Carandiru e
Nuremberg
Carlos Alberto Lungarzo
9 de abril
de 2013
No dia 15-04-2013 começa o julgamento
do processo dos PMs executores do massacre ocorrido na prisão de Carandiru em
1992, em São Paulo. Iniciado hoje, precisou ser adiado
por uma semana já que logo no início uma das cinco juradas teve uma crise
nervosa durante a leitura. Ela não conseguiu
resistir o relato das atrocidades cometidas
pela polícia.
Como
acontece com todo evento
futuro num processo que envolve ações humanas (guerras, migrações, julgamentos,
etc.) o resultado não pode ser predito e seria temerário arriscar opinião.
Entretanto, tendo em conta que o
Estado de São Paulo está, junto com algumas regiões de África e Ásia - como Sudão,
Irã, Kampuchea (Camboja), China, Pyongyang, e outros -, entre os maiores
violadores de direitos humanos do planeta, surge a tentação de externar algumas
suspeitas.
Por um lado há aspectos históricos de
nossa formação a considerar. Nós, latino-americanos, fomos colonizados pela
Espanha e Portugal, ou seja, o mais atrasado, obscuro e sangrento do
imperialismo europeu de todos os tempos. Nossos países não conheceram o iluminismo, nem o direito
humanitário, e as influências da Revolução Francesa foram “adaptadas” para
favorecer as classes dominantes republicanas, que não eram mais esclarecidas
que as do império.
Os fatos mais específicos confirmam
isto amplamente. O TJ de SP fraudou o veredicto do conselho de sentença, no
caso do carniceiro-mor de Carandiru, aduzindo razões ridículas. Numerosos
agentes de estado foram descriminalizados por atos contra civis, e até
receberam parabéns e “reparações”, como o jovem promotor que assassinou um
rapaz desarmado com 12 tiros numa praia, por um absurdo surto de ciúmes. Um
número impossível de calcular de infratores por roubos insignificantes foram
condenados com penas draconianas, como o da menina deficiente que esteve presa
vários anos por furtar um shampoo, que foi torturada na prisão e perdeu um olho,
caso relatado pela jornalista Tatiana Merlino, que recebeu por isso o prêmio
Herzog de 2009. Além das incontáveis mortes de moradores de rua, assassinatos e
torturas de habitantes da FEBEM, prêmios aos esquadrões da morte oficiais,
enfim, não há uma única barbárie que esteja fora da agenda da escravocracia do
Opus Dei, e dos demais violadores de direitos humanos instalados no estado de
São Paulo.
Para quem não lembra o detalhe, o Opus Dei foi escolhido (no final dos
anos 40) como doutrina básica do fascismo espanhol. Isso porque o franquismo
entendeu que o fascismo tradicional de José Antonio Primo de Rivera e Orbaneja,
chamado “Falangismo”, era brando demais para o nível de sangue que as elites
hispânicas reclamavam.
No julgamento dos autores da chacina
do Carandiru houve uma fraude incrível. Um obscuro político, que atuava como
defensor destes, tentou influenciar o conselho de sentença com um ato
absolutamente ilegal como levar seus membros a percorrer a prisão de Carandiru
após o massacre. Contrariamente a seus propósitos, o júri votou contra os
algozes, pois o sórdido experimento repugnou aos membros do conselho.
Por outro lado, há também razões genéricas
para temer que as punições aplicadas aos atores do democídio do Carandiru (se
houver alguma) sejam subdimensionadas.
Primeiro, embora muitos tentem
enganar a opinião pública, hoje ninguém ignora que os crimes do terrorismo de
estado não são crimes políticos (no
sentido de crimes contra o despotismo), nem
são crimes comuns (como assalto, roubo, briga, etc.) O terror de estado produz
crimes contra a humanidade, algo que foi enunciado explicitamente
em Nuremberg, há 65 anos. Parece, porém que esse tempo foi insuficiente para
que nossos juristas tomassem conhecimento.
Crimes de enorme potencial destrutivo
e reprodutivo, dirigidos contra a condição humana em seu conjunto, não devem
ser julgados por tribunais comuns, muito menos quando esses tribunais têm um
passado de conivência com os autores.
Segundo, a idéia de que os poderes
públicos são independentes um do outro, num continente eivado por todo tipo de
cambalacho, é algo que nem os mais desinformados engolem. Salvo uma pequena e
corajosa minoria (Juízes para a Democracia, por exemplo, ou grupos reduzidos de
procuradores), os agentes jurídicos estimulam a violência policial, pois ela é
a que enche as prisões, aumentando a aparência de bom desempenho do aparato repressivo (quanto mais presos, melhor), das iniquidades do sistema
jurídico-prisional e fazendo as delícias do público fascista, herdeiro do
Integralismo. Além de encobrir democidas e torturas, alguns magistrados
presenciam os tormentos e estabelecem limites para que o torturado não morra
antes da confissão.
Terceiro, e finalmente, é difícil que os
crimes contra a humanidade possam ser julgados pelos próprios países em que se
cometem. O Estado julgando o Estado é um sarcasmo contra o senso de justiça. Qual júri permitiria entre seus membros
o próprio réu?
Tenho ouvido muitas referências
elogiosas à justiça argentina por ter conseguido julgar 200 militares,
policiais e criminosos civis a eles vinculados, da última ditadura. Sem dúvida,
a justiça atuou dignamente, comparada com qualquer outra do continente, mas ela
não poderia ter feito isso (que, aliás representa pouco mais de 2% do total de
assassinos ao serviço do Estado que cometeram crimes atrozes), sem a enorme
pressão interna no país (300.000 familiares de desaparecidos que militaram durante
30 anos, e continuam militando, por esse julgamento), além da pressão de
governos de países democráticos que tinham cidadãos assassinados pela ditadura.
Observemos que há três anos, o STF
protegeu os autores de torturas e democídio de mais de um milhar de vítimas
brasileiras nos 20 anos da ditadura militar. Se usarmos esse padrão como
referência, podemos pensar que o judiciário não se pronunciará em favor de
vítimas que foram empurradas ao crime por uma sociedade classista, racista e
escravocrata, e que depois foram assassinados para dar pão e circo aos
linchadores de classe média e alta. Muitas das vítimas da ditadura eram
universitários ou profissionais com nível de educação superior, o que para a
mentalidade preconceituosa das elites é sempre um fator atenuante.
É verdade que o caso Carandiru foi
julgado pela OEA, mas esta escolheu uma solução discutível. Aceitou não punir o
Brasil se o estado melhorasse a condição das prisões. A priori, esta negociação
poderia ser razoável, tendo em conta que o objetivo de uma ação deve ser
melhorar o estado de coisas e não simplesmente punir. Mas, a CIDH da OEA sabia
que carecia de poder para monitorar o
cumprimento dessa promessa, que , obviamente, não se cumpriu!
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