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Redação - Carta Maior
Há duas palavras cujo uso abundante contrastam de modo radical
com seu alto grau de importância: são elas a democracia e o fascismo.
Esta última palavra tem frequentado menos o noticiário do que deveria,
talvez pense alguém realmente comprometido com a democracia. Já a
palavra democracia abunda tanto como se esvazia de qualquer relação com a
realidade, sobretudo na perspectiva monolítica da imprensa das grandes
famílias do Brasil. O caso Cesare Battisti é, além de um teste
privilegiado para se saber se a democracia, no Brasil, já conseguiu
efetivamente fincar alguma relação real com a nossa história, ocasião
que pode nos ensinar, de modo igualmente privilegiado, algumas lições
sobre o significado do fascismo, bem como de sua sempre alegada ausência
no Brasil e nos dias que correm, mundo afora, como na Itália de
Berslusconi.
Carta Maior decidiu pela democracia desde o seu
nascimento. E é esse compromisso que nos faz remeter o extraordinário
texto de Umberto Eco, sobre o "Ur-Fascismo", produzido originalmente
para uma conferência proferida na Universidade Columbia, em abril de
1995, numa celebração da liberação da Europa. Talvez algum desaviso leve
alguém a suspeitar que a comparação ou o mero uso do termo fascismo,
para acusar os algozes de Battisti, no imbróglio da extradição seja
exagero, um despropósito histérico e paranóico. Que a homenagem que o
atual ministro da Defesa italiano prestou aos soldados fascistas de
Mussolini no ano passado sirva então para desfazer enganos quanto à
natureza do compromisso democrático do atual executivo italiano.
Se
não, que esta aula magna sobre a história conceitual e social do
fascismo possa servir como registro da importância de não se brincar com
palavras, para esvaziar seu sentido, sacrificando vidas e rompendo com a
verdade. Uma boa leitura.
"O Fascismo Eterno"
Em 1942, com a idade de dez anos, ganhei o prêmio nos Ludi Juveniles
(um concurso com livre participação obrigatória para jovens fascistas
italianos – o que vale dizer, para todos os jovens italianos). Tinha
trabalhado com virtuosismo retórico sobre o tema: “Devemos morrer pela glória de Mussolini e pelo destino imortal da Itália?” Minha resposta foi afirmativa. Eu era um garoto esperto.
Depois,
em 1943, descobri o significado da palavra “liberdade”. Contarei esta
história no fim do meu discurso. Naquele momento, “liberdade” ainda não
significava “liberação”.
Passei dois dos meus primeiros anos
entre SS, fascistas e resistentes, que disparavam uns nos outros, e
aprendi a esquivar-me das balas. Não foi mal exercício.
Em abril
de 1945, a Resistência tomou Milão. Dois dias depois os resistentes
chegaram à pequena cidade em que eu vivia. Foi um momento de alegria. A
praça principal estava cheia de gente que cantava e desfraldava
bandeirolas, invocando Mimo, o líder a resistência na área, em alto
brado. Mimo, ex-suboficial dos carabinieri, envolveu-se com os
partidários do marechal Badoglio e perdeu uma perna nos primeiros
confrontos. Apareceu no balcão da Prefeitura, apoiado em muletas,
pálido; tentou acalmar a multidão com uma mão. Eu estava ali esperando
seu discurso, já que toda a minha infância tinha sido marcada pelos
grandes discursos históricos de Mussolini, cujos passos mais
significativos aprendíamos de cor na escola. Silêncio. Mimo falo com voz
rouca, quase não se ouvia. Disse: “Cidadãos, amigos. Depois de tantos
sacrifícios dolorosos...aqui estamos. Glória aos que caíram pela
liberdade...”. E foi tudo. Ele voltou para dentro. A multidão gritava,
os membros da resistência levantaram as armas e atiraram para o alto,
festivamente. Nós, rapazes, nos precipitamos para recolher os cartuchos,
preciosos objetos de coleção, mas eu tinha aprendido então que
liberdade de palavra significa também liberdade da retórica.
Alguns
dias depois vi os primeiros soldados americanos. Eram afro-americanos. O
primeiro ianque que encontrei era um negro, Joseph, que me apresentou
às maravilhas de Dick Tracy e Ferdinando Buscapé. Seus gibis eram
coloridos e tinham um cheiro bom.
Um dos oficiais (o major ou
capitão Muddy) era hóspede na casa da família de dois dos meus
companheiros de escola. Sentia-me em casa naquele jardim em que alguns
senhores amontoavam-se em torno ao capitão Muddy, falando um francês
aproximativo. O capitão Muddy tinha uma boa educação superior e conhecia
um pouco de francês. Assim, minha primeira imagem dos libertadores
americanos, depois de tantos caras-pálidas de camisa negra, era a de um
negro culto em uniforme cáqui que dizia: “Oui, merci beaucoup Madame, moi aussi j'aime le champagne...”
