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Amelinha Teles e a incansável luta contra o machismo: dos anos 1960 aos dias de hoje
Samir Oliveira
Ex-militante do PCdoB e ex-presa política, Maria Amélia de Almeida Teles integrou organizações da luta armada contra a ditadura militar no Brasil e atuou como militante feminista em diversas frentes. De 1975 a 1980, fez parte do jornal Brasil Mulher. Desde então, publicou diversos livros a respeito do movimento feminista brasileiro.
Sua última obra, “Da guerrilha à imprensa feminista: a construção do feminismo pós-luta armada no Brasil (1975-1980)”, em co-autoria com Rosalina Santa Cruz Leite, foi lançada em Porto Alegre na última segunda-feira (18), em um evento promovido pela revista Aedos, do corpo discente do programa de pós-graduação em História da UFRGS. Na ocasião, Amelinha, como é conhecida, conversou por quase uma hora com a reportagem do Sul21 a respeito de sua trajetória e do machismo que enfrentou – à direita e à esquerda – ao longo de sua militância.
Aos 69 anos, Maria Amélia de Almeida Teles era professora de artes quando foi presa em 28 de dezembro de 1972, em São Paulo. Após a liberdade, seguiu militando no movimento feminista e concluiu a faculdade de Direito. Em 1987, foi expulsa do PCdoB: “Tentei muito discutir feminismo com o PCdoB”, recorda.
Atualmente, Amelinha se dedica a militar na União de Mulheres de São Paulo e nos projetos Promotoras Legais Populares e Maria-Maria. Ela também trabalha como assessora na Comissão da Verdade de São Paulo.
”O marco é o ano de 1968, com a revolução sexual e cultural. Enfrentei todo o machismo e a ideologia patriarcal da esquerda”
Sul21 – Como surgiu a ideia de escrever o livro? Amelinha Teles – Eu e a Rosalina somos feministas históricas e temos uma história de vida muito parecidas. Há 20 anos, escrevi um livro chamado “Breve história do feminismo”. Depois, escrevi outros livros sobre as várias possibilidades de experiências do feminismo. Eu e a Rosa nos reunimos muito em função da Comissão da Verdade (de São Paulo). Ela tinha uma tese sobre a imprensa feminista e eu tinha aquele livro, então pensamos: por que não reunir as duas experiências? Nós duas fomos presas políticas e militamos em organizações da luta armada. Ela tem um irmão desaparecido político e eu fui testemunha ocular de um assassinado dentro do Doi-Codi. Quando eu saí da cadeia, se começou a falar em Anistia e se criou um jornal chamado Brasil Mulher. Foi o primeiro jornal feminista da segunda onda do feminismo no Brasil, entre os anos 1960 e 1970. A Rosa também integrou o Brasil Mulher. Tivemos a experiência de fazer um jornal feminista, enfrentando a ditadura, entre 1975 e 1980. Então pensamos em escrever esse livro, organizado em nove capítulos, de forma a mostrar o trabalho da imprensa, que teve um papel preponderante naquele momento para organizar o movimento feminista no Brasil. Era um jornal para mulheres, feito por mulheres, distribuído por mulheres, que falava de tudo. Entendíamos que praticávamos um feminismo bem inserido no movimento de luta contra a ditadura, pela transformação social, pela construção da democracia e pela anistia.Sul21 – O livro também fala sobre o jornal Nós, Mulheres. Amelinha – Foi um jornal que nasceu depois do Brasil Mulher e teve uma duração mais ou menos idêntica, mas com uma frequência menor. Também era um jornal feminista. Eram dois jornais separados, de grupos diferentes e com características diferentes, mas os temas eram os mesmos. Os dois jornais eram feministas, políticos, voltados a um feminismo de esquerda e popular, de origem marxista. A temática era muito parecida. No quarto capítulo do livro comparamos o que eles publicavam. Eram posições políticas parecidas e as pessoas que faziam os dois jornais não se conheciam. O Brasil Mulher foi uma frente de esquerda. Todas as organizações clandestinas tinham sua representação dentro do Brasil Mulher. E o Nós Mulheres, não. Eram feministas que não tinham participado de nenhuma organização política. Eram mulheres de classe média, muitas tinham vivido no exílio e conheciam o feminismo mais no exterior do que dentro do país. Nós nunca tínhamos vivido no exílio.
