DALMO DALLARI REFUTA A SENTENÇA DA JUÍZA QUE SUJAMENTE TENTA EXPULSAR BATTISTI DO BRASIL
Ao Ilmo.Sr.
DR. IGOR SANT’ANNA TAMASAUSKAS
Paris,
14 de março de 2015.
Prezado e eminente colega :
Atendendo à sua
solicitação, envio-lhe minha Opinião Jurídica a respeito da Ação Civil proposta
pelo Ministério Público Federal perante a 21a. Vara da Justiça Federal da
1a Região, pretendendo a anulação de decisões do Supremo Tribunal Federal,
do Presidente da República e do Conselho Nacional de Imigração, proferidas em
processos de interesse de Cesare Battisti. Com objetividade e dispensando a
abordagem teórica das questões envolvidas na referida ação, procurarei
ressaltar os aspectos jurídicos que me parecem de maior relevância, tendo em
conta as disposições constitucionais e legais que disciplinam aspectos básicos
da pretensão do Ministério Público e da decisão proferida pela MMa. Juíza
titular da 21a . Vara da Justiça Federal da 1a. Região. A par da
consideração de aspectos especîficos da ação, trarei à colação os precedentes,
inclusive alguns aspectos particulares de extrema relevância, dos quais tive
conhecimento seguro e pormenorizado há vários anos, quando solicitado a
manifestar minha Opinião Jurídica sobre a reação indignada de algumas
personalidades da Justiça italiana, de evidente orientação política,
inconformadas com o tratamento rigorosamente jurídico que estava sendo dado
pelo Judiciário e por altas autoridades do Brasil, ao italiano Cesare Battisti,
outorgando-lhe a possibilidade de viver em liberdade no território brasileiro,
aqui desenvolvendo atividades profissionais absolutamente regulares, de
proferir palestras e de publicar livros, no exercício de seus direitos
fundamentais garantidos pela Constituição brasileira. Para maior clareza e
objetividade, farei em seguida o destaque de pontos específicos de minha
Opinião Jurídica.
1. Absoluta inexistência de fatos novos,
posteriores às decisões, há muito definitivas e não passíveis de recurso ou
reexame, do egrégio Supremo Tribunal Federal, do Exmo. Sr. Presidente da
República e do preclaro Conselho Nacional de Imigração, relativas à permanência
no Brasil, em liberdade, de Cesare Battisti. Não há, no pedido do Ministério
Público e na decisão da ilustre Magistrada, qualquer referência a fatos novos,
que poderiam, eventualmente, justificar o reexame da situação jurídica de
Battisti no Brasil.
A leitura do pedido formulado pelo Ministério Público
e da decisão proferida pela MMa. Juíza revela que não foi tomado por base e nem
mesmo foi referido qualquer fato que pudesse afetar a situação jurídica de
Cesare Battisti no Brasil, em decorrência das decisões proferidas pelo Supremo
Tribunal Federal, pelo Presidente da República e pelo Conselho Nacional de
Imigração. Todos os fatos e todas as situações que poderiam afetar essas
decisões e que são mencionados no pedido do Ministério Público e na decisão da
ilustre Magistrada foram minuciosamente analisados pelo Supremo Tribunal
Federal, assim como pelo Presidente da República e pelos órgãos do Executivo
que proferiram decisões no caso Battisti.
Basta esse aspecto para que se configurem como
juridicamente falhos e inconsistentes o pedido e a decisão que o acolheu. Com
efeito, basta lembrar aqui uma norma fundamental expressa, consignada com
grande ênfase no artigo 5°, inciso XXXVI, da Constituição Fedeeral :
« a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a
coisa julgada ». Ora, se nem mesmo a lei poderá produzir esse prejuízo,
evidentemente não pode existir, e não existe, lei que autorize o Poder
Judiciário, o Ministério Público a produzi-los.
Quando o caso Cesare Battisti chegou ao Supremo
Tribunal Federal, em decorrência de pedido de extradição formulado pelo governo
italiano, todas as circunstâncias da
trajetória de Cesare Battisti, inclusive as acusações da prática de homicidios,
as peculiaridades do julgamento por um Tribunal Italiano que nomeou um defensor
dativo que não fez qualquer defesa, e a condenação final à pena de prisão
perpétua, que é expressamente probida pela Constituição brasileira, por disposição
do artigo 5°, inciso XLVII, letra « b », tudo isso foi considerado. Por
ocasião do julgamento, o egrégio Supremo Tribunal Federal analisou também as
circunstâncias da prisão de Battisti na
Itália, sua fuga para a França, onde também acabou sendo preso a pedido do
governo italiano. E, afinal, sua fuga da França e suas peripécias para
ingressar no Brasil, apesar de estar sendo perseguido por agentes policiais
ligados ao governo italiano e de, em tais circunstâncias, não ter condições de
atender a todas as minúcias burocráticas para entrar no Brasil por via normal.