Infelizmente, faltava o champagne, mas ganhei do capitão Muddy o meu
primeiro chiclete e comecei mastigando o dia inteiro. De noite colocava o
chiclete em um copo d'água para que ficasse fresco para o dia seguinte.
Em maio, ouvimos dizer que a guerra tinha acabado. A paz deu-me
uma sensação curiosa. Haviam me dito que a guerra permanente era a
condição normal de um jovem italiano. Nos meses seguintes descobri que a
Resistência não era apenas um fenômeno local, mas Europeu. Aprendi
novas e excitantes palavras como “reseau”, “maquis”, “armée secrète”, “Rote Kapelle”, “gueto de Varsóvia”.
Vi as primeiras fotografias do Holocausto e assim compreendi seu
significado antes mesmo de conhecer a palavra. Percebi que havíamos sido
liberados.
Hoje na Itália existem algumas pessoas que se
perguntam se a Resistência teve algum impacto militar real no curso da
guerra. Para a minha geração a questão é irrelevante: compreendo
imediatamente o significado moral e psicológico da Resistência. Era
motivo de orgulho saber que nós, europeus, não tínhamos esperado
passivamente pela liberação. Penso que, também para os jovens americanos
que derramaram seu sangue pela nossa liberdade, não era irrelevante
saber que atrás das linhas havia europeus que já estavam pagando seu
débito.
Hoje na Itália tem gente que diz que a Resistência é um
mito comunista. É verdade que os comunistas exploraram a Resistência
como uma propriedade pessoal, pois realmente tiveram um papel primordial
no movimento; mas lembro-me dos resistentes com bandeiras de diversas
cores.
Grudado ao rádio, passava as noites – as janelas fechadas
e a escuridão geral faziam do pequeno espaço em torno ao aparelho o
único halo luminoso – escutando as mensagens que a Rádio Londres
transmitia para a Resistência. Eram, ao mesmo tempo, obscuras e poéticas
(“Ainda brilha o sol”, “As rosas hão de florir”), mas a maior parte
eram “mensagens para Franchi”. Alguém soprou no meu ouvido que Franchi
era o líder de um dos grupos clandestinos mais poderosos da Itália do
Norte, um homem de coragem legendária. Franchi tornou-se o meu herói.
Franchi (cujo verdadeiro nome era Edgardo Sogno) era um monarquista tão
anticomunista que, depois da guerra, se uniu a um grupo de extrema
direita e foi até acusado de ter participado de um golpe de Estado
reacionário. Mas que importa? Sogno ainda é o sonho da minha infância. A
liberação foi um empreendimento comum de gente das mais diversas cores.
Hoje na Itália tem gente que diz que a guerra de liberação foi
um trágico período de divisão, e que precisamos agora de uma
reconciliação nacional. A recordação daqueles anos terríveis deveria ser
reprimida. Mas a repressão provoca neuroses. Se a reconciliação
significa compaixão e respeito por todos aqueles que lutaram sua guerra
de boa-fé, perdoar não significa esquecer. Posso até admitir que
Eichmann acreditava sinceramente em sua missão, mas não posso dizer: “Ok, volte e faça tudo de novo”. Estamos aqui para recordar o que aconteceu e para declarar solenemente que “eles” não podem repetir o que fizeram.
Mas quem são “eles”?
Se
pensamos ainda nos governos totalitários que dominaram a Europa antes
da Segunda Guerra Mundial, podemos dizer com tranquilidade que seria
muito difícil que eles retornassem sob a mesma forma, em circunstâncias
históricas diversas. Se o fascismo de Mussolini baseava-se na idéia de
um líder carismático, no corporativismo, na utopia do “destino fatal de
Roma”, em uma vontade imperialista de conquistar novas terras, em um
nacionalismo exacerbado, no ideal de uma nação inteira arregimentada sob
a camisa negra, na recusa da democracia parlamentar, no anti-semitismo,
então não tenho dificuldade para admitir que a Aliança Nacional,
nascida do Movimento Social e Italiano (MSI), é certamente um partido de
direita, mas tem muito pouco a ver com o velho fascismo. Pelas mesmas
razões, mesmo preocupado com os vários movimentos neonazistas ativos
aqui e ali na Europa, inclusive na Rússia, não penso que o nazismo, e
sua forma original, esteja ressurgindo como movimento capaz de mobilizar
uma nação inteira.
