Alan Turing, pai da computação, sofreu castração química e foi proibido de entrar nos EUA por ser homossexual
por: Vitor Paiva
http://www.hypeness.com.br/2017/02/alan-turing-pai-da-computacao-sofreu-castracao-quimica-e-foi-proibido-de-entrar-nos-eua-por-ser-homossexual/
Para o grande matemático e cientista da computação inglês Alan Turing, não bastou ter ajudado intensamente a salvar a Inglaterra e o mundo da Segunda Guerra Mundial, nem ter inventado o computador, criado a base fundamental para os estudos sobre inteligência artificial ou mesmo os muitos anos de serviço à rainha decifrando códigos para o governo inglês – nada disso impediu que ele fosse processado, condenado, preso e severamente punido por sua orientação sexual. Turing foi um dos quase 50 mil homens detidos por serem homossexuais na Inglaterra. Antes de morrer, foi quimicamente castrado, proibido de trabalhar e de entrar nos EUA por conta de sua condenação.
Até
1967, ser homossexual na Inglaterra e no País de Gales era crime
passível de prisão. No resto do Reino Unido a situação é ainda pior: a
Escócia só descriminalizou relações homossexuais em 1980, e a Irlanda em
1982. Desde meados dos anos 2000, no entanto, a Inglaterra
tenta contornar os graves efeitos de tais leis, com o reconhecimento da
união entre pessoas do mesmo sexo, a legalização do casamento
homossexual e outras diversas medidas que banem e punem todo tipo de
discriminação. Até então, porém, as leis discriminatórias foram
cumpridas por séculos, e o efeito de tal perseguição é enorme: quase 50 mil homens foram condenados no país – entre eles o escritor Oscar Wilde e Alan Turing.
O matemático Alan Turing
Agora,
uma nova lei anulou tais condenações, “perdoando” esses “crimes”
passados. A decisão entrou em vigor no dia 31 de janeiro de 2017, e foi
batizada como Lei Turing, em homenagem ao matemático. É no
mínimo curioso ver o governo “perdoando” comportamentos que jamais
deveriam ou poderiam ser considerados crimes inicialmente (o crime, no
caso, foi do próprio governo em perseguir indivíduos por sua orientação
sexual), mas ainda assim é um importante passo dado pelo governo inglês
na direção da igualdade de diretos e pela reparação de absurdos que eram
vigentes, em uma perspectiva histórica, até ontem.
O escritor irlandês Oscar Wilde
Oscar Wilde foi condenado no auge de seu sucesso, em 1895 – cinco anos após a publicação da obra-prima O Retrato de Dorian Gray, e poucos meses após a estreia da grande peça de Wilde, o sucesso absoluto The Importance of Being Earnest. Wilde
foi condenado a dois anos de reclusão e trabalhos forçados, ao longo
dos quais ele viu sua saúde e reputação serem arruinadas.
Passado o período de encarceramento, depois de solto Wilde foi viver na
França, mas sua produção literária já era quase nula. Tomado pelo
alcoolismo e a sífilis, o escritor morreu em 30 de Novembro de 1900, em
Paris, com somente 46 anos.
O
caso de Alan Turing também se destaca (e batiza a lei) não só pela
importância para a humanidade dos estudos e trabalhos do cientista, mas
igualmente por seu triste fim. Em 1952 Turing foi condenado por
atos homossexuais e indecência (após admitir seu relacionamento com
outro homem) e, para escapar de ser preso, ele aceitou a castração
química como sua punição. Como se não bastasse as injeções que
lhe retiraram a libido, provocaram impotência e outras doenças, Turing
foi impedido de seguir seu trabalho de consultor de criptografia para o
governo (por perder sua permissão de acesso a informações confidenciais)
e proibido de entrar nos EUA. Dois anos depois, Turing morreu
por envenenamento, aos 42 anos (até hoje não se sabe se o cientista se
suicidou, se simplesmente ingeriu acidentalmente o veneno ou até mesmo
se foi assassinado).
