sobre o caso deveriam ler
isto. É absurdo que pessoas relativamente bem intencionadas se deixem induzir
por mentiras, mensagens de ódios e raciocínios torpes produzidos por
linchadores sedentos de sangue.
Querem fazer este país, onde a vida das pessoas pobres ou
excluídas (ou seja, 70% da população) é tratada como lixo UM POUCO MELHOR, o
vão deixar que fascistas e vigaristas afundem ainda mais os escassos direitos
humanos que há no Brasil?
No pude comunicar-me com autor para pedir autorização, mas
declaro publicamente minha admiração por este trabalho impecável.
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Razões para NÃO reduzir a
maioridade penal
por Vinícius Bocato*
Sempre que acontece
um crime bárbaro cometido por um adolescente a sociedade levanta a voz para
pedir a redução da maioridade penal. Quais seriam os reflexos dessa medida?
Estudante da
Casper Líbero escreve artigo sobre o tema e questiona: o objetivo é tentar
reduzir a violência ou atender a um desejo coletivo de vingança?
Na última semana uma
tragédia abalou todos os funcionários e alunos da Faculdade Cásper Líbero, onde
estou terminando o curso de jornalismo. O aluno de Rádio e TV Victor Hugo
Deppman, de 19 anos, foi morto por um assaltante na frente do prédio onde
morava, na noite da terça-feira (9). O crime chocou não só pela banalização da
vida – Victor Hugo entregou o celular ao criminoso e não reagiu –, mas também
pela constatação de que a tragédia poderia ter acontecido com qualquer outro
estudante da faculdade.
Esse novo capítulo da
violência diária em São Paulo ganhou atenção especial da mídia por um detalhe:
o criminoso estava a três dias de completar 18 anos. Ou seja, cometeu o
latrocínio (roubo seguido de morte) enquanto adolescente e foi encaminhado à
Fundação Casa.
Óbvio que a primeira
reação é de indignação; acho válida toda a revolta da população, em especial da
família do garoto, mas não podemos deixar que a emoção nos leve a atitudes
irresponsáveis. Sempre que um adolescente se envolve em um crime bárbaro, boa
parte da população levanta a voz para exigir a redução da maioridade penal.
Alguns vão adiante e chegam a questionar se não seria hora do Estado se igualar
ao criminoso e implantar a pena de morte no país. Foi o que fez de forma
inconsequente o filósofo Renato Janine Ribeiro, em artigo na Folha de S. Paulo,
por ocasião do assassinato brutal do menino João Hélio em 2007.
Além de obviamente
não termos mais espaço para a Lei de Talião no século XXI, legislar com base na
emoção nada mais atende do que a um sentimento de vingança. Não resolve (nem
ameniza) o problema da violência urbana.
O que chama a atenção
é maneira como a grande mídia cobre essas tragédias. A maioria das matérias que
vemos nos veículos tradicionais só reforçam uma característica do Brasil que
eles mesmo criticam: somos o país do imediatismo. A cada crime brutal cometido
por um adolescente, discutimos os efeitos da violência, mas não as suas causas.
Discutimos como reprimir, não como prevenir. É uma tática populista que desvia
o foco das reais causas do problema.
Abaixo exponho a
lista de motivos pelos quais sou contra a redução da maioridade penal:
As leis não podem se
basear na exceção
A maneira como a
grande mídia cobre estes crimes bárbaros cometidos por adolescentes nos dá a
(falsa) impressão de que eles estão entre os mais frequentes. É justamente o
inverso. O relatório de 2007 da Unicef “Porque dizer não à redução
da idade penal”
mostra que crimes de homicídio são exceção:
“Dos crimes
praticados por adolescentes, utilizando informações de um levantamento
realizado pelo ILANUD [Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para
Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente] na capital de São Paulo
durante os anos de 2000 a 2001, com 2.100 adolescentes acusados da autoria de
atos infracionais, observa-se que a maioria se caracteriza como crimes contra o
patrimônio. Furtos, roubos e porte de arma totalizam 58,7% das acusações. Já o
homicídio não chegou a representar nem 2% dos atos imputados aos adolescentes,
o equivalente a 1,4 % dos casos conforme demonstra o gráfico abaixo.”
