Carlos Alberto Lungarzo
Anistia Internacional (USA) – 2152711
Durante a terceira sessão do julgamento da extradição de Cesare Battisti, o ministro Marco Aurélio de Mello disse em seu voto:
Pela primeira vez, vejo um refugiado há vários meses em cárcere no país que assim o reconheceu, ocorrendo a extravagância porque [há] em curso pedido de extradição.
É importante a fonte desta frase, porque Marco Aurélio é um dos juízes melhor informados, mais inteligentes e equânimes da história do judiciário brasileiro. Uma prova disto, mais que os dados positivos que podemos acumular, são os negativos. Com efeito, ele tem despertado fortes resistências naquele ambiente inquisitorial e trevoso, a tal ponto que seus votos são quase sempre vencidos, e suas ações são repelidas com ódio por toda a direita jurídica.
Também é importante assinalar que Marco Aurélio não é uma pessoa de esquerda, mas apenas um liberal de centro que é honesto com seu trabalho. Ele pode parecer de esquerda, naquele clima inquisitorial do “pretório excelso”, mas não é.
Tanto ele, como Eros Grau, Carmen Lúcia e Joaquim Barbosa, disseram muito claramente que o julgamento da extradição estava “prejudicado”, um eufemismo para dizer que esse julgamento foi um disparate. Existem casos isolados de ações do judiciário contra direitos legítimos do executivo, mas isso não aconteceu nunca durante sistemas democráticos ou semidemocráticos. A deposição do presidente de Honduras por iniciativa dos juízes foi, justamente, uma transição da democracia à ditadura que veio em seguida, e ao governo fraudulento que atualmente está instalado.
Outro caso parecido foi Chile, quando se preparava o segundo mais brutal golpe do continente, mas ainda assim Allende resistiu todos os ataques do judiciário, especialmente o de 22 de agosto de 1972, quando os juízes manifestaram sua oposição à concessão de refúgio a 11 estrangeiros. Por sinal, a ação do Supremo Tribunal chileno naquele caso (que, junto com a CIA, a direita parlamentar e os militares, incubou o golpe de 1973), foi menos insistente que a do Brasileiro no caso Battisti. As excelências se limitaram a advertir o presidente, mas não tomaram nenhuma medida formal, e Allende ajudou a fugir aqueles perseguidos a um 3º país.
(O golpe esteve em preparação desde a mesma posse de Allende, e não foi deflagrado por este fato. O judiciário foi uma das forças que promoveu a ditadura, mas não a única.)
Portanto, a atitude da cúpula do STF no caso Battisti é absolutamente única na história do terrorismo judicial. Agora, a ameaça recente do ex-presidente da Corte de pretender julgar de novo as medidas do executivo que liberem Battisti, é apenas mais uma provocação entre as várias dúzias que foram feitas desde janeiro de 2009 até começo deste ano, quando a direita deu uma trégua.
Há uma coisa, porém, que não deve descartar-se. Nós não vivemos um real estado de direito, por muito que gostássemos, e mesmo que tenhamos uma grande fantasia para imaginar essa possibilidade. Ou alguém pode mencionar um estado de direito onde exista trabalho escravo, ou onde atos racistas se resolvem punindo o denunciante e não o autor?
Ou seja, os obstáculos jurídicos para que o STF reabra o julgamento não seriam problema, porque o único regulamento que a cúpula jurídica segue é o do famoso delegado do século 18, Charles Lynch. Sou otimista, porém, porque creio que os discípulos do célebre xerife virginiano não parecem agora estar em condições de assumir um processo de desgaste interno. Tudo indica (embora ninguém tenha provas), que a Itália não está interessada em continuar investindo em grande escala no linchamento de Battisti.
Além disso, devemos reconhecer que os ativistas de direitos humanos temos sido pouco eficientes em nossa atividade, talvez por causa da depressão que produz ver uma nova e poderosa onda do fascismo (declarada morta em 1985, quando apenas tinha um pequeno surto de catalepsia). A enorme quantidade de apoio moral que teve Cesare, de mais de 500 organizações e mais de 4000 pessoas notáveis, não justifica a falta de mobilização nos momentos críticos. Havia milhares de pessoas que poderiam ter agido, mas houve um sentimento difuso de que não era necessário.
