Os Direitos Humanos no Conflito da Líbia
Carlos A. Lungarzo
AIUSA 9152711
A formação, em 18/03, de uma coalizão liderada por potências ocidentais para intervir na Líbia, tem provocado tanto reações de “neutralidade” (Alemanha, países do BRIC, etc.) como intensas críticas de comunidades políticas nacionalistas e antiimperialistas, algumas das quais se autopercebem como membros da esquerda.
Entretanto, setores da esquerda nos países mais politizados, e numerosas pessoas e grupos liberal-progressistas, consideram necessária a intervenção para evitar o genocídio. O cruzamento de pontos de vista é notório na Europa. A Itália, hoje um país sem esquerda, foi o mais fiel aliado de Gaddafi, embora tenha “virado” quando a ONU decidiu intervir. Os neofascistas italianos consideram o líder líbio uma figura fraterna, cuja ideologia difere apenas na base religiosa (não muito divergente, por sinal, do fundamentalismo cristão).
Os neonazistas franceses e alemães, também apoiam a ditadura líbia, e embora Alemanha não tenha hoje uma grande proporção de nazistas no governo, o pró-fascismo ténue da Democracia Cristã é suficiente para escolher pela abstenção. Marine Le Pen, filha do fundador do Frente Nacional na França, criticou a intervenção da seu país na Líbia, tendo em mente uma política que também a ultradireita americana defende (por exemplo, o famigerado Ku Klux Klan): se os povos árabes não merecem atenção, tampouco é correto intervir em suas disputas internas. Grosseiramente: “deixem eles se matarem”.
No dia 27 de março, Franco Frattini, o sinuoso chanceler italiano, prometeu uma proposta conjunta com Alemanha para conseguir que Gadaffi “negocie”. Negociar o quê? Ambos os países sabem que não podem entrar em fortes divergências com as democracias de tipo liberal, como a França e a GB, mas esperam nas sombras o momento de se reaproximar de Gaddafi. Trata-se, segundo tudo indica, de evitar a derrubada do ditador, para que a aliança entre o neofascismo europeu e o despotismo líbio siga fazendo bons negócios.
Nos EEUU, muitos dos deputados conservadores apoiam a intervenção porque a consideram mais uma das muitas invasões americanas para aumentar o domínio mundial. Entretanto, esta posição não é geral. Por razões políticas (como a “fraternidade” da Líbia com os países conservadores), setores de direita e de centro também repudiam a ação militar. Num eleitorado onde os Republicanos, somados à direita do Partido Democrata, reúnem quase um 60% dos votos, as pesquisas mostram (com um erro de ±3%) que o 67% dos pesquisados está contra a intervenção em Líbia. (The Daily Conservative. Vide.) Se só os liberais, esquerdistas e apolíticos estivessem contra, essa proporção não deveria passar de 40%.
A direita mais lúcida percebe Gaddafi como o equivalente africano de um dos muitos ditadores que os EEUU apoiaram ao longo das últimas décadas na América Latina: Pérez Giménez, Trujillo, Battistia, Somoza, Pinochet, Medici, etc. A diferença é que, por causa da herança histórica colonial, África é um dos poucos locais onde a influência imperialista americana é menor que a de deus parceiros europeus, devendo ainda concorrer com os numerosos e abastados criminosos que incentivam o tráfico de armas na região.
Para a direita americana, Líbia é um aliado contra Al-Qaida, e um fornecedor médio no conflitivo mercado do petróleo. Por seu caráter psicótico e sua vocação pela violência indiscriminada, o Coronel é muito menos apto para integrar blocos, como os sírios ou os iranianos, e mais fácil de ser manipulado.
Em síntese, devido à diferença entre ideologias declaradas e reais, é difícil classificar os cidadãos em “esquerda” e “direita”, de acordo com seu ponto de vista sobre a intervenção. Um dos mais experientes especialistas em relações internacionais da Universidade de Princeton, Richard Falk, há descrito claramente esta situação (vide) com seu próprio ponto de vista:
Uma intervenção militar não pode realizar-se sem um alto nível de confiabilidade no desenvolvimento da ação posterior, pois qualquer morte de civis é uma forma de criminalidade internacional.