Todavia, embora os regimes políticos possam
ser derrubados e as ideologias criticadas e destituídas de sua
legitimidade, por trás de um regime e de sua ideologia há sempre um modo
de pensar e de sentir, uma série de hábitos culturais, uma nebulosa de
instintos obscuros e de pulsões insondáveis. Há, então, um outro
fantasma que ronda a Europa (para não falar de outras partes do mundo)?
Ionesco disse certa vez que “somente as palavras contam, o resto é falatório”. Os hábitos linguísticos são muitas vezes sintomas importantes de sentimentos não expressos.
Portanto,
permitam-me perguntar por que não somente a Resistência mas toda a
Segunda Guerra Mundial foram definidas em todo o mundo com uma luta
contra o fascismo. Se relerem "Por quem os sinos dobram", de
Hemingway, vão descobrir que Robert Jordan identifica seus inimigos com
os fascistas, mesmo quando está pensando nos falangistas espanhóis.
Permitam-me passar a palavra a Franklin Delano Roosevelt: “A vitória do povo americano e de seus aliados será uma vitória contra o fascismo e o beco sem saída que ele representa” (23 de setembro de 1944).
Durante
os anos de McCarthy, os americanos que tinham participado da guerra
civil espanhola eram chamados de “fascistas prematuros” - entendendo com
isso que combater Hitler nos anos 40 era um dever moral de todo bom
americano, mas combater Franco cedo demais, nos anos 30, era suspeito.
Por que uma expressão como “fascist pig” era usada pelos radicais americanos até para indicar um policial que não aprovava os que fumavam? Por que não diziam: “Porco Caugolard”, “Porco Falangista”, “Porco Quisling”, “Porco croata”, “Porco Ante Pavelic”, “Porco nazista”?
Mein Kampf é o manifesto completo de um programa político. O nazismo tinha uma teoria do racismo e do arianismo, uma noção precisa de entartete Kunst, a “arte degenerada”, uma filosofia da vontade de potência e da Übermensch. O nazismo era decididamente anticristão e neopagão, da mesma maneira que o Diamat
(versão oficial do marxismo soviético) de Stalin era claramente
materialista e ateu. Se como totalitarismo entende-se um regime que
subordina qualquer ato individual ao Estado e sua ideologia, então
nazismo e estalinismo eram regimes totalitários.
O fascismo foi
certamente uma ditadura, mas não era completamente totalitário, nem
tanto por sua brandura quanto pela debilidade filosófica de sua
ideologia. Ao contrário do que se pensa comumente, o fascismo italiano
não tinha uma filosofia própria. O artigo sobre o fascismo assinado por
Mussolini para a Enciclopédia Treccani foi escrito ou inspirou-se
fundamentalmente em Giovanni Gentile, mas refletia uma noção hegeliana
tardia do “Estado ético absoluto”, que Mussolini nunca realizou
completamente. Mussolini não tinha qualquer filosofia: tinha apenas uma
retórica.
Começou como ateu militante, para depois firmar a
concordata com a Igreja e confraternizar com os bispos que benziam os
galhardetes fascistas. Em seus primeiros anos anticlericais, segundo uma
lenda plausível, pediu certa vez a Deus que o fulminasse ali mesmo para
provar sua existência. Deus estava, evidentemente, distraído. Nos anos
seguintes, em seus discursos, Mussolini citava sempre o nome de Deus e
não desdenhava o epíteto: “homem da Providência”. Pode-se dizer que o
fascismo italiano foi a primeira ditadura de direita que dominou um país
europeu e que, em seguida, todos os movimentos análogos encontraram uma
espécie de arquétipo comum no regime de Mussolini.
O fascismo
italiano foi o primeiro a criar uma liturgia militar, um folclore e até
mesmo um modo de vestir-se – conseguindo mais sucesso no exterior que
Armani, Benetton ou Versace. Foi somente nos anos 30 que surgiram
movimentos fascistas na Inglaterra, com Mosley, e na Letônia, Estônia,
Lituânia, Polônia, Hungria, Romênia, Bulgária, Grécia, Iugoslávia,
Espanha, Portugal, Noruega e até na América do Sul, para não falar da
Alemanha. Foi o fascismo italiano que convenceu muitos líderes liberais
europeus de que o novo regime estava realizando interessantes reformas
sociais, capazes de fornecer uma alternativa moderadamente
revolucionária à ameaça comunista.
