http://passapalavra.info/2016/09/109422
Quando corporações financiam o ativismo social
em 26 set
O ativismo patrocinado por corporações gera contradições que, por fim, engessam ou imobilizam as organizações ativistas.
Por Kannon Sanson
Não se pode efetivamente confrontar o
neoliberalismo, nem as elites globalistas que o alimentam, e ao mesmo
tempo requerer – e receber – delas o financiamento para isso. Parece
óbvio, mas a realidade infelizmente é outra. Há organizações e mais
organizações sem fins lucrativos em todo o mundo que, por uma ou outra
razão, fazem exatamente isso. Ainda que internamente haja organizações
ativistas críticas a essas práticas, a maioria dos participantes não
sabe como o Fórum Social Mundial (FSM) é financiado, nem que grande
parte desse financiamento é canalizado para a organização do evento pelo
seu próprio Conselho Internacional.
As três primeiras edições do Fórum, por
exemplo, receberam significativas doações da Fundação Ford (que tem
estreitas ligações com a CIA[1]) através do seu
programa de “Fortalecimento da Sociedade Civil Global”. Em 2004, quando a
Índia recebeu o FSM em Mumbai, o financiamento provindo da Fundação
Ford foi negado. Mas, isso não mudou absolutamente nada. Com a Ford
formalmente retirada, as doações foram meramente realocadas e passaram a
vir de outras fundações do mesmo tipo.
Financiado o dissenso
A edição deste ano, que será realizada
em Montreal e pretende reagrupar ativistas sociais comprometidos,
coletivos antiguerra e intelectuais proeminentes, está sendo custeada
por uma espécie de consórcio de fundações empresariais, incluindo Ford,
Rockefeller, Soros etc., protegidas sob o guarda-chuva da Engaged Donors
for Global Equity (EDGE) – “Doadores Engajados pela Equidade Global”,
numa tradução livre. A EDGE é uma aliança fechada de organizações
filantrópicas e, para se tornar membro desse consórcio, é necessário
tanto ser aprovado pela diretoria da aliança, como efetuar o pagamento
anual de uma taxa; quanto maior a contribuição de uma organização, maior
o suporte que ela recebe da aliança. É interessante notar que um dos
temas centrais da EDGE, que se define como progressista, é o de
transição justa – mudança balanceada da economia extrativista para a
economia regenerativa -, mesmo tema que está na mesa de grandes
corporações mundiais de energia, cujos crescimentos dependem da
diversificação de suas atividades mundo afora.
Em 2013, o representante da Fundação
Rockfeller Tom Kruse co-presidiu o comitê da EDGE. Na Fundação
Rockefeller, Kruse foi responsável pela “Governança Global” no âmbito do
programa “Prática Democrática”. As doações da Fundação a ONGs são
aprovadas no âmbito do programa de “Fortalecimento da Democracia na
Governança Global”, que é muito semelhante aos praticados pela United
States Agency for International Development (USAID), Agência Americana
para o Desenvolvimento Internacional do Departamento de Estado dos EUA.
Um representante da Open Society Foundation, de George Soros, atualmente
se encontra no Conselho de Administração da EDGE. O Fundo Global
Wallace, que é especializado na prestação de apoio às ONG “mainstream” e
a “mídias alternativas”, incluindo a Anistia Internacional e Democracy
Now, também está no seu Conselho de Administração.
Um documento chave do FSM de 2012 diz:
“Do levante Zapatista em Chiapas (1994) à Batalha de Seattle (1999) e à
criação do Fórum Social Mundial em Porto Alegre (2001), os anos de Não
Existe Alternativa com Reagan e Thatcher foram substituídos pela
convicção que ’um outro mundo é possível.’ Conferências, campanhas
globais e fóruns sociais têm sido cruciais para articular forças locais,
compartilhar experiências e análises, desenvolver expertise e
construir formas concretas de solidariedade internacional, com
movimentos progressistas para justiça social, econômica e ecológica.”
Há
uma óbvia contradição nessa declaração: um outro mundo não é possível
quando a campanha contra o neoliberalismo é financiada por uma aliança
corporativa de doadores comprometida com o neoliberalismo. Eles não só
financiam as atividades, mas também influenciam a estrutura do FSM,
nominalmente descentralizado, em um mosaico disperso de workshops “faça
você mesmo”. Disfarçada de “descentralizada”, de “horizontal” e outras
coisas, a estrutura desses workshops, com sua independência, coloca os
mesmos como servos (muitas vezes inconscientes) de seus financiadores.