A oposição à intervenção na Líbia é muito menor que a que houve contra a invasão a Iraque em 2003, pois, a despeito da personalidade cruenta de Saddam Hussein, não existia nenhuma razão baseada em pacifismo ou direito humanitário para aquele ataque. Entretanto, sendo o motivo aduzido pela coalização para a atual intervenção na Líbia de natureza humanitária (parar o massacre dos revolucionários líbios e de civis em geral), parece insuficiente a atenção dada pelos partidários de uma ou outra posição à análise do papel dos direitos humanos tanto no conflito interno (governo contra opositores) como no externo (coalização contra governo).
Aspectos Humanitários do Conflito
Em 23 de fevereiro, a Anistia Internacional acusou a ONU de ignorar o genocídio dos líbios, mesmo depois da ameaça de Gaddafi de “limpar a Líbia casa por casa”. AI qualificou de vergonhosa a resposta do Conselho de Segurança da ONU, reduzida a dar “conselhos morais”, como se Gaddafi fosse um adolescente culposo que pede ajuda a seu confessor, em vez de propor um imediato embargo de armas e recursos financeiros. Anistia não disse isto, mas eu não pude evitar pensar que o Brasil parece ter habilidade para influenciar as grandes potências, pois sua política de dar “sermões” aos governos, para evitar o compromisso de intervir (salvo contra fações populares indefesas, como no Haiti), parece ser bem recebida na ONU.
“O coronel Gaddafi deixou claro publicamente que está disposto a matar quem se opor para permanecer no poder”, disse Salil Shetty, o secretário-geral de Anistia Internacional. (Vide.) A ONG não defende explicitamente ações militares, embora exija ações concretas como bloqueio e desarmamento. Os ativistas de direitos humanos nutrem uma intensa repulsa contra ações militares, mesmo que pareçam humanitárias e democráticas. Os mais radicais pensamos que, a despeito das diferenças entre diversos exércitos (por exemplo, entre os da América Latina e os dos países Escandinavos), toda corporação armada (diferente das massas espontaneamente armadas durante uma revolta) só pode conduzir à brutalização por sua própria natureza, mesmo que não usassem da violência.
Um mês depois (21/03), quando a coalizão já estava em ação, Anistia Internacional focou sua preocupação na vigilância dos direitos humanos durante o período de hostilidades. A cautela de AI em relação com as medidas violentas se deve a dois fatos: Um é o perigo de produzir “danos colaterais” em civis. Embora os exércitos de qualquer tipo considerem “naturais” estes danos e até calculem friamente quantos civis deverão matar para obter uma vantagem, a comunidade de direitos humanos considera aberrante qualquer morte de inocentes, e entende que uma ação que não tem probabilidade máxima de evitá-las deve ser cancelada, qualquer que seja o tamanho da perda estratégica. A outra razão é o risco indireto de produzir uma catástrofe humanitária, por causa do pânico, os deslocamentos, a destruição de infraestrutura, etc. Em 2003, as mais confiáveis ONGs de direitos humanos se opuseram à invasão ao Iraque (mesmo se as fábulas sobre armas nucleares tivessem sido verdadeiras), porque ela produziria uma catástrofe humanitária, como de fato aconteceu. Na Líbia, no entanto, a catástrofe começou com a repressão de Gaddafi, e a criação de uma zona de exclusão deve diminuí-la.
Anistia Internacional, focando na proteção dos direitos humanos dentro do cenário bélico atual, coloca ênfase na necessidade de cumprir os protocolos humanitários para tempo de guerra, especialmente aquele de que todas as partes devem abster-se de atingir qualquer alvo civil (Vide uma explicação da ONG sobre obediência a medidas humanitárias). Isto deve valer tanto para o governo Líbio, como para os revolucionários e para os membros da coalizão. Entendo que estas exigências de AI podem ser tornadas mais rigorosas, como tenho feito na lista que segue. Elas devem proibir:
v Ataques desproporcionais de qualquer índole.
v Ataque contra infraestruturas civis, mesmo que estejam sendo usadas por militares, e que não existam civis usados como escudo.
v Ataques contra a mídia, embora esteja sendo usada para propaganda política.
v Ataques contra objetivos civis, mesmo quando estes possam servir para aumentar a capacidade bélica do inimigo.