Todavia, a prioridade
histórica não me parece ser uma razão suficiente para explicar por que a
palavra “fascismo” tornou-se uma sinédoque, uma denominação pars pro toto
para movimentos totalitários diversos. Não adianta dizer que o fascismo
continha em si todos os elementos dos totalitarismos sucessivos, por
assim dizer, em “estado quintessencial”. Ao contrário, o fascismo não
possuía nenhuma quintessência e sequer uma só essência. O fascismo era
um totalitarismo fuzzy (1). O fascismo não era uma
ideologia monolítica, mas antes uma colagem de diversas idéias políticas
e filosóficas, uma colméia de contradições. É possível conceber um
movimento totalitário que consiga juntar monarquia e revolução, exército
real e milícia pessoal de Mussolini, os privilégios concedidos à Igreja
e uma educação estatal que exaltava a violência e o livre mercado?
O
partido fascista nasceu proclamando sua nova ordem revolucionária, mas
era financiado pelos proprietários de terras mais conservadores, que
esperavam uma contra-revolução. O fascismo do começo era republicano e
sobreviveu durante vinte anos proclamando sua lealdade à família real,
permitindo que um “duce” puxasse as cordinhas de um “rei”, a quem
ofereceu até o título de “imperador”. Mas quando, em 1943, o rei
despediu Mussolini, o partido reapareceu dois meses depois, com a ajuda
dos alemães, sob a bandeira de uma república “social”, reciclando sua
velha partitura revolucionária, enriquecida de acentuações quase
jacobinas.
Existiu apenas uma arquitetura nazista, apenas uma
arte nazista. Se o arquiteto nazista era Albert Speer, não havia lugar
para Mies van der Rohe. Da mesma maneira, sob Stalin, se Lamarck tinha
razão, não havia lugar para Darwin. Ao contrário, existiram certamente
arquitetos fascistas, mas ao lado de seus pseudocoliseus surgiram também
os novos edifícios inspirados no moderno racionalismo de Gropius.
Não
houve um Zdanov fascista. Na Itália existiam dois importantes prêmios
artísticos: o Prêmio Cremona era controlado por um fascista inculto e
fanático como Farinacci, que encorajava uma arte propagandista
(recordo-me de quadros intitulados Ascoltando all radio un discorso del
Duce ou Stati mentali creati dal Fascismo); e o Prêmio Bergamo,
patrocinado por um fascista culto e razoavelmente tolerante como Bottai,
que protegia a arte pela arte e as novas experiências da arte de
vanguarda que, na Alemanha, haviam sido banidas como corruptas,
criptocomunistas, contrárias ao Kitsch nibelúngico, o único aceito.
O
poeta nacional era D'Annunzio, um dândi que na Alemanha ou na Rússia
teria sido colocado diante de um pelotão de fuzilamento. Foi alçado à
categoria de vate do regime pro seu nacionalismo e seu culto do heroísmo
–com o acréscimo de grandes doses de decadentismo francês.
Tomemos
o futurismo. Deveria ter sido considerado um exemplo de entartete
Kunst, assim como o expressionismo, o cubismo, o surrealismo. Mas os
primeiros futuristas italianos eram nacionalistas, favoreciam por
motivos estéticos a participação da Itália na Primeira Guerra Mundial,
celebravam a velocidade, a violência, o risco e, de certa maneira, estes
aspectos pareciam próximos ao culto fascista da juventude. Quando o
fascismo identificou-se com o império romano e redescobriu as tradições
rurais, Marinetti (que proclamava que um automóvel era mais belo que a
Vitória de Samotrácia e queria inclusive matar o luar) foi nomeado
membro da Accademia d'Italia, que tratava o luar com grande respeito.
Muitos
dos futuros membros da Resistência, e dos futuros intelectuais do
futuro Partido Comunista, foram educados no GUF, a associação fascista
dos estudantes universitários, que deveria ser o berço da nova cultura
fascista. Esses clubes tornaram-se uma espécie de caldeirão intelectual
em que circulavam novas idéias sem nenhum controle ideológico real, não
tanto porque os homens de partido fossem tolerantes, mas porque poucos
entre eles possuíam os instrumentos intelectuais para controlá-los.
No
curso daqueles vinte anos, a poesia dos herméticos representou uma
reação ao estilo pomposo do regime: a estes poetas era permitido
elaborar seus protestos literários dentro da torre de marfim. O
sentimento dos herméticos era exatamente o contrário do culto fascista
do otimismo e do heroísmo. O regime tolerava esta distensão evidente,
embora socialmente imperceptível, porque não prestava atenção suficiente
ao um jargão tão obscuro.
O que não significa que o fascismo
italiano fosse tolerante. Gramsci foi mantido na prisão até a morte,
Matteotti e os irmãos Rosselli foram assassinados, a liberdade de
imprensa suspensa, os sindicatos desmantelados, os dissidentes políticos
confinados em ilhas remotas, o poder legislativo tornou-se pura ficção e
o executivo (que controlava o judiciário, assim como a mídia) emanava
diretamente as novas leis, entre as quais a da defesa da raça (apoio
formal italiano ao Holocausto).