As corporações financiariam dissidentes
buscando o controle de sua “Agenda”. E as redes progressistas e
anticapitalistas, assim como as de ambientalistas, acabam por ter
inúmeras de suas atividades sendo moldadas pelos financiadores.
“Tudo o que a Fundação [Ford] fez pode
ser dito como ‘tornando o mundo seguro para o capitalismo’, reduzindo
tensões sociais por ajudar a confortar os aflitos, provendo válvulas de
segurança para a raiva, e melhorando o funcionamento do governo.”
(McGeorge Bundy, Assessor de Segurança Nacional dos presidentes John F.
Kennedy e Lyndon Johnson (1961-1966), e Presidente da Fundação Ford
(1966-1979), em tradução livre.
Marco civil da vigilância em massa
As ações internacionais de empresas e
suas fundações para assegurar seus interesses não se restringem ao FSM.
Desde que o diretor geral da Google foi preso no Brasil em 2012,
corporações estrangeiras passaram a investir milhões de dólares em lobby
no congresso, em instituições acadêmicas como a Fundação Getúlio Vargas
(FGV) e em coletivos ativistas, com intuito de influenciar leis e
processos políticos para a proteção de suas agendas privadas.
A Carta de Olinda, um documento
colaborativo por direitos digitais, foi transformada em “um projeto de
lei que permite a rastreabilidade habilitada à indústrias obsoletas
entrincheiradas contra o futuro e seus sucessores” (Falkvinge, Rick),
chamado ironicamente de Marco Civil da Internet. O processo de lobby de
grandes corporações, de coletivos financiados e acordos costurados a
portas fechadas dá o tom da construção de uma lei que jogou no lixo
direitos fundamentais.
A primeira fase do projeto foi lançada
pelo Ministério da Justiça, em parceria com o Instituto de Tecnologia e
Sociedade da Escola de Direito (ITS) da Fundação Getúlio Vargas, no Rio
de Janeiro em 2009. As Escolas de Direito da Fundação Getúlio Vargas
foram criadas com investimentos da USAID (United States Agency for
International Development), com o intuito de doutrinar países em
desenvolvimento com os grandíssimos sentimentos de Democracia e Justiça
dos Estados Unidos e de adequar o Brasil para os investimentos da maior
potência imperialista global.
A Escola de Direito Getúlio Vargas
lançou um concurso com o nome de “Prêmio Marco Civil da Internet e
Desenvolvimento – patrocinado pela Google Brasil”. A ideia do concurso
foi premiar em dinheiro as melhores ideias para o processo
“colaborativo” de criação do Marco Civil. O critério, óbvio: patrocinado
pela Google, promovido pela FGV e com a presença, é claro, de membros
ilustres do Ministério da Justiça.
Foi demonstrado, com os vazamentos de
Snowden, que a Google (chamada de “NSA corporativa”), ao lado de outras
gigantes da área de tecnologia e informação, trabalha em espionagem e
vigilância global de forma bem semelhante ao governo americano.
O Facebook, o Google e o MercadoLivre
declararam apoio ao Marco Civil da Internet. O interesse explicitamente
óbvio: o Marco Civil estabelece que “provedores de aplicações na
Internet” não são responsáveis pelo conteúdo publicado por seus
usuários. Algo que livraria o diretor da Google da injusta prisão de
2012. Em troca da garantia de direitos para empresas e corporações,
outros direitos civis foram retirados.
O resultado foi um texto aprovado
completamente diferente do colocado em debate público desde 2010. O
Marco Civil determinou a retenção de dados de telecomunicações por um
ano. A invasão da privacidade de todo e qualquer internauta passou a
ser, mais do que um modelo de negócio questionável, uma obrigação legal
imposta pelo Estado. O texto ainda facilita a retirada e bloqueio de
conteúdos e aplicativos ao enfatizar os procedimentos e criar um “mapa
da mina da censura” para juízes de primeira instância. E por fim, a
neutralidade de rede, um conceito pelo qual empresas não poderiam vender
pacotes de acessos restritos, passou ao largo, ainda permitindo pacotes
de “zero rating”, com parceiros de operadoras vendendo “pacotes grátis”
para determinados aplicativos.
Segundo o fundador do Partido Pirata,
Rick Falkvinge, o Marco Civil “deixou de ser um projeto de lei que
garantia à próxima geração de indústrias o terreno fértil de que
precisavam, além da garantia de acesso aos serviços públicos e à
liberdade de expressão aos cidadãos. Passou a ser apenas um projeto de
lei que permite a rastreabilidade habilitada a indústrias obsoletas
entrincheiradas contra o futuro e seus sucessores. Foi um desastre.”