Se houver intenções dos inquisidores de reabrir a causa Battisti (coisa que acho duvidosa), as ONGs de direitos humanos e os organismos do estado devem estar alertas para iniciar imediatamente uma ação contra o pretório dito “excelso”.
(Por sinal, uma causa contra o STF será imprescindível, já que o julgamento da extradição 1085 destruiu as bases jurídicas do refúgio não Brasil, e colocou em xeque, por causa da hegemonia “discreta” que o país exerce, o sistema de asilo latino-americano. A outra alternativa é resignar-se a aceitar que Brasil não precisa mais conceder refúgio, o que não mudará a situação, tendo em conta a quantidade ridícula de perseguidos que o país recebe. Mas a aberração cometida pelos inquisidores coloca em sério risco aos que já estão refugiados. Mas este não é assunto para tratar neste breve texto.)
Este processo de resistência jurídica contra o arbítrio deve ser encabeçado por pessoas que possuem fé pública, mas precisa ser tornado uma ação comum.
Parece bastante “cediço” (como se fala em juridiquês, e quer dizer “evidente”) que o governo percebe claramente que a direita está inconformada com a derrota eleitoral, e que, desta vez, o Planalto deveria adotar medidas jurídicas internacionais, até como autodefesa, pois qualquer demonstração de fraqueza só aumentará a gula dos mastins.
Finalmente, quero dedicar os parágrafos seguintes e resumir os argumentos que apoiam a próxima medida do governo na liberação de Cesare, e refletir sobre os fatos (realmente alucinantes, para dizer o mínimo) que vivemos neste 4º reich judicial nos últimos dois anos:
Os Motivos de Rejeição
Há numerosos motivos fundados em lei para rejeitar a extradição de Battisti. O mesmo Tratado entre o Brasil e a Itália oferece pelos menos 3 possibilidades que se aplicam claramente a Cesare.
Primeiro, ele não terá, como exige esse tratado, um julgamento equânime e justo, porque as autoridades italianas consideram válida a sentença de 1988, confirmada em 2ª instância em fevereiro de 1990, e em 3ª e última instância, em março de 1993, que condena o escritor italiano a prisão perpétua.
Seria redundante nos referirmos ao que já foi dito por dúzias pessoas de diferentes países, num total de mais de 800 artigos e posts, de que essas condenações feriram todas as cláusulas do estado de direito. Aliás, como a Corte Européia recusou-se a declarar inválida a sentença, dada a conhecida politização desse tribunal, majoritariamente integrado por magistrados de países com governos neoliberais ou neofascistas (ou ambos), Battisti não poderia esperar um veredicto justo das autoridades europeias.
A falta de um novo julgamento em presença para um réu condenado em ausência (existissem ou não os outros atos ilegais no julgamento) vulnera uma das exigências do direito europeu. Vale a pena notar que essa exigência de um 2º julgamento dentro da UE somente é recusada por Itália. Todos os países que não se regem pela Commom Law, exigem esse 2º julgamento. Ora, os que aceitam a Common Law não permitem o julgamento a revelia, nem mesmo sob a promessa de um 2º julgamento, porque entendem que o julgamento à revelia ataca o 2º princípio do direito natural, segundo o qual o réu tem direito de defesa pessoal. Deve ficar claro que, salvo os países que não usam a Commom Law, os outros aceitam o julgamento à revelia, desde que se reconsidere o julgamento presencial no caso de rendição do réu (voluntária ou por detenção). Portanto, o fato que o Tratado Brasil-Itália considere legal o julgamento à revelia, não torna legal o julgamento de Battisti, pois este não contempla a reconsideração presencial.