Os combatentes deverão selecionar seus alvos calculando probabilidade a priori nula para danos civis. Os civis que sejam vulnerados por erro, não podem ser considerados “danos colaterais”, como na filosofia mercantilista dos exércitos profissionais, para os que vale mais a gasolina ou a munição que a vida humana. Sempre deverá ser entendido que o dano aos civis é um grave erro que deve ser suprimido no futuro, e cujas consequências devem ser reparadas. Também, todos os prisioneiros, sejam civis ou militares, todos os combatentes inimigos rendidos ou neutralizados (com maior razão se estivessem feridos), deverão receber um trato humanitário nos termos da Convenção Internacional, com a única eventual “punição” de limitação da sua liberdade se isto fosse imprescindível. No caso de prisioneiros conhecidos como autores de atrocidades, deverão ser encaminhados ao Tribunal Penal Internacional.
Respondendo a perguntas usuais, Anistia Internacional esclarece, com base em informações de pesquisadores in loco:
v Forças governamentais têm bombardeado cidades e usado artilharia e bombas nas áreas urbanas.
v Existem relatos não confirmados de que os bombardeios do governo foram diretamente contra civis ou, então, aplicados de maneira massiva. (No momento de escrever esta matéria, AI estava ainda tentando confirmar estas denúncias.)
v Circulam informes ainda sem confirmar de que é crescente o número de disparos de artilharia e bombardeios em cidades e vilas, que foram inicialmente isoladas cortando seus telefones.
v Deve ter-se em conta que os civis que se tornam resistentes, passam a ter as mesmas obrigações e direitos que a legislação internacional humanitária reconhece às forças armadas.
v Esta observação mostra que AI não está diferenciando entre crueldades “justas” e “injustas”.
v Entretanto, combatentes neutralizados devem receber o mesmo tratamento que não combatentes. Nesse sentido, AI afirma ter recebido informações de prisioneiros torturados e assassinados após sua rendição.
v AI não tem certeza de que o governo Líbio esteja usando civis como escudos humanos. Entretanto, lembra a legislação internacional de que o inimigo da parte que usa escudos humanos não pode atacar colocando em risco esses “escudos”. Este assunto foi longamente discutido quando Israel, nos violentos ataques contra Cisjordânia e Líbano, acusou os palestinos e libaneses de usarem escudos humanos. Na época, as ONGs de direitos humanos exigiram que esses escudos humanos fossem respeitados pelos atacantes, mesmo se isto implicava perder posições militares. Os israelenses não obedeceram e massacraram dúzias de civis.
v AI não conhece exatamente o comportamento dos revolucionários, mas têm informação de que estes não estão protegendo adequadamente os civis.
v Finalmente, a ONG manifesta a necessidade de que Gaddafi pare a chacina, faça recuar suas forças, proíba a tortura e o tratamento desumano de prisioneiros e habitantes, e revele nome, localização e outras circunstâncias de seus capturados, permitindo o acesso a observadores internacionais.
Durante as 3 semanas que AI manteve pesquisadores em Bengasi observou que o governo líbio tem usado força letal contra manifestantes pacíficos, sendo alguns deles deliberadamente assassinados. Em 23/02 os desaparecidos se calculavam em centenas, porém sem avaliações exatas. A maioria das vítimas foi alvo de fogo indiscriminado e de tortura e outros abusos. Considera-se sério o risco de que continuem as desaparições entre os cativos do governo, bem como as torturas e assassinatos. O fato de que não se conheçam os nomes dos principais ativistas da revolução deve-se ao grave risco de que, uma vez identificados, os membros de suas tribos sejam exterminados.
O governo tinha preso até 23 de março cerca de uma dúzia de jornalistas, dos quais alguns foram torturados e outro morto, mas os sobreviventes foram liberados. Os pesquisadores de Anistia Internacional têm visto vários estrangeiros, mas não podem garantir que sejam mercenários.
Tudo ou Nada
Percebe-se que Anistia Internacional não qualifica os membros de ambos os bandos em termos políticos. Não se diz se os revolucionários são reais atores de um processo de libertação, ou se estão, como pretendem certas fontes, ao serviço do imperialismo. Tampouco diz se Gaddafi é um tirano de estilo nazista ou um governante soberano ameaçado; apenas observa o fato objetivo de que o processo liderado pelo governo é um verdadeiro genocídio, e que o presidente é responsável de crimes de guerra. Tampouco se manifesta sobre o caráter do projeto da coalizão: depredação imperialista movida pelo sabor do petróleo ou campanha protetora?