Em recentes documentos vazados da Open
Society Foundation de George Soros e disponíveis na Internet, o
“coletivo” Mídia Ninja recebeu dessa fundação, apenas no último ano (de
agosto de 2015 a agosto de 2016), o valor de US$ 80 mil (R$ 250.000,00).
Outras instituições brasileiras também receberam financiamento de
George Soros, como o Instituto Fernando Henrique Cardoso (R$
350.000,00), a Actantes – Ação Direta pela Liberdade, Privacidade e
Diversidade na Rede (R$ 190.000,00), a Casa Fluminense (R$ 640.000,00), o
Instituto Tecnologia e Sociedade (ITS) / Mudamos.org (R$ 1.100.000,00) e
a Rede Nossa São Paulo (R$ 1.600.000,00). A maioria dessas instituições
também foi financiada pela Ford Foundation no mesmo período.
Com ativistas financiados por
corporações e um forte lobby no Congresso, o resultado não poderia ser
tão diferente. Afinal, as prioridades dos investidores são seus próprios
negócios.
O silêncio dos que se pintam de verde
O ativismo patrocinado por corporações
gera contradições que, por fim, engessam ou imobilizam as organizações
ativistas. Um exemplo é um caso que ocorreu nas Olimpíadas do Rio.
Há vários campos de golfe no Rio de
Janeiro. Mas, por que usar os existentes se podemos destruir uma reserva
ecológica e lá fazer um novo campo com dinheiro público, extinguir
espécies raras e ainda construir condomínios de luxo, para depois
entregá-los para a especulação imobiliária? A destruição da área
ambiental é equivalente ao bairro do Leblon.
O movimento Ocupa Golfe ficou meses
acampado em frente à reserva ecológica, em uma ação contra as obras do
Golfe Olímpico Rio 2016 na APA [Área de Proteção Ambiental] de
Marapendi. Pessoas se manifestaram em frente às obras do Campo de Golfe
Olímpico desde no final 2014, sendo constantemente hostilizadas por
agentes do Estado e de empreiteiras. A Guarda Municipal diariamente
“apreendia” pertences de quem ali ainda resistisse.
Após
claras ameaças serem feitas contra a integridade física de ativistas
durante o réveillon daquele ano, elas finalmente se materializaram nos
últimos dias com pessoas sendo presas e feridas.
O Greenpeace e o Partido Verde (PV) são
instituições consagradas no meio ecológico, conhecidas por sua atuação
ativista. Além disso contam com recursos financeiros, capital humano e
poder político. Mas por que se calaram em relação ao Campo de Golfe e à
perseguição de ativistas?
Nos anos 90, o PV e o Greenpeace foram
muito relevantes. E, na Europa, chegaram ao poder. Suas bandeiras
hasteiam liberdades individuais: humanistas, ecológicas, legalização da
maconha, respeito à diversidade sexual, Estado laico. Fora do ranço
fanático pós-URSS, estávamos na Era de Ouro do neoliberalismo econômico.
No quesito marketing viral (“artivismo”,
ação direta e todas essas modernices), ao pôr mulheres peladas
invadindo campos de futebol e carregando cartazes “salvem os pandas”, o
Greenpeace foi pioneiro; ou ao desafiar a morte confrontando enormes
embarcações de baleeiros com pequenos barquinhos – ação esteticamente
forte. Porém, em alinhamento com o poder econômico, esse ativismo
profissional feito por publicitários, apesar do apelo ecológico e
humanista, acabou se tornando pura e simples máquina de propaganda. Foi
abraçado por todo o seguimento liberal da indústria, especialmente
financistas bilionários e filantropos.
O PV sempre foi o braço institucional do
Greenpeace – ecologicamente. Assim como o Partido Pirata está para o
Anonymous e a liberdade de expressão. No Brasil, o Greenpeace está ativo
nos grandes centros, fazendo seu ativismo profissional, angariando
fundos para financiar seu marketing, atuando sobre questões globais, ou
melhor, problemas bem distantes de onde vivem os principais doadores,
pessoas normalmente simpáticas ao tema, mas que não vão a fundo no que
de fato fazem com seu dinheiro – ou de seus impostos.
Índios na Amazônia, Apocalipse do
Aquecimento Global e Créditos de Carbono. Em todos lugares, Verdes
passaram a dar consultoria para empresas transnacionais, a ter cargos em
grandes prefeituras (como a de São Paulo) e a fazer alianças com
políticos tradicionalmente conservadores. Pintando todos de verde.
