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A fome, diariamente: “Quarto de despejo” | Carolina Maria de Jesus
Quando falo o nome deste livro para as
pessoas, falo sempre completo, com o subtítulo que soa tão cru: “diário
de uma favelada”. Carolina Maria de Jesus dispõe, em menos de 200
páginas de seu diário que engloba os anos de 1956 a 1960, uma vida
difícil de encarar de frente. É um relato sobre ser mãe solteira de três
crianças numa favela de São Paulo. Chorei várias vezes, inclusive na
rua, no ponto de ônibus… Este livro me inquietou muito e acho mesmo que
se trata de algo que todo mundo tem que ler.
Dentre todos os temas que aparecem na
narrativa de Carolina, sem dúvidas o que mais chama a atenção é a fome,
que praticamente passa a ser personagem. Tem cor e vontade própria.
Nunca a expressão “matar um leão por dia” foi tão palpável: Carolina sai
todos os dias de casa para catar papel e outras coisas para garantir a
comida do dia. Se não trabalha, não tem comida – não é que vai faltar comida no futuro, veja bem, já falta.
O tema da fome já ocupou mais nossos
noticiários. Hoje, não é difícil passar por propagandas de crianças em
condições miseráveis na África que pedem nosso apadrinhamento por uma
quantia irrisória. Aí a reportagem acaba, vem um outro anúncio qualquer,
e a gente desliga. Nossa atenção é desviada de algo que, para quem está lá, não é coisa que se esqueça.
Talvez seja esse o ponto mais duro e
desesperador do livro de Carolina Maria de Jesus: por ser um diário,
entramos de certa forma naquele cotidiano que não vê evolução. Não é uma história com começo, meio e fim, mas o repetir diário das mesmas coisas: fome, trabalho, miséria e hostilidade.
Há dias menos piores, que assim parecem talvez não por causa de algo
material, mas pelo tom ameno ou esperançoso de Carolina, pelo sentimento
dela naquele momento específico. Da mesma forma, existem também os dias
que conseguem ser mais baixos do que eu conseguiria imaginar, quando
Carolina pensa em chamar seus filhos para morrer. Não consigo pensar no
que deve ser isso para uma mãe.
Saí desta leitura pensando que, quando
eu for professora, vou trabalhar com esse livro nas escolas. Penso,
aliás, que deveria fazer parte da grade curricular ao lado de outras
obras já clássicas, porque este é um relato denúncia da realidade
brasileira. Talvez parte do sucesso estrondoso que esta publicação
alcançou tenha sido devido ao olhar profundo e consciente de Carolina,
que fugindo da norma culta do português entrega um texto poético e
crítico.
A autora tem plena consciência de seu
lugar na sociedade, de sua condição de marginalizada, e expõe as
profundas desigualdades do mundo em que vive: a grande cidade de São
Paulo, com seus ricos e poderosos, as grandes construções imponentes,
que contrastam com os barracos de tábuas e papelão e os pés descalços da
favela. Relata as promessas vazias dos políticos que, vindos sempre de
outros contextos sociais, só pisam na favela e se interessam pelas
pessoas que ali vivem quando é chegada época de eleições; ou ainda
aqueles que distribuem pão nesta época, esperando serem lembrados na
hora da votação.
O racismo da sociedade brasileira é
também assunto central. Carolina vê na divisão da cidade uma divisão de
cores, também uma marca do lugar que o negro ocupa em um país que há 70
anos havia abolido a escravidão, mas que persiste em tratar o negro como
coisa, e mais, empurrá-lo para fora, para longe. A miséria do negro é
praticamente naturalizada, a ponto de fazer-se invisível para uma
sociedade que, há pouco kilômetros da favela, vive na opulência.
Carolina pode “passear” com seu pesado saco de papel, em roupas sujas e
cheirando mal por não ter dinheiro para comprar sabão para lavar-se
direito, e isso é normal, não provoca indignação. Quando muito, se com
algum dos filhos ainda crianças, recebe uma pequena esmola.
Por fim, gostaria de indicar pelo menos um capítulo do livro Comunidade, do sociólogo Zygmunt Bauman (aquele do livro Modernidade líquida).
O capítulo em questão, de número 8 e intitulado “O nível mais baixo: o
gueto”, traz argumentos que ajudam muito a entender as ponderações de
Carolina acerca das pessoas na vida na favela. A autora afirma
constantemente que as pessoas na favela são horríveis, relata cenas de
violência e exploração mútua que quebram muito a ideia de que o pobre se
ajuda. Embora isso possa, sim, acontecer (Carolina chegar a dar roupa,
comida e cama a quem precisa em alguns momentos), não se trata da norma.
Bauman, ao falar sobre a ideia de comunidade na sociedade
contemporânea, toca justamente nesta falta de ligação entre as pessoas,
notadamente em guetos (como as favelas), onde o senso de segurança é
pequeno ou nulo e, devido às configurações da sociedade capitalista, há
uma dificuldade em criar mobilizações coletivas em torno de um objetivo
comum. Estou simplificando aqui ao extremo, mas acredito que vale muito a
pena a leitura (são apenas dez páginas), pois ajuda a compreender o
ambiente hostil da favela.
Existem ainda um sem número de temas e
assuntos que poderiam ser explorados a partir da leitura deste livro.
Até por isso penso que, se tantas vezes nas escolas escolhemos o Diário de Anne Frank,
poderíamos muito bem escolher este diário aqui, repleto de denúncias de
problemas que ainda não resolvemos ou que estão sendo agora
intensamente debatidos. Carolina de Jesus chega a dizer, ainda nas
páginas iniciais, que o Brasil deveria ser governado por alguém que já passou fome. Lembrei do Lula, do Bolsa Família e
da iminência, agora, de perdermos essa renda mínima que é pouco, mas
ajuda. Afinal de contas, quem empregaria uma pessoa tonta de fome ou
exalando mal cheiro por não ter condições financeiras de boa higiene?
Prevejo uma discussão riquíssima deste livro, que será debatido no Leia Mulheres em Belo Horizonte.
Sesc Palladium
Av. Augusto de Lima, 420 – 4º andar – Espaço Multiuso
25/05, quarta-feira, às 19:30 Evento no Facebook
Sesc Palladium
Av. Augusto de Lima, 420 – 4º andar – Espaço Multiuso
25/05, quarta-feira, às 19:30 Evento no Facebook
Por fim, recomendo um programa especial
sobre Carolina Maria de Jesus, realizado pela TVE do Rio Grande do Sul.
No programa, há a intensa participação de Conceição Evaristo, autor
belorizontina também já discutida no Leia Mulheres (fevereiro/2016).
INÍCIO
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