A imagem incoerente que descrevi
não era devida à tolerância: era um exemplo de desconjuntamento político
e ideológico. Mas era um “desconjuntamento ordenado”, uma confusão
estruturada. O fascismo não tinha bases filosóficas, mas do ponto de
vista emocional era firmemente articulado a alguns arquétipos.
Chegamos
agora ao segundo ponto de minha tese. Existiu apenas um nazismo, e não
podemos chamar de “nazismo” o falangismo hipercatólico de Franco, pois o
nazismo é fundamentalmente pagão, politeísta e anticristão, ou não é
nazismo. Ao contrário, pode-se jogar com o fascismo de muitas maneiras, e
o nome do jogo não muda. Acontece com a noção de “fascismo” aquilo que,
segundo Wittgenstein, acontece com a noção de “jogo”. Um jogo pode ser
ou não competitivo, pode envolver uma ou mais pessoas, pode exigir
alguma habilidade particular ou nenhuma, pode envolver dinheiro ou não.
Os jogos são uma série de atividades diversas que apresentam apenas
alguma “semelhança de família”:
1 - 2 - 3 - 4
abc bcd cde def
Suponhamos
que exista uam série de grupos políticos. O grupo 1 é caracterizado
pelos aspectos abc, o grupo 2, pelos aspectos bcd e assim por diante. 2 é
semelhante a 1 na medida em que têm dois aspectos em comum. 3 é
semelhante a 2 e 4 é semelhante a 1 (têm em comum o aspecto c). O caso
mais curioso é dado pelo 4, obviamente semelhante a 3 e a 2, mas sem
nenhuma característica em comum com 1. Contudo, em virtude da
ininterrupta série de decrescentes similaridades entre 1 e 4, permanece,
por uma espécie de transitoriedade ilusória, um ar de família entre 4 e
1.
O termo “fascismo” adapta-se a tudo porque é possível
eliminar de um regime fascista um ou mais aspectos, e ele continuará
sempre a ser reconhecido como fascista. Tirem do fascismo o imperialismo
e teremos Franco ou Salazar; tirem o colonialismo e teremos o fascismo
balcânico. Acrescentem ao fascismo italiano um anticapitalismo radical
(que nunca fascinou Mussolini) e teremos Ezra Pound. Acrescentem o culto
da mitologia céltica e o misticismo do Graal (completamente estranho ao
fascismo oficial) e teremos um dos mais respeitados gurus fascistas,
Julios Evola.
A despeito dessa confusão, considero possível
indicar uma lista de características típicas daquilo que eu gostaria de
chamar de “Ur-Fascismo”, ou “fascismo eterno”. Tais características não
podem ser reunidas em um sistema; muitas se contradizem entre si e são
típicas de outras formas de despotismo ou fanatismo. Mas é suficiente
que uma delas se apresente para fazer com que se forme uma nebulosa
fascista.
1. A primeira característica de um Ur-Fascismo é o
culto da tradição. O tradicionalismo é mais velho que o fascismo. Não
somente foi típico do pensamento contra-reformista católico depois da
Revolução Francesa, mas nasceu no final da idade helenística como uma
reação ao racionalismo grego clássico.
Na bacia do Mediterrâneo,
povos de religiões diversas (todas aceitas com indulgência pelo Panteon
romano) começaram a sonhar com uma revelação recebida na aurora da
história humana. Essa revelação permaneceu longo tempo escondida sob o
véu de línguas então esquecidas. Havia sido confiada aos hieróglifos
egípcios, às runas dos celtas, aos textos sacros, ainda desconhecidos,
das religiões asiáticas.
Essa nova cultura tinha que ser
sincretista. “Sincretismo” não é somente, como indicam os dicionários, a
combinação de formas diversas de crenças ou práticas. Uma combinação
assim deve tolerar contradições. Todas as mensagens originais contêm um
germe de sabedoria e, quando parecem dizer coisas diferentes ou
incompatíveis, é apenas porque todas aludem, alegoricamente, a alguma
verdade primitiva.
Como consequência, não pode existir avanço do
saber. A verdade já foi anunciada de uma vez por todas, e só podemos
continuar a interpretar sua obscura mensagem. É suficiente observar o
ideário de qualquer movimento fascista para encontrar os principais
pensadores tradicionalistas. A gnose nazista nutria-se de elementos
tradicionalistas, sincretistas ocultos. A mais importante fonte teórica
da nova direita italiana Julius Evola, misturava o Graal com os
Protocolos dos Sábios de Sião, a alquimia com o Sacro Império Romano. O
próprio fato de que, para demonstrar sua abertura mental, a direita
italiana tenha recentemente ampliado seu ideário juntando De Maistre,
Guenon e Gramsci é uma prova evidente de sincretismo.
