domingo, 7 de maio de 2017

Winnicott - Conceitos - "Os conceitos de verdadeiro e falso self e suas implicações na prática clínica"




https://www.youtube.com/watch?v=9KV5GcelOfo




Os conceitos de verdadeiro e falso self e suas implicações na prática clínica

The true and false self concepts and its implications on clinical practice

Gabriela Bruno Galván; Maria Lúcia Toledo Moraes Amiralian
Universidade de São Paulo

http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-03942009000200005

RESUMO
O objetivo deste artigo é refletir sobre os conceitos de verdadeiro e falso self e sua manifestação na clínica contemporânea; bem como as possibilidades de intervenção a partir da psicanálise winnicottiana. O conceito de falso self proposto por Winnicott é de grande valia para se pensar nos relatos recorrentes de pessoas que procuram análise ao viverem episódios de angústia intensa e esvaziamento do sentido da vida, ao mesmo tempo em que não encontram, seja em seus relacionamentos afetivos, seja em sua vida profissional, nada que justifique este sentimento de irrealidade e vazio. Por meio da discussão de um caso clínico, os conceitos de verdadeiro e falso self são articulados com a prática e abrem a reflexão para o papel de espelho do analista, no manejo destes casos.

Palavras-chave: Si-mesmo, Winnicott, Psicoterapia psicanalítica, Estudo de caso.

 

ABSTRACT
The objective of this article is to reflect about the concepts of true and false self and their manifestations in contemporary clinic; as well as the possibilities of intervention using Winnicott's psychoanalysis. The false self concept proposed by Winnicott is of great value to think about the recurrents reports of persons that search for analysis after experiencing intense anguish episodes and emptying of the sense of life, and simultaneously they cannot find, neither in their affective relationships nor in their professional lives, anything that could justify such feeling of unreality and emptiness. Through the discussion of a clinic case, the concepts of true and false self are articulated with the practice and open the reflection to the analyst's mirror role in the management of those cases.

Keywords: Self, Winnicott, Psychoanalytic psychotherapy, Case study.


