quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Classe média: a guardiã do espírito capitalista


Classe média: a guardiã do espírito capitalista


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Classe média: a guardiã do espírito capitalista
Por Raphael Silva Fagundes
A classe média se vê como a guardiã do espírito do capitalismo. Monta ronda e condena todos aqueles que agem contrários a essa entidade secular. Mas, no que consiste esta economia moral que deu corpo ao sistema econômico que se alastrou por várias partes do mundo?
As virtudes capitalistas
Max Weber enumera algumas sentenças que Benjamin Franklin julga imprescindíveis para a prosperidade de um negócio. São elas: não desperdiçar o tempo em “vadiagem e diversão”; “pontualidade”; “industriosidade”; “frugalidade”; “prudência”; e, enfim, “honestidade”. Esses elementos compõem o ethos que alimenta o esplendor da sociedade capitalista. Virtudes que devem ser seguidas como regras.
A classe média tem o prazer de dizer que sustenta o político e o favelado. Reclama com ardor quando vocifera que o pobre não paga impostos. Declama em letras garrafais que banca as políticas sociais. Irrita-se quando descobre os escândalos de corrupção tanto do político quanto dos empresários. Essas atitudes são críticas que faz a esses indivíduos justamente pelo fato de violarem as virtudes que tanto preza.

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 O trabalho, a virtude chave, é “uma vocação necessária ao capitalismo”, observa Weber. A classe média se vê como aquela que trabalha, paga os impostos, o que dá a ela o direito de julgar, a partir da mesma fonte de valor, qualquer um que ouse descumprir os princípios descritos pelo iluminista estadunidense. Para ela, todos devem estar submetidos ao mesmo princípio moral independente das circunstâncias reais de existência. Aliás, as circunstâncias são desculpas para não trabalhar. Assim, o pobre é pobre porque não se esforça, não quer trabalhar e desperdiça o seu tempo na vadiagem. Ele é ilegal, porque é irregular e desonesto, devido ao estigma do seu meio como um lugar de delinquência e falta de segurança.



O pobre, não só nas sociedades ricas, como observa Loic Wacquant, mas também por aqui, adquire o status de “anomalia social e perde o controle sobre sua representação e sua identidade coletiva”. Daí a sua industriosidade, sua criação autônoma, é ameaçada, como podemos ver nas discussões que levantaram a sugestão de criminalizar o funk.
Para a classe média, o pobre jamais será frugal, porque desperdiça o seu dinheiro comprando roupas de marca, celulares caros e ingressos para assistir as partidas do seu time de futebol. A isso soma-se a acusação de imprudência. É, também, impontual, pois jamais devolverá a miséria que o Estado dá a ele como programas tipo o Bolsa Família que, por sua vez, a classe média, repetitiva, o classifica como uma forma de sustentar vagabundo.
Benjamin Franklin, que era dono de uma tipografia, pontuou os elementos éticos ideais para aquele que quer ter um bom negócio. Contudo, esses elementos são úteis para aquele que quer se aventurar em um empreendimento. Ou seja, somente o empresário sai beneficiado. Essa ética é para gerar lucro ao empresário e não para enriquecer o trabalhador. Disciplina, autocontrole e autorresponsabilidade são imprescindíveis para o ritmo produtivo da máquina e da fábrica capitalista. O empresário bem sucedido, com dezenas de sucursais, nem precisa mais ter essas qualidades morais, contanto que o gerente de seu negócio e o operário que manuseia os parafusos as tenha.
A profecia autorrealizadora
A classe média não percebe que sustenta uma lógica que a distancia, cada vez mais, economicamente das classes industriais. Inclusive, cega-se para a dominação destas. Sua vitória está no prazer de julgar, menosprezar e subjugar o outro economicamente inferior. Essa ideologia que a embrutece não passa de uma violência simbólica que despreza os desclassificados fomentando a ira e a violência física destes.
Tzvetan Todorov atenta para a “profecia autovalidante” ou “autorrealizadora” ao analisar os impactos criados pela rejeição aos imigrantes em território europeu: “À força de ouvir que é malcomportada, uma criança vai interiorizar essa imagem negativa e acaba por exagerar, tornando-se ainda mais ‘malvada’. Por julgar que nada deve à sociedade pela qual se sente rejeitada, ela a repele, por sua vez, e regozija-se com sua destruição”.
"Ao criar seus estereótipos em relação à ralé, a pequena burguesia abre espaço para a interiorização da imagem negativa pelo grupo rejeitado"
O mesmo acontece aqui no Brasil na relação entre a classe média e os desprovidos de fortuna. Ao criar seus estereótipos em relação à ralé, a pequena burguesia abre espaço para a interiorização da imagem negativa pelo grupo rejeitado. Assim, os desafortunados cospem todo lixo de volta sobre a soberba alienada dos moradores de condomínios fechados e portadores de carros caros que podem ser encarados como jaulas, não no sentido físico, mas pelo fato de os prenderem ao trabalho alienado, útil apenas para pagar suas contas.
A classe média se sente no direito de recriminar e seu maior sonho (a única utopia que a convence) é ver o capitalismo funcionar sem violência, sem a criminalidade endêmica de tal sistema. Ser pobre é ser ilegal na ordem capitalista que aqui se estabeleceu, não é por acaso que o tráfico de drogas e de armas estão associados à favela. A classe média trata o pobre como trata o criminoso, de modo a conceber todos como “vagabundos” porque não trabalham. Essa maneira ignorante de apreender a realidade a empurra cada vez mais na direção do discurso radical de ódio.



♦ Raphael Silva Fagundes é doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Política da UERJ. Professor da rede municipal do Rio de Janeiro e de Itaguaí.

(Charge: Baldinger)

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