A Voz do Nobel
A relação entre direito humanitário e política no caso de Líbia se tornou algo mais interessante para o público da América do Sul, desde que, no 21/03, o prêmio Nobel da Paz argentino, o arquiteto Adolfo Pérez Esquivel, repudiou a intervenção da coalizão, numa declaração para uma rádio da cidade de Rosario. (Vide.)
Seus argumentos são iguais a muitos outros, mas sua declaração tem especial interesse porque a maioria das premiações Nobel da Paz dos últimos tempos (inclusive a dele) foram concedidas pela defesa dos direitos humanos, e não, como acontecia no começo da Fundação Nobel, pela pacificação de conflitos bélicos. Portanto, os laureados nestes casos são percebidos como porta-vozes altamente qualificados dos direitos humanos.
Em sua análise, o autor acusa os membros da coalizão de ações imperialistas, e denuncia a ONU como representante desse imperialismo. Nesse contexto, compara a situação de Líbia com a que gerou a invasão a Iraque em 2003. Ora, se o que está sendo questionado é o pretexto dos coligados de proteger a população do genocídio de Gaddafi, é evidente que, em quase todos os países (grandes ou pequenos, ricos ou pobres), os governos no atuam por nenhuma inspiração ética de seus líderes, mas por ambição econômica, militar, política, e até por ódio racial e religioso. Nesse sentido, Esquivel é coerente com sua posição durante sua investigação sobre a força de “paz” de Haiti (a famigerada MINUSTAH) em 2005, quando declarou ter recebido denúncias de tortura, estupro e assassinato de haitianos pelos integrantes da missão da ONU. Ele inclui na denúncia da Argentina e do Brasil, uma atitude infrequente, porque em ambos os países sempre se acusa os outros de ter a culpa de qualquer conflito.
Na comparação entre a Líbia e o Iraque, a verdadeira analogia é a que se manifesta entre a situação atual naquele país e a situação do Iraque da década de 80, quando as forças de Hussein atacaram o Irão e promoveram genocídios contra curdos e xiitas. Inversamente, não há analogia sensível entre a situação atual da Líbia e a do Iraque na época da última invasão. Em 2003, a violação aos direitos humanos por Saddam Hussein se mantinha periódica como em dúzias de outros países, mas não existia indício de novo genocídio. Por outro lado, os pretextos para a invasão dos aliados careciam de sentido, pois era óbvio que Iraque não podia ter armas nucleares nem biológicas, e suas eventuais armas químicas só podiam ser resíduos inócuos. Tampouco havia uma rebelião popular.
Pelo contrário, na Líbia, não acontece uma ação militar estratégica (como a posse amas nucleares), mas um ato realmente anti-humanitário, como um genocídio. Os temores de genocídio não são apenas suspeitos, mas uma realidade que já cobrou alguns milhares de mortos. Não está claro quantos mortos precisamos contar para entender que se trata mesmo de um massacre.
Esquivel enfatiza-se, corretamente, que durante 42 anos as potencias ocidentais nada fizeram para promover os direitos humanos, a democracia, a igualdade e a justiça em Líbia, mas preferiram-se associar aos lucros petroleiros. Este tipo de cumplicidade criminosa, que mede o valor dos povos em dinheiro, é repulsiva para qualquer projeto civilizado, mas não é privativa das potências coloniais. Países grandes com aspirações hegemônicas (mesmo regionais) como os do BRIC, executam políticas oportunistas para ganhar mercados, vantagens estratégicas, influência internacional e para favorecer os negócios de suas elites, sendo complacentes, para esse fim, com os crimes humanitários que se cometem. O Brasil, apesar da suposta fraternidade com países pobres vizinhos, ameaçou Bolívia e Equador quando estas tentaram questionar as políticas predatórias da Petrobrás e das empresas brasileiras privadas.
Mas, o ponto crucial é este: se os países ocidentais apoiam uma ditadura sangrenta durante 42 anos, é errado que deixem de apoiá-la no ano 43º? Seria ingênuo seria pensar que a coalizão ataca Líbia por solidariedade com seu povo massacrado, mas isso não reduz o valor do ataque como proteção aos civis. Em realidade, os aliados têm medo de que uma chacina enorme, como as feitas por Gaddafi no passado, possa estender o clima de conflito na região. Em outras épocas, os países imperialistas olhavam com indiferença e até com prazer os crimes de Gaddafi, pois estes pareciam tornar mais forte seu governo, favorecendo os negócios petroleiros de seus parceiros. Inclusive, não se preocuparam com o apoio “fraternal” dado pelo Coronel a seus colegas africanos Idi-Amin (Uganda), Jean-Bedel Bokassa (Império Centro-Africano), Charles Taylor (Serra Leona) Haile Mariam (Etiópia), e Omar Hassan Ahmad al-Bashi (Sudão) que tinham cobrado centenas de milhares de mortos em massacres e torturas massivas.