Introdução
A clínica contemporânea apresenta desafios significativos ao analista no que se refere ao diagnóstico e consequente manejo dos casos, principalmente daqueles que adquiriram certa estruturação psíquica refletida em conquistas sociais; como formação acadêmica, exercício profissional eficiente e/ou relacionamentos afetivos mais ou menos satisfatórios. Todavia, esses pacientes procuram análise ao se depararem com vivências de extrema angústia, que parecem descoladas de sua realidade, sendo que além de não conseguirem nomear estes estados e dar-lhes significado próprio, vivenciam a sensação de uma não compreensão de si, um não saber, uma ausência de sentido de si mesmo.
Este trabalho tem como objetivo refletir sobre essa angústia que se apresenta ao indivíduo a despeito de sua vida estar aparentemente correndo de forma "satisfatória" e dentro do esperado pelo meio que o cerca e até por ele próprio. Alguns casos clínicos suscitaram essa reflexão, por terem como eixo comum a queixa de uma ausência de sentido para os sofrimentos vividos. Em algum momento de suas vidas, essas pessoas foram surpreendidas por certa perplexidade diante de sentimentos como angústia, tristeza e vazio. Procuraram análise, porém convencidas que seu sofrimento era descabido diante de sua realidade: ou seja, avaliavam a sua existência a partir de parâmetros externos e, sob esse olhar, não encontravam uma coerência entre o que pensavam que deveriam sentir e aquilo que realmente sentiam. A possibilidade de se perceber tendo necessidades e vontades que não estavam de acordo com o que consideravam correto, normal, geral e esperado era algo assustador e ameaçador.
Para refletir sobre essa vivência, recorro à teoria do amadurecimento de Winnicott, que permite alcançar uma compreensão profunda acerca dessa questão. Olhando a partir desse referencial teórico, é importante destacar um princípio básico: para que possa se constituir como um indivíduo, o ser humano conta com um potencial inato em direção ao amadurecimento, que necessita de um ambiente facilitador para se realizar. Este potencial herdado é o que Winnicott (1983) vai chamar de self central ou verdadeiro.
Bollas (1992) destaca dois aspectos fundamentais do verdadeiro self. Um deles diz respeito à questão do verdadeiro self como potencial herdado e o outro à importância da experiência como possibilidade de existência. Aqui, o que se quer frisar é o fato de que em se tratando de um potencial, o verdadeiro self não tem forma ou significado a priori, não está estabelecido ao nascimento, no sentido que não é estático; ele "encontra sua expressão nos atos espontâneos" (Bollas, 1992, p.20). A importância da experiência na constituição do verdadeiro self decorre justamente deste aspecto potencial apontado acima. É por meio da experiência e, necessariamente da experiência vivida na relação com um outro, que podemos entrar em contato com o verdadeiro self. Ou seja, é por meio da experiência que o potencial herdado ganha contorno e pode emergir.
Se devemos estabelecer uma teoria para o self verdadeiro, acho que é importante enfatizar como esse self-essência é a presença singular do ser que cada um de nós é; o idioma da nossa personalidade (....) No entanto, o idioma da pessoa não é um texto escondido e enfurnado na biblioteca do inconsciente, esperando por sua divulgação através da palavra. É mais um conjunto de possibilidades pessoais únicas, específicas desse indivíduo e sujeitas, em suas articulações à natureza da experiência vivida no mundo real. (Bollas, 1992, p.21-22).
Safra (2005) acrescenta que o self central é o potencial herdado que "é experienciado como uma continuidade de ser, e que adquire em seu próprio modo e em sua própria velocidade uma realidade psíquica e esquema corporal pessoais" (p.41). Para este autor, o que um ser humano pode ser capaz de conhecer de verdade é aquilo que ele é capaz de criar; no sentido de conceber subjetivamente o mundo e ter a vivência de criá-lo, sem que a externalidade se imponha precoce e invasivamente.
O self verdadeiro necessita à sua maneira e em seu tempo, a partir do contato com o ambiente facilitador, adquirir uma realidade psíquica pessoal que lhe permita sentir-se real, sentir que o mundo é real e experimentar a continuidade de sua existência. "O gesto espontâneo é o self verdadeiro em ação. Somente o self verdadeiro pode ser criativo e sentir-se real" (Winnicott, 1983, p.135)
Para que seja possível a expressão do verdadeiro self é necessário que algumas condições tenham sido garantidas desde o início do desenvolvimento. Safra (2005) descreve esse início em termos do encontro do corpo do bebê com o corpo materno: "as experiências organizam-se em formas sensoriais: de sons, de calor, de tato, de ritmos, de motilidade, entre outras. Estes inúmeros registros são presenças de vida, de ser. São fenômenos em que a presença da mãe é o self da criança" (p.78). Por meio da elaboração imaginativa das funções do corpo, em contato com um outro, o corpo vai se tornando soma, "corpo psíquico". Nesse momento do desenvolvimento não há diferenciação mãe-bebê, do ponto de vista do bebê; é o momento da dependência absoluta, onde a mãe-ambiente necessita fornecer as condições básicas de sustentação que permitam a realização paulatina e ininterrupta do vir-a-ser do bebê.
