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Para o professor da Universidade de Coimbra, a
peleja entre ideais democráticos e capitalismo em crise levará a
rupturas do calibre das revoluções do início do século 20. “Esperemos
que menos violentas”
por Sarah Fernandes
publicado
08/01/2017 11h50,
última modificação
26/01/2017 17h53
Pouca gente no planeta observa a geopolítica mundial com a lucidez de Boaventura de Sousa Santos. Catedrático aposentado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Portugal, e professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de Wisconsin, Estados Unidos, Boaventura é também profundo conhecedor da realidade do Brasil, onde passou a ser mais conhecido no início deste século, ao organizar e participar de edições do Fórum Social Mundial, e onde esteve recentemente para lançar seu novo livro, A Difícil Democracia (Editora Boitempo).
Ao analisar o complexo cenário político e econômico
global, o professor considera incompatível a coexistência entre a
democracia e as modernas sociedades capitalistas. Para ele, a
democracia, limitada ao nível do sistema político, sempre sucumbe, na
prática, aos três modos de dominação de classes: capitalismo,
colonialismo e patriarcado. O resultado, com alguma variação de tons
aqui e ali, é a prevalência de um fascismo social. Tome-se o caso
brasileiro no qual, segundo Boaventura, a democracia tinha mais
intensidade antes do “golpe parlamentar-midiático-judicial” do que tem
agora. Agora, a simples composição do governo mostra como a democracia
está mais capitalista, colonialista e patriarcal. E o que tem o fascismo
social a ver com isso?
Sua definição das situações em que o fenômeno ocorre
soará familiar: quando uma família tem comida para dar aos filhos hoje
mas não sabe se a terá amanhã; quando um trabalhador desempregado se vê
obrigado a aceitar as condições ilegais que o patrão impõe; quando uma
mulher é violada a caminho de casa ou é assassinada em casa pelo
companheiro; quando povos indígenas são expulsos de suas terras ou
assassinados impunemente por capangas a serviço de latifundiários;
quando jovens negros são vítimas de racismo e de brutalidade policial
nas periferias das cidades.
“Em todos estes casos, as vítimas são formalmente
cidadãos, mas não têm realisticamente qualquer possibilidade de invocar
eficazmente direitos de cidadania a seu favor”, define o professor. As
vítimas de fascismo social, portanto, não são consideradas plenamente
humanas, como ele resume. Boaventura vê ainda nos planos do atual
governo um potencial devastador, de definhamento da democracia e de um
aumento brutal do fascismo social. Confira entrevista para a Revista do Brasil, disponível apenas no site.
É possível funcionar uma democracia plena em um sistema capitalista globalizado, neoliberal e com mídia oligopolizada?
Nas sociedades capitalistas em que vivemos e que,
aliás, além de serem capitalistas, são colonialistas e patriarcais, não é
possível democracia plena porque ela só opera (e mesmo assim com muitos
limites) ao nível do sistema político, enquanto as relações sociais
diretamente decorrentes dos três modos de dominação (capitalismo,
colonialismo e patriarcado. Ou seja, as relações patrão/trabalhador,
branco/negro ou indígena, homem/mulher) só muito marginalmente podem ser
democratizadas a partir do atual sistema político. Aliás, torna-se
virtualmente impossível quando o sistema político é, ele próprio,
dominado por patrões, por homens e por brancos. Ao deixar um vasto campo
de relações sociais por democratizar, a democracia é sempre de baixa
intensidade. Mas obviamente há graus de intensidade e os graus contam
muito na vida das pessoas. A democracia brasileira tinha mais
intensidade antes do golpe parlamentar-midiático-judicial do que tem
agora. A simples composição do governo mostra como a democracia é agora
mais capitalista, colonialista e patriarcal.
O que seria a democracia do futuro? Em que ela precisa romper com a democracia que temos hoje?