Pois verde é aquilo que se pinta de verde
Os gigantes da indústria química fazem
sua publicidade na cor verde e as madeireiras, os latifundiários e os
bancos lavam sua imagem, repetindo a palavra ecologia em cada página de
seus informes e tingindo de verde seus empréstimos. (Sempre em constante
atualização, o marketing verde: hashtag Rede Sustentabilidade.)
Empresas que lançam veneno no ar e
poluem as águas sacaram, subitamente, da recém-comprada máscara verde e
gritaram sua verdade em termos que poderiam ser resumidos assim: “os
defensores da natureza são advogados da pobreza, dedicados a sabotarem o
desenvolvimento econômico e a espantarem o investimento estrangeiro.”
(Eduardo Galeano)
O prefeito Eduardo Paes (Dudu, sem você nada disso seria possível!) foi filiado ao Partido Verde e é chairmain
de um grupo transnacional de “direitos urbanos ambientalistas”; ou
seja, é verde também. Na última década, as máscaras verdes foram caindo
na Europa e gradativamente suas bandeiras propagandísticas sendo
absorvidas pelo Sistema.
Enquanto os verdes perdem sua
relevância, surgem distintos movimentos nos últimos anos que ocupam essa
lacuna dos anos 90: Piratas, o Partido X, o Podemos, entre outros.
Independentemente da simpatia e humor de financistas da Fundação Ford,
Soros e filantropos bilionários, nem todos cruzam os braços. Grupos
autônomos de ativismo pipocam todos os dias, aqui e no mundo. E, na era
do Big Brother, do WikiLeaks (e do GlobalLeakes) muitos querem ver os
vexames (e verdades) dos políticos.
Recentemente, Nadia Tolokonnikova, líder
do grupo punk Pussy Riot, esteve em correspondência com o filósofo
Slavoj Žižek, de dentro do cárcere. Ela havia sido presa por
“vandalismo” ao fazer um protesto performático contra o governo de
Vladimir Putin, na Rússia. Em trecho da carta de Žižek, explicitam-se os
motivos pelos quais uma máquina capitalista como o Greenpeace não ousa
apoiar iniciativas autônomas como a do Ocupa Golfe:
“Todos estavam torcendo por vocês
enquanto vocês eram tidas como mais uma versão de protesto
democrático-liberal contra o Estado autoritário. No momento em que ficou
claro que vocês rejeitavam o capitalismo global, a relação com o Pussy
Riot ficou muito mais ambígua. O que é mais perturbador para o olhar
liberal é que vocês deixam visível a continuidade escondida entre
stalinismo e o capitalismo global contemporâneo.”
E Nadia respondeu:
“Nós somos parte desse movimento que não possui respostas finais ou verdades absolutas, nossa missão é questionar. Há os arquitetos da estética apolínea e há as cantoras punk da dinâmica e da transformação. Um não é melhor que o outro. Mas apenas juntos podemos garantir as funções do mundo da forma como Heráclito definiu: ‘Este mundo tem sido, e eternamente será, vivido no ritmo do fogo, inflamado de acordo com as ações, e morrendo de acordo com as ações. Essa é a função da respiração eterna do mundo’”.
Nós somos os rebeldes pedindo pela
tempestade, e crendo que a verdade só pode ser encontrada numa busca sem
fim. Se o “Espírito do Mundo” o toca, não espere que seja sem dor.
Laurie Anderson cantou: “Apenas um
especialista pode lidar com o problema”. Seria bom se eu e Laurie
pudéssemos reduzir esses especialistas e resolver nossos próprios
problemas. Porque o status de expert não garante acesso garantido ao
reino da verdade absoluta.
No momento certo, sempre acontecerá um
milagre nas vidas daqueles que infantilmente acreditam no triunfo da
verdade sobre a mentira, da assistência mútua, daqueles que vivem de
acordo com as economias da dádiva.
Adaptado de:
Notas:
[1] John J. McCloy,
presidente da Fundação Ford entre 1958 e 1965, empregou intencionalmente
vários agentes e, baseado na premissa de que uma relação com a CIA era
inevitável, criou uma comissão de três pessoas responsável por lidar com
essas instâncias. Saunders, Frances Stonor (1º April 2001). Quem Pagou a
Conta? A CIA na Guerra Cultural. ISBN 978-1565846647
INÍCIO
Nenhum comentário:
Postar um comentário