sexta-feira, 20 de maio de 2011

O PREFEITO E AS ÁGUAS PÚBLICAS


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O prefeito estava à janela da Prefeitura, observando a mais nova obra da sua gestão – a praça central. Com a mão direita nos cabelos louros e cacheados, procurava lembrar como era aquela praça antes de ele assumir o governo municipal. Uma praça que datava de quase 100 anos, sempre tivera bancos grandes de cimento e muitas árvores, as mais diversas. Ele conseguira fazer uma reforma estrutural, como dizia o engenheiro seu amigo, encarregado da dita reforma. Mas ele, pessoalmente, preferia a palavra “revitalização”. Tinha ido a Brasília e conseguido convencer o Governo de que a revitalização da praça era essencial. Afinal, o Ministério das Cidades tinha verbas para isso, e ele recebera mais de 1 milhão de reais. Dinheiro garantido, mas depois surgiram as dúvidas: o que fazer para revitalizar a praça?

     Aos poucos, surgiram as soluções: tirar os bancos de cimento e colocar bancos de madeira; alguns novos postes de luz, canteirinhos mais bonitos, tirar algumas árvores, colocar outras; cria-se um espaço aqui, outro acolá e pronto!... Tinha conseguido gastar a verba. É claro que não tinha gastado exatamente toda a verba. Sempre sobra alguma coisa. Mas ninguém poderia contestar: estava tudo especificado, tintim por tintim, no site da Prefeitura. E, qualquer coisa, a Prefeitura estava bem provida de contadores e advogados.

     Estava envolvido por esses pensamentos, quando entrou o seu secretário, dizendo:

     - Senhor prefeito, temos um problema!

     - Um momento, companheiro secretário! Nunca me chame de senhor prefeito, mas de companheiro prefeito, principalmente na frente das outras pessoas.

     - Mas estamos sozinhos, senh... er... companheiro prefeito.

     - Mesmo sozinhos, vá treinando. E não me fale em problemas: é claro que sempre temos problemas.

     - Mas este problema, companheiro prefeito, é de natureza diferente. Um cidadão reclamando que cortaram a água da casa dele.

     - Se cortaram é porque ele não pagou, companheiro secretário. Não lhe parece óbvio?

     - Muito óbvio, companheiro prefeito, e este é o caso. O cidadão não pagou e lhe cortaram a água. Mas é bem pior que isso: ele não pagou e não quer pagar porque diz que a cobrança é injusta e está apelando para o companheiro prefeito para que lhe restituam a água.

     - Mas em nome de quê, pardieu? Como está o meu francês?

     - Está quase perfeito, companheiro prefeito, mas ainda falta alguma coisinha.

     - Eu estou me esforçando, companheiro secretário. Você sabe, em terra de quem fala português e inglês, quem fala francês é rei...

     - Prefeito, companheiro prefeito.

     - Pois é, companheiro secretário... mas eu almejo maiores alturas, companheiro. E este companheiro cidadão, ou deverei dizer citoyen? Mesmo não pagando, ele quer água? Logo agora que estamos entrando em uma crise mundial pela água... Talvez até sejamos invadidos pelos Estados Unidos definitivamente. Eles querem a Amazônia, e não só a Amazônia... Que gente gananciosa! Comem aquela comida artificial deles e depois querem a nossa água... Sedentos, muito sedentos... E o companheiro sedento?

     - Esse companheiro sedento, companheiro prefeito, protocolou um ofício para o senhor. Está aqui.

     - Humm... Deixe ver... A água é um bem essencial à vida... É verdade... Saúde... Sim... Mas ele está louco, companheiro secretário!

     - Concordo, companheiro prefeito. Como o senhor quiser: ele está louco.

     - E sabe porque ele está louco?

     - Está louco porque está louco, companheiro prefeito?

     - É claro, mas além disso... Muito além das estrelas... Você acha, companheiro secretário, que iremos, algum dia, muito além das estrelas? Que o ser humano, mesmo com tantas bombas atômicas, não destruirá o seu habitat, a Terra? Que as geleiras derreterão e que teremos uma terrível inversão climática? Você acredita que Osama está morto, que Obama é um bom moço e que quem manda na Casa Branca é realmente a Hillary Clinton? Isso não é hilário, a Hillary querer invadir o Paraguai para pegar aquele imenso lençol freático e ser atacada pelos índios tupiniquins?

     - Perdão, companheiro prefeito, no Paraguai são os índios guaranis.

     - Tupiniquins, guaranis, caiapós, xavantes... Não é tudo a mesma coisa, não são todos índios?

     - Existem singularidades, companheiro prefeito...

     - Particularidades seria mais adequado, companheiro secretário. E esta, agora! Um cidadão, um citoyen, querer água sem pagar as taxas! Mas não é um abuso, companheiro secretário? Cortem-lhe a cabeça!

     - Absoluto abuso, companheiro prefeito. Mas cortar a cabeça... O companheiro não acha...

     - Eu sempre acho, companheiro secretário, mesmo sem procurar. E quando eu disse “cortem-lhe a cabeça” foi apenas uma citação: “Alice no País das Maravilhas”. Além disso, completo abuso fica mais correto, companheiro secretário. Completo abuso e não absoluto abuso. Completo abuso seria a invasão da América do Sul pelos soldados dos Estados Unidos para roubar água. Cada um deles com a sua canequinha na mão. Melhor: com o seu cantil e com tonéis vazios. E mais: empresas que antes eram petrolíferas e serão aqüíferas dando golpes de estado, substituindo presidentes, massacrando o povo nas ruas... E eu que queria tanto que o chafariz da praça funcionasse...