Sul21 – Quanto tempo duraram os dois jornais? Amelinha – O Brasil Mulher foi de 1975 a 1980. E o Nós Mulheres foi de 1976 a 1978.
”Nós lutamos igual aos homens, em todos os sentidos. Nunca chegamos a ser comandantes – do ponto de vista político, nunca tivemos esse reconhecimento”
Sul21 – Quais eram as bandeiras do movimento feminista brasileiro nos anos 1970? Amelinha – Era muito voltado para a mulher trabalhadora. Falávamos de creches, de salários, das mulheres nos sindicatos e do machismo nos sindicatos. Abordávamos a violência contra as mulheres. Fomos o primeiro jornal a falar da violência sexual às presas políticas. Por muito tempo, o Brasil Mulher foi praticamente o único a ilustrar esse assunto. Falávamos das várias categorias de trabalhadoras: da mulher do campo, da mulher que vivia da pesca, da mulher que era boia fria, de mulheres que trabalham na metalurgia fazendo fogão. Falávamos também do corpo, da sexualidade e de como evitar filhos. Criticávamos muito o uso da pílula – não no sentido moralista. É que, antigamente, as pílulas eram carregadas de muito hormônio, deixavam as mulheres mal. As mulheres estavam sendo cobaias. As pílulas que não serviam nos países de primeiro mundo vinham para cá.
Sul21 – Como era ser uma militante feminista e militar também dentro de grupos da esquerda clandestina? Era um ambiente machista? Amelinha – Até hoje, né… Já era tempo de a esquerda se abrir mais, deixar de ser machista e pensar mais feministicamente. Tenho 69 anos e sou militante desde muito jovem. Quando comecei a militar, só tinha homens. Às vezes o pai de uma militante era comunista, mas não deixava a filha ir para a porta da fábrica fazer panfletagem, fazer pichação ou fazer reunião na favela. Na primeira fase da minha militância, eu andava muito mais com homens do que com mulheres. O marco é o ano de 1968, com a revolução sexual e cultural. Enfrentei todo o machismo e a ideologia patriarcal da esquerda. A lógica era tão masculinizada que não tinham nem como pensar sobre isso. Para eles, a mulher, quando muito, poderia ajudar, aceitar ou ser submissa àquela ordem instituída. Mas eu sobrevivi. Fui da imprensa clandestina, da imprensa feminista e da imprensa alternativa democrática. Na imprensa clandestina eu – não tranquilamente – discutia muito e conseguia, às vezes, colocar dois parágrafos sobre as mulheres. Não era fácil.
Sul21 – Que tipo de opressões contra as mulheres se reproduziam nas organizações de esquerda da esquerda da década de 1960? Amelinha – Não existia confiança nas mulheres. Achavam que mulher não dava conta de fazer política, uma política clandestina, contra a ditadura e contra militares altamente armados. Diziam que mulher menstrua e pode ficar grávida. Ou seja, usavam todas as diferenças biológicas contra nós. Essas diferenças eram entendidas como incapacidades das mulheres. Era difícil mostrar que podíamos entrar na luta armada, mesmo menstruadas. Por outro lado, existiu uma repressão cruel que usou muito isso para submeter e derrotar a esquerda. Era uma atitude difícil também para a esquerda. Não tinham compreensão da causa feminista e ainda estavam acuados, porque toda a esquerda vivia clandestina. A falta de liberdade dificulta muito o desenvolvimento intelectual e mental e traz prejuízos enormes às organizações. Na verdade, eles (os homens que militavam contra a ditadura) não acreditavam nas mulheres e lançavam mão delas só em último caso. A ditadura era cruel com todo mundo. Então, de repente, não tinha mais quem por na linha de frente, aí colocavam uma mulher. E a mulher ia. Nós lutamos igual aos homens, em todos os sentidos. Nunca chegamos a ser comandantes – do ponto de vista político, nunca tivemos esse reconhecimento. Por outro lado, tivemos muito mais deveres que os homens. Acabava se impondo as tarefas mais repetitivas às mulheres.