E para exibir dados atualizados, dentre os 9.016 internos da Fundação
Casa, neste momento apenas 83 infratores cumprem medidas socioeducativas por
terem cometido latrocínio (caso que reacendeu o debate sobre a maioridade penal
na última semana). Ou seja, menos que 1%.
Redução da maioridade penal não diminui a violência. O
debate está focado nos efeitos, não nas causas da violência
Como já foi dito, a
primeira reação de alguns setores da sociedade sempre que um adolescente comete
um crime grave é gritar pela redução da maioridade penal. Ou quase isso:
dificilmente vemos a mesma reação quando a vítima mora na periferia (nesses
casos, a notícia vira apenas uma notinha nas páginas policiais). Mas vamos
evitar leituras ideológicas do problema.
A redução da
maioridade penal não resolve nem ameniza o problema da violência. “Toda a
teoria científica está a demonstrar que ela [a redução] não representa
benefícios em termos de segurança para a população”, afirmou em fevereiro
Marcos Vinícius Furtado, presidente da OAB. A discussão em torno na maioridade
penal só desvia o foco das verdadeiras causas da violência.
O Instituto Não
Violência é bem enfático quanto a isso: “As pesquisas realizadas nas áreas
social e educacional apontam que no Brasil a violência está profundamente
ligada a questões como: desigualdade social (diferente de pobreza!), exclusão
social, impunidade (as leis existentes não são cumpridas, independentemente de
serem “leves” ou “pesadas”), falhas na educação familiar e/ou escolar
principalmente no que diz respeito à chamada educação em valores ou
comportamento ético, e, finalmente, certos processos culturais exacerbados em
nossa sociedade como individualismo, consumismo e cultura do prazer.
Em
linhas gerais, o adolescente infrator é de baixa renda, tem muitos irmãos e os
pais dificilmente conseguem sustentar e dar a educação ideal a todos (longe
disso). Isso sem contar quando o jovem é abandonado pelos pais, quando um deles
ou ambos faleceram, quando a criança nem chega a conhecer o pai, entre outras
complicações.
Claro
que é bom evitar uma posição determinista, a pobreza e a carência afetiva por
si só não produzem criminosos. Mas a falta de estrutura familiar, de educação,
a exposição maior à violência nas periferias e a falta de políticas públicas
para esses jovens os tornam muito mais suscetíveis a cometer pequenos crimes.
Especialistas
afirmam que os adolescentes começam com delitos leves, como furtos, e depois
vão subindo “degraus” na escada do crime. De acordo com Ariel de Castro Alves,
ex secretário-geral do Conselho Estadual da Defesa dos Direitos da Pessoa
Humana (Condepe), muitos dos adolescentes que chegam ao latrocínio têm dívidas
com traficantes e estão ameaçados de morte, e isso os estimula a roubar.
Vale
aqui lembrar a falência da Fundação Casa, que em vez de recuperar os jovens,
acaba incentivando os internos a subir esses degraus do crime. Para entender
melhor sua realidade, recomendo a leitura da matéria “De Febem a Fundação Casa”
da REvista Fórum. Nela temos o relato do pedagogo Carlos (nome fictício), que
sofreu ameaças frequentes por contestar os atos abusivos da direção: “A
Fundação Casa nasceu para dar errado. Eles saem de lá com mais ódio, achando
que as pessoas são todas ruins e que não há como mudar isso. São desrespeitados
como seres humanos, são tratados como lixo. E isso faz com que eles pensem que
não podem mudar.”
Atuante
na Fundação há onze anos, Carlos conta que os atos de violência contra os
adolescentes são cotidianos e descarados, apoiados inclusive pelo diretor, que
também “bate na cara dos meninos”. Essa bola de neve de violência só poderia
resultar em crimes cada vez mais graves cometidos pelos garotos.