Desta vez, os casos de Tunísia e Egito mostram que Gaddafi corre o risco de ser derrubado. Se isso acontecesse durante uma guerra na qual a coalizão se torna cúmplice do ditador, os rebeldes virariam radicais inimigos dos EEUU, exatamente como aconteceu no Irão em 1979. Lá, os americanos não se importaram na defesa das vítimas de Pahlavi e, quando a teocracia islâmica triunfou, esta se transformou no maior pesadelo dos EEUU e seus cúmplices.
(No caso da Irão, talvez possa argumentar-se que os crimes do atual regime são mais cruéis e brutais que os de Reza Pahlavi, e que era correto negar apoio a sua revolução, mas não é justo usar esses critérios táticos para avaliar os direitos humanos. Além disso, os revolucionários anti-Gaddafi não são radicais religiosos e, caso fossem, a comunidade internacional deveria manter controle desde o começo, evitando a repetição do caso de Irão.)
Vítimas ou Sócios do Imperialismo?
Uma olhada rápida aos numerosos atos de terrorismo internacional, apoiados ou patrocinados por Gaddafi, faz pensar na forma “meiga” em que os países colonialistas atuaram contra ele, já que nunca houve ameaças de invasão, e as medidas internacionais tomadas foram insignificantes (salvo um bombardeio rápido em que morreu uma esposa e a filha adotiva do Coronel). Isto contrasta com a truculência das medidas contra Cuba ou Nicarágua, e o golpe contra Chile em 1973. Portanto, não cabe dúvida de que, apesar de sua política agressiva, Líbia foi útil durante décadas para as potências ocidentais, e que estas percebiam o país como um centro terrorista que só ameaçava outros países marginais, e que não colocavam em risco o capitalismo. De fato, os EEUU só se preocuparam pelo terrorismo líbio nos anos 80, quando os negócios americanos com o petróleo de Gaddafi foram dificultados pelas queixas de outros países que propunham um boicote contra Líbia. Nos piores momentos, Washington considerou o regime da Líbia como inimigo “moderado”, e não como objeto de destruição como Cuba ou a Coréia do Norte. Apenas o incluiu na lista de países terroristas, e seus bombardeios contra ele foram uma simples revanche pela morte de dos cidadãos americanos numa boate alemã.
Estas considerações tornam pouco adequadas as crises de pânico pelo “roubo” do petróleo líbio que a coalização parece querer perpetrar, segundo observadores do assim dito “nacionalismo de esquerda”. Com efeito, logo após a vitória de Gaddafi sobre a monarquia e a transformação do país numa república popular, o estado fundou um organismo nacional do petróleo (LICONO, por sua sigla em inglês. Vide).
Criada em março de 1970, LINOCO se associou logo com a Occidental Petroleum americana, e em 1971/72, com a SINCAT e o ENI da Itália. Apesar da nacionalização de 1972 e o controle do estado sobre os campos petrolíferos, o desconforto produzido nos países imperialistas foi logo superado. Em abril de 1974, Líbia conseguiu acordos estáveis com Exxon, Mobil, a CFP francesa, a Elf Aquitaine e a Agip. Em 1976, o conflito entre a LINOCO e a BP, o maior enfrentado pela Líbia, já tinha começado a se resolver. As companhias britânicas e americanas nacionalizadas obtiveram fortes compensações que justificaram sua aliança com Líbia, de maneira contrária ao que aconteceu entre EEUU e Cuba em outras rubricas. A venda de empresas petrolíferas a Líbia pelos países ricos não foram desapropriações revolucionárias como as de Cuba, mas negócios geralmente favoráveis aos vendedores.