Todos esses fatos foram considerados com bastante
atenção pelos eminentes Ministros do Supremo Tribunal Federal que participaram
do julgamento do pedido de extradição. Ao final, a egrégia Corte Suprema
proferiu julgamento, concluindo que, em tese, caberia a extradição, mas que,
por disposição constitucional, a decisão final sobre a entrega de Cesare
Battisti ao governo italiano era da competência do Presidente da República, a
quem foi, então, dirigido o caso, para que procedesse ao seu exame, tendo em
conta os elementos concretos e específicos, deidindo, afinal, pelo atendimento
ou pela negativa do pedido de extradição. Antes de proferir sua decisão, o
Chefe do Executivo, obviamente, analisou com extrema atenção todas as
circunstâncias da trajetória de Battisti, inclusive as acusações da prática de
homicídio que foram usadas como fundamento para sua condenação. E pelo conjunto
das informações obtidas e analisadas pelo colendo Supremo Tribunal Federal e,
depois, pelo eminente Senhor Presidente da República, alguns pontos
fundamentais foram esclarecidos e ressaltados, deixando evidente que o
julgamento pelo Tribunal italiano não havia passado de uma farsa, promovida por
autoridades ligadas ao fascismo. Com efeito, a única base para sustentar a
acusação da prática de homicídios foi o depoimento de um
« arrependido », o que corresponde na Itália a uma delação premiada.
E entre as acusações do delator havia a afirmação de que Cesare Battisti havia participado
de dois homicídios que tinham sido praticados no mesmo dia, 16 de Fevereiro de
1979, um na cidade de Milão e outro em Mestre, localidade próxima de Veneza,
havendo um intervalo de cerca de uma hora entre a prática de cada um desses
homicídios. A distância dos locais e os horários das práticas daqueles crimes
acabaram deixando evidente a falsidade da acusação, pois a distância entre
Milão e Mestre é de mais de quinhentos quilômetros, não havendo a mínima
possibilidade de que Cesare Battisti praticasse um homicídio em Milão e daí a
pouco, em menos de uma hora, estivesse em Mestre, mais de quinhentos
quilômetros distante, praticando outro homicídio. Evidentemente, a denúncia do
« arrependido » e o julgamento pela Corte italiana não tinham
qualquer consistência jurídica e eram desmascarados pelos fatos, ficando
comprovado que não havia e não haveria qualquer respeito aos preceitos legais e
aos direitos dos acusados. E a condenação daquela farsa de julgamento foi o
único fundamento invocado pelo Ministério Público e acolhido na decisão da
Meritíssima Juiza.
A análise cuidadosa de todos os elementos aqui
referidos levou o Presidente da República a proferir decisão negando a
extradição de Cesare Battisti, o que, obviamente, implicava a concessão de seu
direito de continuar vivendo em liberdade no Brasil, onde não havia contra ele
qualquer acusação da prática de ilegalidade. Um fato expressivo, que merece ser
lembrado, é que houve reação absurdamente violenta de autoridades italianas,
contariadas pela decisão brasileira, tendo sido registrados pela imprensa
pronunciamentos extremamente grosseiros de Ministros do governo italiano,
menosprezando o Brasil, ofendendo o povo brasileiro e negando, com grande
ênfase, qualquer valor aos juristas brasileiros, inclusive magistrados. Eis o
que foi dito pelos Ministros italianos e publicado pela imprensa da Itália:
« O Brasil só é conhecido no mundo por ser uma república bananeira e por
suas dançarinas e não por suas produções e atividades jurídicas ».
Depois de tomada a decisão presidencial, negando a
extradição e concedendo a Cesare Battisti o direito de permanecer em liberdade
no território brasileiro, passou-se a cuidar da regularização formal de sua
permanência, pelos meios legalmente previstos. Esse ponto foi resolvido e
regularizado por meio extritamente legal, pelo órgão federal competente, o
Conselho Nacional de Imigração, que, obviamente, verificou e analisou todas as
circunstâncias da entrada de Battisti no Brasil sem cumprimento das
formalidades legais, assim como as atividades que ele vinha exercendo em nosso
País. A conclusão, formal e absolutamente legal, do Conselho, foi que, pelo
conjunto de todos os elementos que deveriam ser considerados e pelas regras
jurídicas que regulamentam as mais diversas hipóteses de ingresso no País,
considerando, inclusive, situações excepcionais que devem ser reconhecidas e
acolhidas, deveria ser concedido a Cesare Battisti o visto de permanência, o
que foi formalizado por decisão de 22 de Agosto de 2011. É importante observar
que na própria legislação existe a distinção entre o visto de entrada, para
quem ainda não está no território brasileiro, e a regularização da permanência,
para quem já se encontra no território brasileiro mas depende de formalizar
essa situação, obtendo o documento de reconhecimento da regularidade.