”Quando falávamos em feminismo nos anos 1970, a esquerda dizia que era um desvio pequeno burguês e a direita dizia que éramos mulheres sem moral que queriam acabar com a família”
Sul21 – A presença de mulheres nesses grupos conseguiu, aos poucos, modificar o pensamento machista que predominava neles? Amelinha – Acho que sim. As mulheres, em 1964, estavam totalmente marginalizadas, proibidas e interditadas de fazer política. As mulheres foram manipuladas pelos militares, pelos latifundiários e pela Igreja, que fez a Marcha com Deus pela Família e pela Liberdade. A massa que foi para a rua naquele momento era de mulheres: mulheres pretas, mulheres pobres e faveladas. Eu vi essa manifestação e chorei muito. Eu tinha 18 anos de idade. Eu subia no morro para mostrar às mulheres que tem que ter reforma agrária, direito à educação, saúde, moradia e alimentação. Eram essas as nossas bandeiras. E elas estavam lá com os militares contra tudo isso. Mas acredito que nossa luta valeu. Hoje as mulheres estão em outro patamar. Tem até presidente da República que foi da luta armada, foi de esquerda e tem a mesma história que eu. Se não tivéssemos lutado, ela e muitas outras não estariam lá. É mais difícil, hoje, fazer a mulher retroceder. O movimento feminista veio para ficar. No século XIX houve um movimento sufragista que, quando ganhou o direito de votar, foi para a casa. Hoje o movimento feminista não volta mais para cara, porque não quer só voto. Queremos o direito de ser cidadãs, de ser sujeito político.Sul21 – Que tipo de estereótipos e xingamentos as militantes feministas recebiam nos anos 1970? Amelinha – Eu costumo dizer que feminista nunca está na hora certa e no lugar certo. Nós sempre incomodamos. Quando falávamos em feminismo nos anos 1970, a esquerda dizia que era um desvio pequeno burguês e a direita dizia que éramos mulheres sem moral que queriam acabar com a família. As próprias mulheres que chamávamos para o movimento falavam: “eu vou lutar, mas sou feminina, não feminista”. Mas, com vontade, desejo de conversar, quebrávamos essa ideia. O estereótipo existe porque questionamos, temos uma leitura muito crítica e não podemos deixar passar barato toda essa ofensa que recebemos diariamente por conta da ideologia patriarcal. Hoje em dia, por exemplo, acho que está voltando um feminismo jovem muito grande. Em todo lugar vejo jovens feministas com vontade de fazer coisas. Mas há alguns anos ficou meio difícil, as jovens achavam que ser feminista era coisa de velha, que elas não precisavam mais. Agora já tem essa juventude vendo que tem que ir mesmo para a luta e até busca a gente mais velha para contar como foi, o que mudou e o que precisa mudar.
”Foram as lésbicas que nos procuraram, eu me lembro, ainda nos anos 1970. Começamos a conversar e vimos que elas tinham que estar dentro do movimento”
Sul21 – Como era a articulação das militantes feministas nos anos 1970 com as mulheres lésbicas e o movimento gay? Naquela época, também eram setores que estavam se organizando politicamente e sofriam repressões muito semelhantes. Amelinha – Foi algo muito difícil dentro do feminismo de esquerda. A esquerda tinha muito medo de gays e lésbicas. Naquela época nem chamavam assim, todo tratamento era bastante pejorativo, desvalorizando muito as pessoas gays e lésbicas. A esquerda tinha medo, porque achava que gays e lésbicas iriam atrair a repressão. O diálogo era muito difícil. Existia um preconceito mesmo, ficava uma distância. Quando começamos a publicizar o feminismo, ainda sob a ditadura, passamos a ter uma ligação mais estreita com as lésbicas. Foram as lésbicas que nos procuraram, eu me lembro, ainda nos anos 1970. Começamos a conversar e vimos que elas tinham que estar dentro do movimento. Elas também sofriam uma repressão política. Não a mesma que a nossa, mas o resultado era o mesmo. Em São Paulo tinha um delegado que mandava a polícia perseguir lésbicas e prostitutas… As lésbicas, naquela época, viviam muito mais escondidas do que hoje. Começaram a sofrer repressão e viram que nós tínhamos uma experiência de enfrentamento com a repressão. Foi assim que fomos