Dessa forma, o papel do ambiente no momento inicial de dependência absoluta é a adaptação sensível e total às necessidades do bebê. A mãe suficientemente boa permite que o bebê crie o mundo e viva a ilusão de onipotência. Assim, o self verdadeiro pode se manifestar na medida em que não há ameaças à sua continuidade.
No estágio da dependência absoluta, o bebê nada sabe do mundo exterior, relaciona-se com um objeto subjetivamente concebido, experiência que lhe permite construir a base de confiança inicial para caminhar rumo à integração e à separação eu - não eu. Esta separação pode acontecer na medida em que há a aquisição da capacidade de relação com um objeto objetivamente percebido. Se acontecer um surgimento precoce, no sentido de anterior à prontidão do bebê, do objeto objetivamente percebido, "o bebê terá um desenvolvimento egoico ‘prematuro', em detrimento de seu sentimento de self" (Outeiral, 2001, p.86).
Khan (1984) acredita que de todo indivíduo tem o senso da totalidade de seu self e "que esta experiência de self pode ficar deslocada ou oculta, ou pode até deixar de personalizar-se, caso o cuidado ambiental na infância não favoreça a sua adaptação" (p.367).
Pensando em um desenvolvimento saudável, por meio da existência corporal e da elaboração imaginativa das funções corpóreas, o bebê caminha no sentido da integração no tempo e no espaço, descobre o mundo e, ao mesmo tempo, realiza o alojamento da psique no corpo. Dessa forma o indivíduo se desenvolve a partir do centro e "o contato com o ambiente é uma experiência do indivíduo (em seu estado de ego-id indiferenciados, a princípio)" (Winnicott, 2000, p.297).
Como contraponto, temos uma forma encontro bebê-ambiente, onde não há adequação ao movimento do bebê; o que caracteriza a intrusão do ambiente e, no lugar da vivência de experiências individuais, temos reações à intrusão. Isso pode gerar uma forma de existência onde um padrão externo marque a individualidade do ser, e o que ocorre é uma constante adaptação a esse padrão: "A mãe implementa no sentido de realizar o gesto do bebê através de sua própria resposta. Se ela é incapaz de responder a ele através da identificação, ele deve compulsivamente se submeter para poder sobreviver" (Phillips, 2006, p.190). Podemos dizer que o indivíduo que não pode ser, reage.
As falhas de maternagem em um momento primitivo do amadurecimento prejudicam o indivíduo justamente em seu sentimento de ser, na constituição de um si mesmo que se reconheça como tal. O falso self surge no contato com uma mãe "incapaz de reconhecer, autenticar e confirmar a singularidade ímpar de seu bebê, obrigando-o a se submeter e acomodar às insuficiências dela" (Doin, 2001, p.225). Diante da falha ambiental, o falso self se constitui como uma tentativa de substituição da função materna que falhou, na busca de proteger o verdadeiro self e dar-lhe condições para se desenvolver: "trata-se (o falso self) de uma forma primitiva de auto-suficiência na ausência do cuidado. Ele começa a emergir, em sua forma mais severa, na infância" (Phillips, 2006, p.190)
Podemos, então, entender o falso self como uma defesa que oculta e protege o verdadeiro self. Na medida em que o verdadeiro self é a fonte dos impulsos pessoais (Winnicott, 1994, p.36), a existência por meio de um falso self torna a vida esvaziada de sentido e permeada por um senso de irrealidade e de que a vida não vale a pena.
Mello Filho (2001) aponta a necessidade das pessoas com predominância de defesa do tipo falso self, de esconder e negar a sua realidade interna, na medida em que a perda ou o abandono, ainda que parcial, do falso self, desperta temores de perda de limites, desintegração, aniquilação. Assim, a vivência de irrealidade também decorre do fato destes indivíduos experimentarem sentimentos e impulsos não condizentes com a idealização mental estruturada e mantida à custa de uma inibição mais ou menos rígida de sua espontaneidade e criatividade.
A mente é a principal morada do falso self, disse-nos muitas vezes Winnicott, contrastando-o com o verdadeiro self, relacionado aos processos fisiológicos básicos, principalmente ao funcionamento do coração e à respiração. Assim, a intelectualização é uma das expressões mais frequentes de indivíduos falso self, que pretendem, com uma hipertrofia de seus aspectos intelectuais, encobrir tudo aquilo que é mais genuinamente humano, instintivo, vital. (Mello Filho, 2001, p.151).
Winnicott postula diversos níveis de falso self, considerando desde uma atitude social, não patológica, no sentido da renúncia à onipotência e garantia do convívio social - presente na saúde - até o falso self que se implanta como real, em total submissão, onde o self verdadeiro permanece oculto, o que implica na ausência do que poderíamos chamar de gesto espontâneo. No grau extremo existe um sentimento de vazio, de que a vida não vale a pena, que não há razão para viver; nos graus menos extremos Winnicott (1990) aponta para uma organização secundária cindida, ou seja, uma possível regressão diante de dificuldades encontradas num estágio posterior do desenvolvimento, o que nos faria supor algum grau de sucesso na estruturação inicial primitiva. Esta diferenciação traz consequências no trabalho clínico, em termos de diagnóstico e intervenção.(...)

INÍCIO 

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