Durante o governo Reagan, os EEUU colocaram algumas sanções contra Líbia, por causa da colaboração com o terrorismo. Essas sanções se estenderam de 1981 a 1988 e mais levemente até 1999, mas houve muita atividade “tolerada” de operadoras americanas nos negócios com a Líbia. O governo americano não interferiu em novas negociações de Gaddafi com Grã Bretanha e Canadá. Contrariamente à ideia dos setores nacionalistas, de que o Coronel está sendo combatido por sua oposição as políticas coloniais, nunca sua proximidade com essas políticas foi maior do que agora (se é que alguma vez foi hostil a elas). Em 2003, renunciou publicamente a seu projeto inicial de formação de um arsenal nuclear, de maneira mais comedida que outros líderes islâmicos, e até ofereceu sua colaboração para o que se chama “guerra contra o terror”, que é a estratégia dos EEUU para atacar quaisquer outros países com o pretexto do perigo terrorista. Veja mais informação sobre a política petroleira da Líbia em relação com Ocidente aqui.
Em outros aspectos, não vinculados diretamente à economia, os EEUU mostraram grande tolerância com a ditadura de Gaddafi, um fato que abona a crença de que era vista como um “inimigo recuperável” (... e utilizável). Por exemplo, em 2002, Fathi Eljahm (1941-2009), o mais conhecido opositor ao Coronel, foi preso por pedir um regime democrático para a Líbia, e morreu sob custódia 7 anos depois. Os EEUU não reagiram como fizeram no caso de Cuba e inclusive a organização nominalmente ocupada em direitos humanos, Human Right Watch, ignorou o caso, que era um típico problema de sua alçada.
Tanto os interesses econômicos, como a evidência de que os aliados tentaram não desestabilizar Gaddafi, mostra que estão certos os que dizem que atual coalizão não atua, em sua maioria, por razões nobres e humanas. Mas, esse interesse econômico e estratégico de dirigentes como Sarkozy no significa que a proposta de parar o genocídio seja errada. Ninguém rejeita um tratamento médico eficiente, porque sabe que o hospital está interessado em ganhar dinheiro e não em fazer o bem. Tampouco parece sensato dizer que os imperialistas estão atuando agora simplesmente por causa do petróleo, já que o comércio deste recurso com a Líbia está em seu melhor momento desde 1982.
Pacifismo e Indiferença
O Nobel Esquivel ficou famoso por sua implementação do pacifismo ativo de Gandhi, nas lutas contra as ditaduras da América Latina. Não é oportuno avaliar a eficiência deste método naquele caso particular, mas deve lembrar-se que o pacifismo sempre esteve entre as mais fortes tradições da esquerda. Foi desprezado somente por movimentos identificados desde fora como esquerda, que, curiosamente, definiram o “esquerdismo” como uma doença do comunismo, como fizera Lênin.
No atual caso de Líbia é necessário colocar-se a questão seguinte: os militantes de direitos humanos devem tomar posição em relação com a intervenção militar? Em caso afirmativo, deveria sugerir-se qual é o critério para evitar o genocídio do povo líbio.
Algumas correntes nacionalistas e antiimperialistas não se importam com este massacre, porque entendem que tudo o que se faça contra os EEUU e a Europa é positivo, e que as vítimas dos massacres são “danos colaterais”. Este sempre foi o pensamento típico da direita civil e militar, sendo aberrante fantasiar essa posição como se fosse de esquerda. Em verdade, certa aparente “esquerda” surgida nos anos 60, com formas filosóficas e teológicas, gosta de imagens grandiosas, como aquela de que é necessário sacrificar as vidas humanas em benefício de ideais abstratos. Este foi, mesmo que pareça incrível, o critério usado pelo Partido Comunista Argentino ao apoiar a ditadura que invadiu as Malvinas em 1982. (O que não aconteceu com outros partidos comunistas, apesar das indicações de URSS)
Para os que acham que o genocídio importa, há poucas alternativas. O bloqueio financeiro e de armas proposto por Anistia Internacional em 23 de fevereiro seria insuficiente, visto que o governo líbio resiste até a ação militar da coalização. Outra proposta foi a do presidente venezuelano Hugo Chávez de mediar uma negociação entre o governo e os revolucionários líbios. A sugestão de Chávez lembra a iniciativa de mediação entre Irã e os países ocidentais, oferecida por o Brasil e a Turquia no caso das armas nucleares.
Em ambos os casos, é difícil avaliar a relevância destes oferecimentos. Assim como não importam as intenções da coalizão (o que importa é que ela consiga parar o massacre), tampouco importa que o Brasil, naquele momento, e a Venezuela, agora, estivessem apenas procurando notoriedade internacional. Foi correto que se desse ao Brasil e a Turquia a oportunidade de tentar seu projeto de negociação, porque a situação não exigia urgência. Entretanto, em Líbia se vive um genocídio, que exige urgência. Uma negociação com Gaddafi daria tempo ao ditador para fazer alguns milhares mais de cadáveres novos.