A democracia que temos não tem futuro, porque as
forças sociais e econômicas que atualmente a dominam e a manipulam estão
possuídas de uma tal voracidade de poder que as impede de aceitar os
resultados incertos do jogo democrático sempre que estes não lhes
convêm. A manipulação midiática e a fraude eleitoral (constitutiva no
caso dos Estados Unidos) vão acabar por retirar qualquer vestígio de
credibilidade à democracia. Nessas condições, a luta pelo ideal
democrático vai implicar no futuro próximo uma ruptura do mesmo calibre
das revoluções da primeira metade do século 20. Esperemos que menos
violenta. Será uma democracia de tipo novo que procurará garantir o
máximo de autonomia do sistema político em relação aos três modos de
dominação acima referidos – para o que será necessária uma Assembleia
Constituinte originária – para a partir desse sistema político: a)
pressionar até o limite a dominação capitalista em nome da igualdade
socioeconômica por via da redistribuição da riqueza, dos direitos
laborais, do acesso à terra, da tributação progressiva, do
reconhecimento de outras formas de propriedade para além da privada; e
b) pressionar até ao limite a dominação colonialista e patriarcal em
nome do reconhecimento da igual dignidade das diferenças raciais,
etnoculturais e de gênero. Ao contrário do que aconteceu até agora, as
duas pressões são igualmente importantes e têm de ser simultâneas. Na
medida em que tiverem êxito, as duas pressões irão deixando emergir uma
outra matriz social e política que muitos chamarão socialismo, se por
socialismo entendermos democracia sem fim.
E como isso seria possível?
O sistema político terá de combinar democracia
representativa e participativa, o pluralismo econômico será o outro lado
do pluralismo político, a ecologia será a medida do crescimento
econômico e não o contrário, como acontece agora, e a educação será a
prioridade das prioridades, orientada para democratizar,
desmercantilizar, descolonizar e despatriarcalizar as relações sociais.
As condições para ruptura são imprevisíveis e podem implicar muito
sofrimento humano injusto. O importante é ter ideias para as pôr em
prática quando o momento chegar e convicções para distinguir rupturas
dos novos disfarces da continuidade. Até agora, as ideias de ruptura
estão a vir da direita e não da esquerda, como bem ilustra a eleição de
Donald Trump e o crescimento da extrema-direita na Europa. O sistema
disfarça-se de antissistema para aprofundar o seu domínio e a sua
capacidade de exclusão.
No livro A Difícil Democracia,
o senhor observa que temos uma democracia de baixa intensidade e que
“vivemos em sociedades politicamente democráticas e socialmente
fascistas”. Que impactos isso causa no funcionamento da sociedade e por
que chegamos nesse ponto?
As situações de fascismo social ocorrem sempre que
pessoas ou grupos sociais estão à mercê das decisões unilaterais
daqueles que têm poder sobre eles. Exemplos de fascismo social: quando
uma família tem comida para dar aos filhos hoje, mas não sabe se a terá
amanhã; quando um trabalhador desempregado se vê na contingência de ter
de aceitar as condições ilegais que o patrão lhe impõe para poder
sustentar a família; quando uma mulher é violada a caminho de casa ou é
assassinada em casa pelo companheiro; quando os povos indígenas são
expulsos das suas terras ou assassinados impunemente por capangas ao
serviço dos agronegociantes e latifundiários; quando os jovens negros
são vítimas de racismo e de brutalidade policial nas periferias das
cidades. Em todos estes casos, estou a referir situações em que as
vítimas são formalmente cidadãos mas não têm realisticamente qualquer
possibilidade de invocar eficazmente direitos de cidadania a seu favor. A
situação agrava-se quando se trata de imigrantes, refugiados etc. Por
exemplo, a situação de trabalho escravo de milhares de imigrantes
bolivianos nas fábricas de São Paulo. As vítimas de fascismo social não
são consideradas plenamente humanas por quem impunemente as pode agredir
ou explorar.
Manipulações midiática e eleitoral abalam a credibilidade da democracia. A simples composição do governo mostra como a democracia é agora mais capitalista, colonialista e patriarcal
Mas o fascismo não tem apenas a face violenta. Tem
também a face benevolente da filantropia. Na filantropia quem dá não tem
dever de dar e quem recebe não tem direito de receber. Em tempos
recentes, a classe alta e média alta do Brasil ressentiu muito que as
empregadas domésticas ou os motoristas já não precisavam dos favores dos
patrões para comprar um computador aos filhos ou fazer um curso.