Em segundo lugar, a extradição violaria os direitos humanos do réu, uma vez que, como indicou detalhadamente a associação Antigone ao governo brasileiro, as condições de brutalidade das prisões italianas produzem, com alta probabilidade, morte por doenças não atendidas, loucura ou suicídio. Patrizio Gonella, presidente da ONG dirigiu em novembro de 2009 uma petição específica ao Presidente Lula, muito categórica, pedindo-lhe a libertação de Cesare e detalhando com precisão os perigos de homicídio e suicídio existente nos presídios italianos.
Em terceiro lugar, Battisti correria os riscos de perseguição tradicionalmente elencados em todos os acordos, protocolos e outros documentos de refúgio. Ele foi ameaçado com tortura pelo sindicato de carcereiros de Udine, e pelo ministro da defesa, Ignazio La Russa, e veladamente ameaçado de morte pelo sindicato dos carabineiros. Ameaças sem valor oficial, mas que representam perigo real são as que provêm da Associação AIVITER, que reúne aos familiares das chamadas “vítimas do terrorismo”.
Não houve ameaças diretas por parte dos setores que já foram neostalinistas e atualmente são neoliberais, mas não é necessário ser ameaçado por todos. Por exemplo, durante o recente governo de Prodi, alguns ministros tentaram conseguir assistência média para os presos políticos, mas os magistrados se recusaram, e o governo dito de “centro-esquerda” preferiu acatar esta decisão ilegal dos juízes, em vez de fornecer essa assistência.
Aliás, como foi indicado pelos juristas Dalmo Dallari, Silva Jardim, Paulo Bonavides, José Afonso da Silva e alguns outros, a exagerada pressão da Itália sobre Brasil, e os atos de retaliação que vão desde a represália diplomática e comercial até a desportiva e turística, passando pelas injúrias contra diversos setores da sociedade brasileira, isso só é suficiente para indicar que existe perseguição. Um raciocínio simples confirma isto: se a sede de vingança é tão ofuscante a 9 mil Km de distância, que aconteceria se o réu estivesse atrás das grades, nas mãos de seus perseguidores?
Ou seja, não estamos apenas no caso de fundados temores de perseguição, que é o exigido pela Convenção de 1951, os Protocolos complementares de 1967 e 1976, e a lei 9474, mas nos encontramos frente a um caso de absoluta certeza de perseguição “anunciada”.
Há muitas outras razões, uma qualquer das quais seria suficiente para tornar inválida a extradição. Inclusive são importantes as razões estritamente individuais, como o risco de vida e saúde que corre uma pessoa, mesmo em situações mais objetivas que as sofridas por Battisti, de ser deslocado a um sistema prisional como o 41-bis, cujo objetivo é aniquilar a saúde física e mental do réu.
Além de (1) falta de julgamento justo, (2) violação dos direitos humanos básicos do extraditado, (3) certeza de perseguição e agressão à integridade do prisioneiro, (4) riscos para a saúde, ainda existe um argumento que foi invocado várias vezes e que possui um caráter mais evidente que os outros: a condenação a prisão perpétua.
O argumento da prisão perpétua está escrito por extenso em documentos oficiais italianos, assinados e carimbados.
Na página 5 da sentença 24/93 com registro geral 40/91, correspondente à oitiva de 31 de março de 1993, consta que La Corte de d’Assise d’Apello di Milano (O Tribunal de Júri de Recursos de Milão) considera irrevogável (grifo meu) a seguinte condena (§ 2):
CONDENA [Cesare Battisti]
à pena de prisão perpétua (no original: ergástolo), com isolamento diurno por 6 meses, compreendida em tal pena aquela imposta por delitos já julgados.
(Veja em meu site, uma cópia pdf deste documento).
Isto é muito claro, e está escrito numa linguagem simples. Não há duvida que um veredicto ratificado pela Corte de Cassação, tem mais valor que qualquer promessa verbal. O antigo ministro da Justiça, Clemente Mastella, reconheceu a Alberto Torregiani, numa conversa reproduzida por vários jornais, entre os quais La Repubblica e Il Tempo (este último extremamente inimigo de Battisti), que a condição de que a pena máxima seria de 30 anos, foi uma concessão verbal feita para facilitar a negociação com o Brasil, mas que não seria cumprida.