Prisão
superlotada em São Paulo
A
redução da maioridade penal tornaria mais caótico o já falido sistema
carcerário brasileiro e aumentaria o número de reincidentes
Dados
objetivos: Temos no Brasil mais de 527 mil presos e um déficit de pelo menos
181 mil vagas. Não precisamos nos aprofundar sobre a superlotação e as
condições desumanas das cadeias brasileiras, é óbvio que um sistema desses é
incapaz de recuperar alguém.
A
inclusão de adolescentes infratores nesse sistema não só tornaria mais caótico
o sistema carcerário como tende a aumentar o número de reincidentes. Para o
advogado Walter Ceneviva, colunista da Folha, a medida pode tornar os jovens
criminosos ainda mais perigosos: “Colocar menores infracionais na prisão será
uma forma de aumentar o número de criminosos reincidentes, com prejuízo para a
sociedade. A redução da maioridade penal é um erro.”
A
Unicef também destaca os problemas que os EUA enfrentam por colocar
adolescentes e adultos nos mesmos presídios. “Conforme publicado este ano
[2007] no jornal The New York Times, a experiência de aplicação das penas
previstas para adultos para adolescentes nos Estados Unidos foi mal sucedida
resultando em agravamento da violência. Foi demonstrado que os adolescentes que
cumpriram penas em penitenciárias, voltaram a delinquir e de forma ainda mais
violenta, inclusive se comparados com aqueles que foram submetidos à Justiça
Especial da Infância e Juventude.”
O
texto em questão foi publicado no New York Times em 11 de maio de 2007 e está
disponível na íntegra na página 34 deste PDF
da Unicef.
Ao
contrário do que é veiculado, reduzir a maioridade penal não é a tendência do
movimento internacional
Tenho
visto muitos textos afirmando que o Brasil é um dos raros países que estipulou
a maioridade penal em 18 anos. Tulio Kahn, doutor em ciência política pela USP,
contesta esses dados. “O argumento da universalidade da punição legal aos
menores de 18 anos, além de precário como justificativa, é empiricamente falso.
Dados da ONU, que realiza a cada quatro anos a pesquisa Crime Trends
(Tendências do Crime), revelam que são minoria os países que definem o adulto
como pessoa menor de 18 anos e que a maior parte destes é composta por países
que não asseguram os direitos básicos da cidadania aos seus jovens.”
Ainda
segundo a Unicef “de 53 países, sem contar o Brasil, temos que 42 deles (79%)
adotam a maioridade penal aos 18 anos ou mais. Esta fixação majoritária decorre
das recomendações internacionais que sugerem a existência de um sistema de
justiça especializado para julgar, processar e responsabilizar autores de
delitos abaixo dos 18 anos. Em outras palavras, no mundo todo a tendência é a
implantação de legislações e justiças especializadas para os menores de 18
anos, como é o caso brasileiro.”
O
que pode estar acontecendo na grande mídia é uma confusão conceitual pelo fato
de muitos países usarem a expressão penal para tratar da responsabilidade
especial que incide sobre os adolescentes até os 18 anos. “Países como
Alemanha, Espanha e França possuem idades de inicio da responsabilidade penal
juvenil aos 14, 12 e 13 anos. No caso brasileiro tem inicio a mesma
responsabilidade aos 12 anos de idade. A diferença é que no Direito Brasileiro,
nem a Constituição Federal nem o ECA mencionam a expressão penal para designar
a responsabilidade que se atribui aos adolescentes a partir dos 12 anos de
idade”.
Confiram
aqui
a tabela comparativa entre diferentes países ao redor do mundo. Alguns países
vêm seguido o caminho contrário do que a grande mídia divulga e aumentado a
maioridade penal. “A Alemanha restabeleceu a maioridade para 18 anos e o Japão
aumentou para 20 anos. A tendência é combater com medidas socioeducativas.
Estudos apontam que os crimes praticados por crianças e adolescentes, no
Brasil, não passariam de 15%. Há uma falsa impressão de que esses jovens ficam
impunes, o que não é verdade, pois eles respondem ao ECA (Estatuto da Criança e
do Adolescente)”, argumenta Márcio Widal, secretário da Comissão dos Advogados
Criminalistas da OAB.