Então, cabe perguntar-se se a oposição à intervenção direta contra o genocídio do povo líbio pode ser justificada em termos do pacifismo, ou deve ser entendida em termos de indiferença. Como disse Lungaretti (vide), a opção de dar armas ao povo é ingênua. Essa solução, que talvez tenha sido proposta de boa fé, implica apenas “lavar-se as mãos”, como fez Stalin durante a Guerra Civil na Espanha, e deixar que os revolucionários (e suas armas) se confrontem com um poderosíssimo exército planejado de medida para o genocídio. É verdade que o único tipo legítimo de luta armada é aquele desenvolvido pelos membros oprimidos da sociedade, que devem voltar a desarmar-se quando o perigo desapareça. Entretanto, existindo uma força armada, mesmo que criada com fines de dominação e não de libertação, ela deve ser colocada ao serviço da população civil, e não esta ser usada como bucha de canhão.
Um ponto fundamental é que os ataques aéreos que está realizando a Coalizão não devem ser acompanhados, em nenhuma hipótese, por intervenção terrestre. Há milhares de exemplos, apenas nas últimas décadas, de atrocidades cometidas pela soldadesca contra a população civil, dos quais conhecemos apenas alguns detalhes que escaparam ao controle dos altos mandos, como os de Abu Ghraib. Deve ficar claro que não isto não é apenas desconfiança dos exércitos imperialistas. Toda força armada está animada de um delírio de destruição, já que nenhuma pessoal normal pode fazer da morte sua vocação. Os exemplos recentes mostram que tropas africanas e latino-americanas, pertencentes a países neocoloniais e não imperialistas, têm cometido diversas atrocidades ao participar das missões internacionais, sejam de paz ou de guerra. O já citado exemplo de Haiti é ululante. Os crimes contra a humanidade de soldados da MINUSTAH (curiosamente, os que pertencem a países menos “imperialistas”) são numerosos, mas deixamos sua análise para um artigo maior.
De qualquer maneira, o uso inteligente da aviação nas zonas de exclusão deve ser suficiente para abater as defesas de Gaddafi em curto tempo.
Libertação e Nacionalização
Após da Segunda Guerra Mundial, ficou evidente o caráter aberrante da dominação de um estado sobre outro, e se levantou a necessidade da libertação dos povos. Entretanto, não foi colocado um problema crucial: como se avalia o grau de libertação de um povo? Certamente, não pode tratar-se da libertação das elites nacionais, pois estas não são representativas e conseguem manter seu poder com base na coação ou na demagogia.
Por exemplo, ter dado a independência a Rhodesia (Zimbabwe), tal como exigia o líder Ian Smith, significava dar legitimidade ao poder branco sobre a maioria negra e repetir a história de África do Sul. Por esse motivo, e não tanto por seu passado imperialista, a Grã Bretanha se recusou a conceder a independência de Rhodesia em 1965. A libertação de um povo supõe, pelo menos, a democracia. De fato, desde Marx sabemos que a emancipação total da espécie humana supõe a abolição das classes sociais. No entanto, até que isso se possa conseguir, a existência de um governo autônomo e democrático é um passo imprescindível na libertação dos povos.
O primeiro estágio, a eliminação de vínculos com a metrópole colonial, era um processo necessário, porém não suficiente. Um exemplo disso está nos países da América Latina e o Caribe, onde, salvo no caso de Haiti, as lutas pela independência simplesmente mudaram a nacionalidade dos opressores. Ou seja, houve não uma eliminação da dominação, mas uma nacionalização da mesma o que foi uma moderada vantagem sobre a crueldade dos regimes coloniais.Com efeito, sem essa substituição de elites estrangeiras por elites nacionais, seria mais difícil atingir uma verdadeira libertação, especialmente em casos em que o colonialismo estava acompanhado de racismo. Assim foi entendido pela esquerda, que apoiou com entusiasmo as revoluções africanas, e algumas revoluções asiáticas.
Entretanto, após da conferência de Bandung de 1955, onde estiveram representados não o bilhão e meio de oprimidos, mas os governos recentemente independentes, geridos quase sempre por suas elites (nas que havia reis, imperadores, marajás, e similares), a esquerda começou a exigir autênticas revoluções que fossem além da troca de um governador europeu por um ditador nacional.