Por outro lado, como observou Dalmo Dallari num artigo que foi publicado e reproduzido em muitos veículos da mídia brasileira, a Constituição Federal proíbe a prisão perpétua. Teoricamente, os únicos tratados que possuem a mesma validez que a Constituição são os de direitos humanos, mas nem isso está ainda claramente aceito por todos os países.
Já os tratados de extradição são simples acordos bilaterais, denunciáveis por qualquer uma das partes. No Brasil, o chefe de estado pode, inclusive, denunciar um tratado bilateral sem consultar o parlamento, salvo em dois casos: quando a rescisão do tratado produz prejuízo sensível à economia brasileira, e quando ele pode significar perigo de guerra.
A Liberação: Reflexões
Cesare Battisti esteve preso mais de 3 anos e meio, em arrepio às leis nacionais, à Constituição, ao Direito Humanitário e às convenções internacionais. Durante este período, ele recebeu mais 4000 assinaturas de apoio dos mais diversos setores, e foi alvo da defesa de duas excelentes equipes de advogados, e de declarações de suporte de mais de 90 parlamentares, centenas de operadores jurídicos, e de todos os maiores juristas do país. Seu caso foi comentado em mais de 1000 matérias de jornal e várias centenas de posts na Internet. No exterior, jornais prestigiosos como Le Monde se alinharam com sua causa.
As pessoas se avaliam não apenas pelos amigos que as amam, como pelos inimigos que as odeiam. Então, Battisti deveria sentir-se muito confortável. Na Itália, ele tem como inimigos os neofascistas, os corruptos, o que sobrou do naufrágio da democracia cristã, e os que eram stalinistas, porém já não são, porque o stalinismo, apesar de seu autoritarismo, exigia certo talento. Hoje, eles integram o oportunista e traiçoeiro Partido Democrático da “Esquerda” (as aspas são minhas). Ele foi quem, através de d’Alema, entregou o líder curdo Öcalam a seus inimigos turcos, não de maneira direta, mas através de uma cilada que tendeu junto com a CIA, a Mossad e a ditadura de Kenya.
No Brasil, Cesare mereceu a discriminação da cúpula do STF, dos membros do Opus Dei, de Cáritas, dos militares, e do setor mais sórdido do parlamento. Entre seus inimigos estão os que se opõem a igualdade racial, o direito das mulheres a seus corpos, a liberdade de orientação sexual, a eliminação da tortura, e assim por diante.
Entretanto, o fato de ter movido tantas emoções, exige algumas precauções para o futuro. No deve esquecer-se que o grupo terrorista DSSA, formado por policiais aposentados liderados pelo mercenário Gaetano Saya já tentou sequestrá-lo junto em 2004 com outros dois refugiados com uma operação dupla na Europa e na América Central. Não foi possível, porque a máfia dos sequestradores entrou em conflito com o exército italiano que só ofereceu 2 milhões de euros pelo serviço. (Saya argumentou ter em sua folha de pagamento cerca de 150 homens, apesar de que usaria muitos menos no operativo)
O caso Battisti é (por razões que estou ordenando em forma de livro), um dois mais graves casos de terrorismo judiciário da história contemporânea. Devemos reconhecer que é menos trágico e cruel que o de Olga Benário, Sacco e Vanzetti, os esposos Rosenberg, e o do pedreiro negro de Alabama, Jimmy Wilson, pois os cinco primeiros foram assassinados e o último cumpriu 15 anos de prisão.
Mas, o caso Battisti foi, em todos os sentidos, muito mais iníquo que o caso Dreyfus e, em alguns aspectos, constitui o mais tortuoso já conhecido. Por exemplo, é a única caçada que durou 30 anos, que envolveu três países, e que conseguiu unanimidade na mais baixa camada do lumpen que frequenta a imprensa marrom. Também, é um caso onde as leis foram violadas de maneira aberta, até com certa vaidade pelo vandalismo cometido. O STF não se acanhou em invadir a esfera do executivo, e isto mostrou até que ponto nossa aparente democracia é frágil, e poderia seguir um caminho como o de Honduras, se a sociedade não se mantiver mobilizada.
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