     - Mas é simples, companheiro prefeito, mande consertar o chafariz.

     - E ver aquele cidadão desesperado, com toda a sua família bebendo as águas públicas? E dando entrevistas sobre a insensibilidade do prefeito? Non, non, non, non, non e non!

     - Non?

     - Não, apedeuta companheiro secretário. Mil vezes não!

     - Então o chafariz não irá funcionar?

     - Com certeza que sim! As águas vão rolar e a fonte vai cantar. Você acha, companheiro secretário, que a música sertaneja de antigamente era superior a esta coisa de hoje que só fala em meu amor e você pra lá e você pra cá e calcinha preta... Todas essas vulgaridades?

     - Com certeza que sim, companheiro prefeito.

     - Com certeza que sim... Com certeza que sim... Há algo errado nessa sua frase, companheiro secretário. Não exatamente errado, mas redundante, desnecessário... Desnecessário dizer que a solicitação do companheiro cidadão deverá ser atendida, não acha, companheiro secretário?

     - Sem que ele pague as taxas de água, companheiro prefeito?

     - Ele pagará... Ele pagará... Através de um processo judicial, é claro. Por enquanto, peça ao companheiro secretário da autarquia para religar a água desse bom cidadão. Não queremos que a sua família passe necessidades, não é companheiro secretário?

     - A minha família ou a dele, companheiro prefeito?

     - A dele, companheiro secretário, você entendeu bem e não me venha com gracinhas. Um companheiro cidadão com problemas telúricos não deve ser abandonado. Porque a água brota da terra, do latim tellus, telúrico, e todos tem direito aos seus cinco minutos de fama, ou serão quinze? O sol nasceu para todos, assim como a água não existe apenas para os peixes e caranguejos e siris. Você já comeu uma casquinha de siri? É claro. Tão claro quanto a luz elétrica... Quem diria... Um pára-raios... E Benjamin Franklin não terá levado um choque? E depois Edison e a lâmpada maravilhosa... Enfim, não queremos que um cidadão passe dificuldades, não é companheiro secretário?

     - Claro, companheiro prefeito.

     - Muito bem... Muito bem... A nossa função é social. Estamos aqui para solucionar problemas, dirimir contendas, amar a todos, vencer os gigantes, defender as donzelas...

      - Como disse, companheiro prefeito?

      - Você não leu o “Dom Quixote de la Mancha”, companheiro secretário?

     - Ainda não, companheiro prefeito.

     - Então não leia. Traga-me a agenda. Sei... Outra reunião com os fazendeiros... Quero dizer, com a Comissão para a Prosperidade do Município. Belo e pomposo nome. Para quem irá essa prosperidade do município - hein, companheiro secretário? Para os industriais que não tem indústria – nos dois sentidos, companheiro secretário – no máximo uma fabriqueta aqui, outra ali. Para os comerciantes que vendem produtos do Paraguai e querem que eu expulse os camelôs? O que me diz, companheiro secretário? Ou para os fazendeiros, que agora querem plantar eucaliptos para vender madeira para as fábricas de celulose e para isso desejam uma lei de incentivo à pecuária, que de pecuária não tem nada, porque estão todos se mudando para o Mato grosso do Sul, com bois e tudo? E lá vou eu dizer que sim, que plantem eucaliptos que eu encaminho a lei para a Câmara, que façam o que bem entenderem, porque sem eles eu não sou nada... Ah!, hoje não é o meu dia nem será a minha noite, porque terei que sorrir para todos, elogiar os empreendedores que no fim do ano receberão o troféu dos caras de pau. Mon dieu! Mon dieu!

     - Como disse, companheiro prefeito?

     - Eu não disse nada, companheiro secretário, e se você ouviu alguma coisa, esqueça. Esquecer é o melhor remédio na política. Sorrir, também. Sorrir, esquecer; sorrir, esquecer... De vez em quando, em época de eleições, fazer discursos, dizer ao povo que todo o poder emana deles – mas somente emana, não é companheiro secretário? E depois sorrir, esquecer e concordar com os mais poderosos pela simples razão de que são mais poderosos e a política é um jogo de poder que não emana do povo... Sorrir, esquecer, concordar... Tudo é vaidade neste mundo, tudo é vaidade...

     - É verdade, companheiro prefeito.

     - O que é a verdade, companheiro secretário? Quod est veritas?

     - Perdão, companheiro prefeito, não entendi...

     - Perfeito, companheiro secretário, não é para entender. Agora pode ir e me avise quando for hora do cafezinho. Antes que as geleiras degelem, antes que seja necessário usar barcos e não carros, antes que o Obama invada esta cidade atrás de outro Osama ou da água do chafariz, que será tão belo! Antes que o mundo acabe em 2012, não é companheiro secretário? Companheiro secretário! Você já saiu? Que coisa... Um fim de mundo com data marcada... Não tem a menor graça... E pessoas que não tem água! Como este mundo é cruel! Mon dieu! Mon dieu! E eu que queria tanto ser franciscano... E eu que já tive ideologia... “Ó que saudades que eu tenho da aurora da minha vida, da minha infância querida...”

     - Hora do cafezinho, companheiro prefeito! O companheiro dizia...?

     - Nada. Estava apenas treinando o meu português. Você conhece Casimiro de Abreu?

     - Já ouvi falar, companheiro prefeito. Não é aquele companheiro que mora ali na...

     - Deixe pra lá, meu simplório secretário. Vamos ao cafezinho! Allons!

Fausto Brignol.

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