No meio a caudilhos que lutavam, com apóio das potências coloniais e dos traficantes de armas, para incorporar os novos países a seu patrimônio, surgiram também algumas figuras progressistas. Os mais avançados, como Patrice Lumumba, foram assassinados ou foram alvo de golpe, como Ben Bella; os que tinham posições intermédias como Seku Ture foram desmoralizados e neutralizados. Predominaram, então, chefes tribais apoiados pelos exércitos pós-coloniais e grupos clientelistas familiares ou de clã, que se erigiram em autócratas do estilo dos antigos governantes orientais. Gaddafi não pertenceu nunca ao refinado aparato do terrorismo islâmico mais elaborado, até pelo fato de ser um tuareg, e não ter uma forte identidade entre as seitas muçulmanas. Entretanto, não foi uma figura inexpressiva, como Bokassa, Idi Amim, Taylor e outros, porque a privilegiada geografia da Líbia e as reservas de petróleo, o tornavam importante para a economia ocidental.
Sua psicologia não era diferente à daqueles, como mostra sua amizade com os outros ditadores, para ajudar os quais não hesitou em colocar em risco sua população. (Por exemplo, comprometeu tropas líbias para atacar Tanzania em defesa de Idi Amim.) Alguns dos projetos de Gaddafi eram impensáveis para ditadores menores como Taylor. A submissão da África a uma Confederação de Estados Africanos, que nunca vingou, só podia ser imaginado por um país com recursos abundantes, como é Líbia em relação com seus vizinhos.
Isso explica a errática saga de atos terroristas, genocídios e tentativas de anexação tentadas por Gaddafi, cujo espírito totalitário passava acima inclusive da diversidade islâmica. Líbia atacou Chade com intenções hegemônicas, mas também ajudou IRA, da Irlanda, parabenizou os atos terroristas do comando japonês no aeroporto Lod, e apoiou qualquer um que parecesse inimigo de governos ou lideranças cuja eliminação lhe abriria caminho na unificação do poder. Nesse sentido, em um nível de qualidade técnica maior, suas aventuras parecem muito a dos países do noroeste africano, onde os pequenos tiranos provocam guerras incompreensíveis contra vizinhos, de acordo com os interesses de exploradores de minérios, traficantes de armas, laboratórios medicinais, e outros grupos.
Parece claro que a maioria dos países da NATO não tem interesse em derrubar Gaddafi, mas sabem que devem, pelo menos, para o massacre. Apesar da diferença geográfica e cultural, o problema se parece à guerra entre Argentina e GB em 1982. O governo Thatcher desprezou os pedidos de Suécia de que entregasse os prisioneiros de guerra que tinham cometido crimes contra a humanidade. GB só queria as ilhas, e não se importou em derrubar a ditadura.
No caso de Gaddafi, mantê-lo no poder poderia trazer consequências graves se os rebeldes triunfassem. Por outro lado, embora em minoria, as forças humanitárias na Europa ainda são expressivas. O fato de que os Europeus tivessem abandonado Ruanda em 1994, deixando que a China e outras ditaduras armassem as tribos rivais até se destruir, foi um fato que produziu mal estar no mundo civilizado. O general canadense Romeo Dallaire tentou suicídio duas vez, e denunciou publicamente Bélgica por sua inescrupulosa exploração do conflito. Até os EEUU fizeram uma falsa autocrítica, alegando desconhecer a gravidade dos fatos.
Deixar Gaddafi que elimine, digamos, um quinto da Líbia, seria um peso em alguns políticos europeus que ainda tem consciência. Mas, um exame superficial mostra o desespero de vários países por negociar um acordo que possa preservar Gaddafi. De fato, o ditador deveria ter sido levado há anos aos tribunais criminais internacionais.
Para desilusão dos que defendem líderes providencias que levaram seu povo pela senda de Deus, os imperialistas não querem o petróleo de Gaddafi, pois ninguém quer o que já tem, nem tampouco querem afogar um povo do “terceiro mundo”. Eles devem obedecer as numerosas pressões de elementos progressistas que ainda existem e, além disso, precissam evitar uma radicalização maior. Dito com um slogan que parece exagerado: a coalização tenta evitar a matança de rebeldes, não porque queira a queda de Gaddafi, mas porque quer protege-lo.
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