Turing terminando uma maratona em sua juventude
Turing
já havia recebido “perdão” da Rainha em 2013, quando a Inglaterra enfim
legalizou o casamento homossexual, e antes, em 2009, o então
primeiro-ministro Gordon Brown havia publicamente feito um pedido de
desculpas oficial pela maneira “aterradora” com que o cientista foi
tratado. “Milhares de pessoas se uniram para exigir justiça
para Alan Turing e reconhecimento da forma aterradora com que foi
tratado. Ainda que Turing tenha sido tratado sob as leis da época e nós
não possamos voltar no tempo, seu tratamento foi evidentemente injusto e
eu tenho o prazer de ter a chance de pedir profundas desculpas por
todos pelo que lhe aconteceu. Então, em nome do governo britânico e de
todos que vivem em liberdade graças ao trabalho de Alan eu
orgulhosamente digo: Perdão, você merecia algo muito melhor”, afirmou Brown, quase 50 anos após a condenação.
A máquina desenvolvida nos fim dos anos 1930 e início dos anos 1940 por Turing para decifrar as mensagens nazistas
As
conquistas do trabalho de Turing são estupendas: ele não só foi a peça
fundamental para que as mensagens nazistas criptografadas fossem
traduzidas, encurtando em anos a segunda guerra mundial e salvando
estimadas 14 milhões de vidas, como desenvolveu máquinas e
trabalhos que se tornariam os passos fundamentais para o
desenvolvimento dos computadores modernos e dos avanços em inteligência
artificial.
As ‘costas’ do ‘computador’ de Turing……e o recheio, visto aqui em uma réplica criada recentemente
Paradoxalmente,
desde sua morte Turing passou a receber uma infindável coleção de
reconhecimentos das mais importantes universidades ou organizações do
mundo pela importância de seu trabalho. Desde 1966 um prêmio
batizado com o nome do matemático é oferecido pela Associação para
Maquinaria da Computação, de Nova York, para as maiores contribuições
teóricas e práticas dentro da comunidade da computação. A
importância do prêmio é tamanha (e assim, em igual proporção, a
importância do trabalho do cientista que o batiza) que o prêmio Turing é
considerado como o Nobel do universo da computação.
A famosa ‘placa azul’ que o governo inglês oferece aos seus cidadãos mais notáveis
O
absurdo desse tipo de lei (que, vale lembrar se repetiu em momentos
diversos da história em praticamente todos os países do mundo) não é
medido, é claro, pela excelência do trabalho dos homens que injustamente
tiveram suas liberdades ou vidas ceifadas simplesmente por amarem
outros homens. Seja contra um dos maiores cientistas da história, um dos
grandes escritores de todos os tempos, ou contra uma pessoa tida como
“comum”, a monstruosidade de tal lei é igual, e merece ser contornada,
corrigida e afastada ao lixo da história de forma exemplar e irrestrita.
A guinada por parte do governo inglês é uma importante conquista, e
reparar publicamente os erros do passado é o primeiro passo para que
tais práticas fiquem justamente onde merecem: em um vergonhoso, absurdo e
distante passado.
Turing aos 16 anos
Turing
tinha 40 anos quando foi condenado; Wilde tinha 45 anos quando foi
preso. Muitos outros, dentre os 50 mil homens que foram condenados
somente na Inglaterra (para não falar sobre o incalculável que se pesou
sobre homossexuais pelo mundo todo ao longo da história) não puderam
sequer realmente desenvolver seus trabalhos, ou simplesmente
viver sua vida como queriam, sem agredir, machucar ou mesmo atrapalhar
ninguém. Supor as contribuições que Turing, Wilde e tantos outros
poderiam ter oferecido caso o mundo fosse então (e ainda hoje) um lugar
simplesmente mais justo e igual é uma carona certa às lágrimas.
A vida de Turing foi contada no cinema no filme O Jogo da Imitação:
O
tamanho da injustiça de tais leis é a própria medida humana, mas o
gênio de Turing apagado pela ignorância ajuda a sublinhar o absurdo da
perseguição homofóbica e da burrice e irracionalidade nas quais tais
preceitos, de forma geral, são baseados. Se a reparação não pode sequer
começar a dar conta do horror da homofobia, que ao menos a dor desses
grandes homens, célebres ou não, sirvam hoje para que a injustiça não se
repita, nunca mais, não só de forma geral mas principalmente pelas mãos
do estado.
© fotos: divulgação
INÍCIO
Nenhum comentário:
Postar um comentário