Se
remexerem nas prateleiras que nas livrarias americanas trazem a
indicação “New Age”, irão encontrar até mesmo Santo Agostinho e, que eu
saiba, ele não era fascista. Mas o próprio fato de juntar Santo
Agostinho e Stonehenge, isto é um sintoma de Ur-Fascismo.
2. O
tradicionalismo implica a recusa da modernidade. Tanto os fascistas como
os nazistas adoravam a tecnologia, enquanto os tradicionalistas em
geral recusam a tecnologia como negação dos valores espirituais
tradicionais. Contudo, embora o nazismo tivesse orgulho de seus sucessos
industriais, seu elogio da modernidade era apenas o aspecto superficial
de uma ideologia baseada no “sangue” e na “terra” (Blut und Boden).
A recusa do mundo moderno era camuflada como condenação do modo de vida
capitalista, mas referia-se principalmente à rejeição do espírito de
1789 (ou 1776, obviamente). O iluminismo, a idade da Razão eram vistos
como o início da depravação moderna. Nesse sentido, o Ur-Fascismo pode
ser definido como “irracionalismo”.
3. O irracionalismo depende
também do culto da ação pela ação. A ação é bela em si, portanto, deve
ser realizada antes de e sem nenhuma reflexão. Pensar é uma forma de
castração. Por isso, a cultura é suspeita na medida em que é
identificada com atitudes críticas. Da declaração atribuída a Goebbels
(“Quando ouço falar em cultura, pego logo a pistola”) ao uso frequente
de expressões como “Porcos intelectuais”, “Cabeças ocas”, “Esnobes
radicais”, “As universidades são um ninho de comunistas”, a suspeita em
relação ao mundo intelectual sempre foi um sintoma de Ur-Fascismo. Os
intelectuais fascistas oficiais estavam empenhados principalmente em
acusar a cultura moderna e a inteligência liberal de abandono dos
valores tradicionais.
4. Nenhuma forma de sincretismo pode
aceitar críticas. O espírito crítico opera distinções, e distinguir é um
sinal de modernidade. Na cultura moderna, a comunidade científica
percebe o desacordo como instrumento de avanço dos conhecimentos. Para o
Ur-Fascismo, o desacordo é traição.
5. O desacordo é, além
disso, um sinal de diversidade. O Ur-Fascismo cresce e busca o consenso
desfrutando e exacerbando o natural medo da diferença. O primeiro apelo
de um movimento fascista ou que está se tornando fascista é contra os
intrusos. O Ur-Fascismo é, portanto, racista por definição.
6. O
Ur-Fascismo provém da frustração individual ou social. O que explica
por que uma das características dos fascismos históricos tem sido o
apelo às classes médias frustradas, desvalorizadas por alguma crise
econômica ou humilhação política, assustadas pela pressão dos grupos
sociais subalternos. Em nosso tempo, em que os velhos “proletários”
estão se transformando em pequena burguesia (e o lumpesinato se auto
exclui da cena política), o fascismo encontrará nessa nova maioria seu
auditório.
7. Para os que se vêem privados de qualquer
identidade social, o Ur-Fascismo diz que seu único privilégio é o mais
comum de todos: ter nascido em um mesmo país. Esta é a origem do
“nacionalismo”. Além disso, os únicos que podem fornecer uma identidade
às nações são os inimigos. Assim, na raiz da psicologia Ur-Fascista está
a obsessão do complô, possivelmente internacional. Os seguidores têm
que se sentir sitiados. O modo mais fácil de fazer emergir um complô é
fazer apelo à xenofobia. Mas o complô tem que vir também do interior: os
judeus são, em geral, o melhor objetivo porque oferecem a vantagem de
estar, ao mesmo tempo, dentro e fora. Na América, o último exemplo de
obsessão pelo complô foi o livro The New World Order, de Pat Robertson.
8.
Os adeptos devem sentir-se humilhados pela riqueza ostensiva e pela
força do inimigo. Quando eu era criança ensinavam-me que os ingleses
eram o “povo das cinco refeições”: comiam mais frequentemente que os
italianos, pobres mas sóbrios. Os judeus são ricos e ajudam-se uns aos
outros graças a uma rede secreta de mútua assistência. Os adeptos devem,
contudo, estar convencidos de que podem derrotar o inimigo. Assim,
graças a um contínuo deslocamento de registro retórico, os inimigos são,
ao mesmo tempo, fortes demais e fracos demais. Os fascismos estão
condenados a perder suas guerras, pois são constitutivamente incapazes
de avaliar com objetividade a força do inimigo.