Ressentiam o fato de os seus subordinados se terem libertado do fascismo
social. Quanto mais vasto é o número dos que vivem em fascismo social,
menor é a intensidade da democracia.
O senhor classifica como esquerda um conjunto de
teorias e práticas que resistiram ao capitalismo e à crença em um futuro
pós-capitalista, mais justo, centrado na satisfação das necessidades
dos indivíduos e da liberdade. O quanto a esquerda de hoje se aproxima
desse conceito?
Desde a queda do Muro de Berlim a esquerda mundial
perdeu a memória e a aspiração de uma sociedade pós-capitalista. Na
América Latina, os movimentos indígenas vieram trazer para a agenda
política, sobretudo na primeira década do século 21, uma alternativa
vibrante ao socialismo, o buen vivir (sumak kawsay
em quíchua, “bom viver”) dos povos andinos como matriz de
desenvolvimento não capitalista. Essa nova matriz foi consagrada nas
Constituições do Equador de 2008 e da Bolívia de 2009. Infelizmente, a
prática política tem vindo a contradizer a Constituição. No fundo, a
esquerda latino-americana foi sempre muito eurocêntrica e, por vezes,
racista, sobretudo em relação aos povos indígenas e quilombolas. O
problema da esquerda neste momento é não ter uma resposta progressista
para crise do neoliberalismo que se avizinha. A eleição de Donald Trump e
o crescimento da extrema-direita na Europa mostram que as forças de
direita estão mais bem posicionadas para impor uma resposta reacionária.
Por que o senhor afirma em seu livro que Cuba se transformou em um problema para a esquerda?
Quando, na primeira década do novo milênio, se
começou a discutir no continente o socialismo do século 21, algo inédito
em nível mundial, muitas vozes (a minha incluída) advertiram que tal
discussão só faria sentido se primeiro discutíssemos os erros do
socialismo do século 20. Acontece que Cuba era um dos socialismos do
século 20 e haveria de incluí-lo na crítica. Muitos companheiros acharam
que tal crítica acabaria por vulnerabilizar ainda mais a corajosa luta
do povo cubano ante a agressão do imperialismo norte-americano e o
infame embargo. O capítulo do livro a que se refere foi escrito a partir
de uma perspectiva socialista e solidária para com a luta do povo
cubano. O texto foi muito bem recebido em Cuba por intelectuais que
muito respeitamos, mas a publicação foi embargada por ordens superiores.
Como vai a esquerda reagir se Cuba caminhar para uma solução de
capitalismo de Estado à la chinesa ou à la vietnamita? Mas mais
problemático ainda é como a esquerda reagirá a algo que tem vindo a
querer desconhecer: como reagir ao fato de em vários países da Europa
Oriental as sondagens de opinião revelarem repetidamente que a maioria
da população destes países considera que vivia melhor no tempo do
socialismo de Estado?
O Brasil da era Lula é citado como nova potência
“benévola e inclusiva”. Quais foram os limites desse modelo? Como o
Brasil pode ser classificado agora?
O Brasil de Lula foi o produto de uma conjuntura que
dificilmente se repetirá nos próximos tempos. Tratou-se da alta dos
preços dos recursos naturais e agrícolas impulsionada pelo
desenvolvimento da China (e também por especulação). Permitiu que se
realizasse uma notável diminuição da pobreza sem que os ricos deixassem
de enriquecer, sem que o sistema político e a prática política fossem
democratizados, sem que se fizesse reforma tributária, do sistema
financeiro e dos meios de comunicação. E sem que se pusesse em causa, e
antes se aprofundasse, um modelo de crescimento assentado na
desindustrialização, na destruição do equilíbrio ecológico do país e na
imposição de sofrimento injusto e ilegal (à luz do direito interno e
internacional) aos povos indígenas, aos camponeses e às populações
ribeirinhas. Todas estas omissões foram os limites do modelo do período
Lula, um modelo tão brilhante nos êxitos do curto prazo, como leviano no
descuidar das suas condições de sustentabilidade. O Brasil de agora é
politicamente uma sociedade mais capitalista, mais colonialista e mais
patriarcal do que era antes do golpe, e por isso menos democrática e com
mais fascismo social.