Também
não vejo os grandes jornais divulgarem que muitos estados americanos estão
aumentando a maioridade penal.
Há
ainda diversos argumentos contra a redução da maioridade penal, mas o texto já
se estendeu muito e vamos focar em mais dois. A medida é inconstitucional; a
questão da maioridade faz parte das cláusulas pétreas da Constituição de 1988,
que não podem ser modificadas pelo Congresso Nacional (saiba mais sobre as
cláusulas pétreas da CF aqui). Seria necessária
uma nova Assembleia Constituinte para alterar a questão.
“São
penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da
legislação especial” (Artigo 228 da Constituição Federal). Ou seja, todas as
pessoas abaixo dos 18 anos devem ser julgadas, processadas e responsabilizadas
com base em uma legislação especial, diferenciada dos adultos.
Há
ainda o clássico argumento de que o crime organizado utiliza os menores de
idade para “puxar o gatilho” e pegar penas reduzidas. Se aprovada a redução da
maioridade penal, os jovens seriam recrutados cada vez mais cedo. Se baixarmos
para 16 anos, quem vai disparar a arma é o jovem de 15. Se baixarmos para 14,
quem vai matar será o garoto de 13. Estaríamos produzindo assassinos cada vez
mais jovens. Além disso, “o que inibe o criminoso não é o tamanho da pena e sim
a certeza de punição”, diz o advogado Ariel de Castro Neves. “No Brasil existe
a certeza de impunidade já que apenas 8% dos homicídios são esclarecidos.
Precisamos de reestruturação das polícias brasileiras e melhoria na atuação e
estruturação do Judiciário.”
Concluindo…
Reforçando,
tudo o que foi discutido até aqui foi para mostrar o problema de tratar essa
questão com imediatismo, impulsividade. Os debates estão sendo feitos quase
sempre em cima dos efeitos da violência, não de suas causas, desviando o foco
das reais origens do problema.
Que
tal nos mobilizarmos para cobrar uma profunda reforma na Fundação Casa, de
forma que ela cumpra minimamente seus objetivos? Ou para cobrar outra profunda
reforma no sistema carcerário brasileiro, que possui 40% de presos provisórios?
Será que todos deviam estar lá mesmo?
E
melhor ainda: que tal nos mobilizarmos para que o Governo invista pesado na
prevenção da criminalidade, como escolas de tempo integral, atividades de lazer
e cultura? Estudos mostram que quanto mais as crianças são inseridas nessas
políticas públicas, menores as chances de serem recrutadas pelo mundo das
drogas e pelo crime organizado.
“Quando
o Estado exclui, o crime inclui”, afirma Castro Alves. “Se o jovem procura
trabalho no comércio e não consegue, vaga na escola ou num curso
profissionalizante e não consegue, na boca de fumo ele vai ser incluído.”
Na
teoria o ECA é uma ótima ferramenta para prevenir a criminalidade. Mas há um
abismo entre a teoria e a prática do ECA: a falta de políticas públicas para a
juventude, a falta de estrutura e os abusos na Fundação Casa acabam produzindo
o efeito contrário do desejado. Mesmo assim, a reincidência no sistema de
internação dos adolescentes é de aproximadamente 30%. No sistema prisional
comum é de 60%, segundo o Ministério da Justiça.
No
fim das contas, suspeito que boa parte da sociedade não quer recuperar os
jovens infratores. Muitos gostariam mesmo é de fazer justiça com as próprias
mãos ou que o Estado aplicasse a pena de morte, como sugeriu o filósofo Janine
Ribeiro no calor da emoção. Mas já que isso não é possível, então “que apodreça
na cadeia junto com os adultos”.
Por
causa de fatos isolados, como a tragédia do menino João Hélio e do estudante
Victor Hugo, cobram do governo a redução da maioridade penal, uma atitude
impulsiva e irresponsável que iria piorar ainda mais a questão da violência no
Brasil. A questão é tentar reduzir a violência ou atender a um desejo coletivo
de vingança?
*
Vinícius Bocato é estudante de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero e
designer gráfico.
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