9. Para o
Ur-Fascismo não há luta pela vida, mas antes “vida para a luta”. Logo, o
pacifismo é conluio com o inimigo; o pacifismo é mau porque a vida é
uma guerra permanente. Contudo, isso traz consigo um complexo de
Armagedon: a partir do momento em que os inimigos podem e devem ser
derrotados, tem que haver uma batalha final e, em seguida, o movimento
assumirá o controle do mundo. Uma solução final semelhante implica uma
sucessiva era de paz, uma idade de Ouro que contestaria o princípio da
guerra permanente. Nenhum líder fascista conseguiu resolver essa
contradição.
10. O elitismo é um aspecto típico de qualquer
ideologia reacionária, enquanto fundamentalmente aristocrática. No curso
da história, todos os elitismos aristocráticos e militaristas
implicaram o desprezo pelos fracos. O Ur-Fascismo não pode deixar de
pregar um “elitismo popular”. Todos os cidadãos pertencem ao melhor povo
do mundo, os membros do partido são os melhores cidadãos, todo cidadão
pode (ou deve) tornar-se membro do partido. Mas patrícios não podem
existir sem plebeus. O líder, que sabem muito em que seu poder não foi
obtido por delegação, mas conquistado pela força, sabe também que sua
força baseia-se na debilidade das massas, tão fracas que têm necessidade
e merecem um “dominador”. No momento em que o grupo é organizado
hierarquicamente (segundo um modelo militar), qualquer líder subordinado
despreza seus subalternos e cada um deles despreza, por sua vez, os
seus subordinados. Tudo isso reforça o sentido de elitismo de massa.
11.
Nesta perspectiva, cada um é educado para tornar-se um herói. Em
qualquer mitologia, o “herói” é um ser excepcional, mas na ideologia
Ur-Fascista o heroísmo é a norma. Este culto do heroísmo é estreitamente
ligado ao culto da morte: não é por acaso que o mote dos falangistas
era: “Viva la muerte!” À gente normal diz-se que a morte é
desagradável, mas é preciso enfrentá-la com dignidade; aos crentes,
diz-se que é um modo doloroso de atingir a felicidade sobrenatural. O
herói Ur-Fascista, ao contrário, aspira à morte, anunciada como a melhor
recompensa para uma vida heróica. O herói Ur-Fascista espera
impacientemente pela morte. E sua impaciência, é preciso ressaltar,
consegue na maior parte das vezes levar os outros à morte.
12.
Como tanto a guerra permanente como o heroísmo são jogos difíceis de
jogar, o Ur-Fascista transfere sua vontade de poder para questões
sexuais. Esta é a origem do machismo (que implica desdém pelas mulheres e
uma condenação intolerante de hábitos sexuais não-conformistas, da
castidade à homossexualidade). Como o sexo também é um jogo difícil de
jogar, o herói Ur-Fascista joga com as armas, que são seu Ersatz fálico:
seus jogos de guerra são devidos a uma invidia penis permanente.
13.
O Ur-Fascismo baseia-se em um “populismo qualitativo”. Em uma
democracia, os cidadãos gozam de direitos individuais, mas o conjunto de
cidadãos só é dotado de impacto político do ponto de vista quantitativo
(as decisões da maioria são acatadas). Para o Ur-Fascismo os indivíduos
enquanto indivíduos não têm direitos e “o povo” é concebido como uma
qualidade, uma entidade monolítica que exprime “a vontade comum”. Como
nenhuma quantidade de seres humanos pode ter uma vontade comum, o líder
apresenta-se como seu intérprete. Tendo perdido seu poder de delegar, os
cidadãos não agem, são chamados apenas pars pro toto, para assumir o
papel de povo. O povo é, assim, apenas uma ficção teatral. Para ter um
bom exemplo de populismo qualitativo, não precisamos mais da Piazza
Venezia ou do estádio de Nuremberg.
Em nosso futuro desenha-se um
populismo qualitativo TV ou Internet, no qual a resposta emocional de
um grupo selecionado de cidadãos pode ser apresentada e aceita como a
“voz do povo”. Em virtude de seu populismo qualitativo, o Ur-Fascismo
deve opor-se aos “pútridos” governos parlamentares. Uma das primeiras
frases pronunciadas por Mussolini no parlamento italiano foi: “Eu poderia ter transformado esta assembléia surda e cinza em um acampamento para meus regimentos”.
De fato, ele logo encontrou alojamento melhor para seus regimentos e
pouco depois liquidou o parlamento. Cada vez que um político põe em
dúvida a legitimidade do parlamento por não representar mais a “voz do
povo”, pode-se sentir o cheiro de Ur-Fascismo.