nos encontrando. Acho que fomos nos reunindo mais pelas dificuldades – que eram tantas – do que pela compreensão de que precisávamos estar juntas.Sul21 – Com o tempo, essa compreensão foi surgindo? Amelinha – No caminho, fomos vendo que tínhamos mais é que estar juntas mesmo. Tem cenas que lembro até hoje. Fazíamos um 8 de março (Dia Internacional da Mulher) em 1976, no Teatro do MASP, e tínhamos até muito medo de falar em público, porque tinha muita polícia. Nessa ocasião, juntamos umas 300 pessoas e pelo menos um terço era polícia disfarçada. Todo mundo tinha medo que alguém tomasse a fala e colocasse nosso movimento a perder. Não queríamos que uma pessoa de direita falasse por nós. Então apareceu uma mulher muito disposta a falar. Ninguém conhecia ela. Era uma mulher lésbica e negra dos Estados Unidos – onde tinha mais liberdade para discutir o racismo, o sexismo e a lesbiandade. Lembro até hoje: ficamos com mais medo dela do que da polícia. Foi a primeira vez na minha vida que ouvi uma mulher se afirmar como lésbica e defender seus direitos enquanto lésbica. Eu disse: “gente, agora a polícia vem pra cima de nós”. Não era um processo tão simples elas chegarem no movimento e a gente compreender. Foi um processo de construção com ambiguidades, dúvidas, desconfianças e polêmicas.
“O movimento da Marcha das Vadias contribui para enriquecer o feminismo e a própria sociedade”
Sul21 – Como a presença das mulheres lésbicas impactou as organizações tradicionais de esquerda na época? Amelinha – Mesmo naquela época, com todos os preconceitos que tínhamos e enfrentávamos, nós, que estávamos na linha de frente, enfrentávamos também dentro da organização política em que militávamos. Diziam que não poderia ter lésbica lá dentro, somente mulher trabalhadora. Como se lésbica não fosse trabalhadora. A gente levou o movimento. Elas começaram a usar a palavra lésbica em 1977. Os gays começam antes. Tem uma dificuldade do movimento LGBT, que carrega também essa lógica patriarcal. O Grupo de Ação Lésbico-Feminista (GALF) foi criado em 1977, em São Paulo, e elas atuavam muito com a gente nas manifestações. Esse foi o alicerce do feminismo, que cresceu e passou a todo o território brasileiro.Sul21 – Hoje a esquerda é menos machista e menos patriarcal? Amelinha – Ela pode ser mais pragmática, porque não enfrenta essa repressão direta. Por pragmatismo, aceita fazer uma Secretaria da Mulher, mas a lógica é comandada por uma ideologia patriarcal. Essa lógica impede a discussão sobre o aborto. Estamos no século XXI e, no Brasil, temos uma Secretaria da Mulher que não fala sobre aborto. Direitos sexuais também são direitos humanos. O pragmatismo da esquerda é na lógica eleitoral. Em nome da governabilidade, a esquerda esquece os princípios libertários. A esquerda nasce para ser libertária, romper com as amarras do capitalismo e atrasos fundamentalistas. Mas não quer falar de aborto para não perder votos de bispo, de pastor… Então deixa lá o Marco Feliciano (PSC), que está na presidência da Comissão de Direitos Humanos por um acordo em nome da governabilidade. Ele é base do governo. A esquerda hoje usa de outros subterfúgios. Eu ainda entendo a esquerda acuada e reprimida, porque a ditadura foi dura demais. Mas essa esquerda de agora precisa pensar nos princípios. A esquerda precisa pensar sobre essa lógica estruturante de dominação masculina em todas as áreas: no trabalho, na saúde, na educação, na política e na economia.
Sul21 – Como tu vês a Marcha das Vadias? Amelinha – Eu apoio e integro a Marcha das Vadias. Acho muito interessante, é um movimento importante que surgiu no mundo inteiro. São jovens que vêm com muita força e autonomia, com ideais libertários. É algo muito necessário. O movimento da Marcha das Vadias contribui para enriquecer o feminismo e a própria sociedade. A gente se relaciona muito bem. Eu brinco que elas são minhas netas. Elas conseguem dialogar. Mulheres estrangeiras se espantam que militamos com tanta facilidade com mulheres tão jovens. O que nos difere é a idade. Fora isso, temos os mesmos problemas.
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