O problema da esquerda é não ter resposta progressista à crise do neoliberalismo. Trump e a extrema-direita europeia mostram que a direita está mais bem posicionada para impor uma resposta reacionária
Se o futuro da esquerda não será uma continuação linear do seu passado, como será esse futuro?
Estamos num período de bifurcação política, uma
conjuntura altamente instável que pode caminhar em uma de duas direções
opostas: ou o fascismo social se expande e se transforma em fascismo
político; ou as forças democráticas prevalecem antecipando-se às forças
de direita que se posicionam para “resolver” a crise do neoliberalismo
que se avizinha – uma crise que elas próprias criaram com a colaboração
ativa de alguma esquerda rendida à “evidência” do pensamento único. A
esquerda só tem futuro no segundo caso, e para isso tem de se refundar
numa dupla crença: os grandes empresários, os banqueiros e a mídia
corporativa a serviço dele nunca aceitarão a “paz e amor” com as forças
de esquerda. Quem governa à direita tem não só o controle do governo,
como também o do poder social, econômico e político no seu sentido mais
amplo. Quem governa à esquerda só tem o controle do governo e o tem de
usar para neutralizar os outros poderes fáticos. Perante essa
assimetria, governar à esquerda é sempre governar contra a corrente, com
tolerância zero com a corrupção e dando prioridade à reforma do sistema
político de modo a autonomizá-lo o mais possível em relação aos poderes
que reproduzem a dominação capitalista, colonialista e patriarcal. Os
lideres adequados a essa esquerda terão de ser muito diferentes dos
atuais, centrados em ampliar e manter autônomas e ativas as organizações
de cidadãos e cidadãs segundo mecanismos de democracia participativa. O
poder político das forças de esquerda será tanto maior quanto mais
amplamente for partilhado por quem não se considera “político”.
Há também um refluxo do neoliberalismo em toda a América Latina. Como a esquerda reagirá a esse contexto?
A esquerda latino-americana perdeu uma grande
oportunidade histórica. Na primeira década do novo milênio o
neoliberalismo estava na defensiva no continente devido à guerra no
Iraque. Os governos de esquerda fizeram sonoras declarações contra o
neoliberalismo e o imperialismo, mas não se envolveram com entusiasmo
(sobretudo os países maiores como o Brasil) na implementação de
políticas regionais que blindassem o continente depois da exaltante
vitória da luta continental contra a Alca e tornassem a solidariedade
regional numa prática consistente. Organizações como a Alba, Unasur,
Banco do Sul foram sendo negligenciadas, tal como o próprio Mercosul.
Os erros da esquerda explicam a retomada neoliberal?
Hoje, o neoliberalismo na América Latina tem dois
nomes: o imperialismo norte-americano e o imperialismo da União
Europeia. A esquerda latino-americana está despreparada para combater
eficazmente esse perigo para as forças progressistas. Desde que a
Teologia da Libertação foi praticamente banida por papas reacionários, a
esquerda deixou de saber onde moram os desgraçados, condenados,
excluídos, silenciados, ressentidos do continente. E se soubesse onde
moram, não saberia como falar com eles. Parafraseando um grande marxista
deste continente, José Carlos Mariátegui (pensador peruano),
o pecado capital da esquerda latino-americana é ter-se esquecido dos
desgraçados e desgraçadas do continente, levada pela miragem da
conquista de supostas classes médias que no continente sempre estiveram
ao lado das oligarquias.
Quais podem ser os impactos de uma medida que
limita gastos públicos por 20 anos para a democracia brasileira e para a
sociedade?
Devastador. Anuncia um brutal aumento do fascismo
social e o consequente definhamento da democracia. Trata-se de uma
medida provocatória destinada a mostrar às classes populares que não
poderão mais acreditar nas promessas da esquerda e que o pouco que
poderão esperar do Estado é o que lhes for dado pela direita. Espero que
os brasileiros e as brasileiras tornem o país ingovernável aos poderes
que os querem governar com tais medidas.
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