14. O Ur-Fascismo
fala a “novilíngua”. A “novilíngua” foi inventada por Orwell em 1984,
como língua oficial do Ingsoc, o Socialismo Inglês, mas certos elementos
de Ur-Fascismo são comuns a diversas formas de ditadura. Todos os
textos escolares nazistas ou fascistas baseavam-se em um léxico pobre e
em uma sintaxe elementar, com o fim de limitar os instrumentos para um
raciocínio complexo e crítico. Devemos, porém estar prontos a
identificar outras formas de novilíngua, mesmo quando tomam a forma
inocente de um talk-show popular.
Depois de indicar os
arquétipos possíveis do Ur-Fascismo, permitam-me concluir. Na manhã de
27 de julho de 1943 foi-me dito que, segundo informações lidas na rádio,
o fascismo havia caído e Mussolini tinha sido feito prisioneiro. Minha
mãe mandou-me comprar o jornal. Fui ao jornaleiro mais próximo e vi que
os jornais estavam lá, mas os nomes eram diferentes. Além disso, depois
de uma breve olhada nos títulos, percebi que cada jornal dizia coisas
diferentes. Comprei um, ao acaso, e li uma mensagem impressa na primeira
página, assinada por cinco ou seis partidos políticos como Democracia
Cristã, Partido Comunista, Partido Socialista, Partido de Ação, Partido
Liberal. Até aquele momento pensei que só existisse um partido em todas
as cidades e que na Itália só existisse, portanto, o Partido Nacional
Fascista. Eu estava descobrindo que, no meu país, podiam existir
diversos partidos ao mesmo tempo. E não só isso: como eu era um garoto
esperto, logo me dei conta de que era impossível que tantos partidos
tivessem aparecido de um dia para o outro. Entendi assim que eles já
existiam como organizações clandestinas.
A mensagem celebrava o
fim da ditadura e o retorno à liberdade: liberdade de palavra, de
imprensa, de associação política. Estas palavras, “liberdade”,
“ditadura” - Deus meu -, era a primeira vez em toda a minha vida que eu
as lia. Em virtude dessas novas palavras renasci como homem livre
ocidental.
Devemos ficar atentos para que o sentido dessas
palavras não seja esquecido de novo. O Ur-Fascismo ainda está a nosso
redor, às vezes em trajes civis. Seria muito confortável para nós se
alguém surgisse na boca de cena do mundo para dizer: “Quero reabrir Auschwitz, quero que os camisas-negras desfilem outra vez pelas praças italianas!”.
Ai de mim, a vida não é fácil assim! O Ur-Fascismo pode voltar sob as
vestes mais inocentes. Nosso dever é desmascará-lo e apontar o indicador
para cada uma de suas novas formas – a cada dia, em cada lugar do
mundo. Cito ainda as palavras de Roosevelt: “Ouso dizer que, se a
democracia americana parasse de progredir como uma força viva, buscando
dia e noite melhorar, por meios pacíficos, as condições de nossos
cidadãos, a força do fascismo cresceria em nosso país” (4 de novembro de 1938). Liberdade, liberação são uma tarefa que não acaba nunca. Que seja este o nosso mote: “Não esqueçam”.
E permitam-me acabar com uma poesia de Franco Fortini:
Sulla spalletta del ponte
Le teste degli impiccati
Nell'acqua della fonte
La bava degli impiccati
Sul lastrico del mercato
Le unghie dei fucilati
Sull'erba secca del prato
I denti dei fucilati
Mordere l'aria mordere i sassi
La nostra carne non à più d'uomini
Mordere l'aria mordere i sassi
Il nostro cuore non à più d'uomini.
Ma noi s'è letto negli occhi dei morti
E sulla terra faremo libertà
Ma l'hanno stretta i pugni dei morti
La giustizia che si farà.
(Na
amurada da ponte/ A cabeça dos enforcados/Na água da fonte/ A baba dos
enforcados/No calçamento do mercado/As unhas dos fuzilados/Sobre a grama
seca do prado/Os dentes dos fuzilados/Morder o ar morder as pedras/
Nossa carne não é mais de homens/Morder o ar morder as pedras/Nosso
coração não é mais de homens/ Mas lemos nos olhos dos mortos/ E sobre a
terra a liberdade havemos de fazer/ Mas estreitaram-na nos punhos os
mortos/A justiça que se há de fazer.)”
Umberto Eco, O Fascismo Eterno, in: Cinco Escritos Morais, Tradução: Eliana Aguiar, Editora Record, Rio de Janeiro, 2002.
(1) Usado
atualmente em lógica para designar conjuntos “esfumados”, de contornos
imprecisos, o termo fuzzy poderia ser traduzido como “esfumado”,
“confuso”, “impreciso”, “desfocado”.
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