A Resolução Normativa n° 27/ 1998, do Conselho Nacional
de Imigração, estabelece, no artigo 1°, que « serão submetidas ao Conselho
Nacional de Imigração as situações especiais e os casos omissos, a partir de
análise individual ». A esse dispositivo foi acrescido um parágrafo 1°,
esclarecendo que « serão consideradas como situações especiais aquelas
que, embora não estejam expressamente definidas nas Resoluções do Conselho
Nacional de Imigração, possuam elementos que permitam considerá-las
satisfatórias para a obtenção do visto ou permanência. Foi precisamente essa
via legal que levou à concessão da formalização da permanência de Cesare
Battisti no Brasil, em liberdade e tendo garantidos os seus direitos, como previsto
na Constituição. Não há, portanto, situação ilegal que dê fundamento à
pretensão absolutamente injustificada de expulsá-lo do território brasileiro.
Aliás, é ainda oportuno lembrar que esse
procedimento especial previsto na Resolução Normativa n° 27/ 1998 foi
resultante, em grande parte, da ocorrência de muitos casos de pessoas que,
perseguidas por motivação política em Países vizinhos do Brasil, conseguiram,
pelos mais diversos meios, ultrapassar a linha de fronteira e ingressar no
território brasileiro, onde buscaram condições de sobrevivência, com seus
direitos fundamentais protegidos.
2. A Ação Civil proposta
pelo Ministério Público Federal, pedindo a deportação de Cesare Battisti, e a
decisão proferida pela mma. Juíza acolhendo o pedido, são juridicamente absurdas,
pois, disfarçadamente, falando em « deportação » para dar a impressão
de que não se trata de reiteração do pedido de extradição, ofendem preceitos
jurídicos fundamentais, consagrados na Constituição brasileira.
Com efeito, diz a Constituição,
expressa e claramente, no artigo 5°, inciso XXXVI, que « a lei não
prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa
julgada ». Ora, se a lei não pode causar esses prejuízos é mais do que
óbvio que ela não pode dar, e efetivamente não dá, competências ao Ministério
Público e a instâncias do Poder Judiciário para que causem tais prejuízos. E é
isso que se pretende através da Ação Civil aqui referida, que, aliás, não tem
qualquer cabimento em casos como o que dá embasamento ao pedido e à consequente
decisão. É importante ressaltar que a decisão da Meritissima Juíza pretende
anular ou reformar a decisão proferida pelo egrégio Supremo Tribunal Federal no
caso Cesare Battisti, em 18 de Novembro de 2009. O que se tem aí é uma decisão
da mais alta Corte de Justiça do Brasil, decisão transitada em julgada. Aliás,
em vista desse absurdo cabe a propositura de Reclamação junto ao egrégio
Supremo Tribunal Federal, como previsto no artigo 102, inciso I, letra
« l », segundo o qual « Cabe ao Supremo Tribunal Federal
processar e julgar, originariamente, a reclamação para a preservação de sua
competência e a garantia da autoridade de suas decisões ».
A par disso, as decisões
do eminente Senhor Presidente da República, de 31 de Dezembro de 2010, negando
a extradição de Cesare Battisti e outorgando-lhe o direito de continuar vivendo
em liberdade no Brasil, constitui ato jurídico perfeito, o mesmo podendo dizer
quanto à decisão do preclaro Conselho Nacional de Imigração, concedendo a
Cesare Battisti o visto de permanência. Assim, pois, também sob esses aspectos
a Ação Civil Pública, aqui mencionada, é descabida, afrontando preceitos
jurídico-constitucionais. Ocorre, ainda, que a Ação Civil Pública, que foi o
caminho jurídico adotado pelo Ministério Público neste caso, não contém
qualquer dispositivo que permita utilizá-la para o fim de obter a extradição, expulsão ou
deportação de uma pessoa. Assim, a Ação Civil Pública por meio da qual se
pretende a expulsão de Cesare Battisti do Brasil é absolutamente infundada e
nunca poderia ter sido acolhida como procedimento regular.
3. Em conclusão, tanto o
pedido do Ministério Público quanto a decisão que o acolheu afrontam a ordem
jurídica brasileira, não tendo fundamento legal e pretendendo atingir objetivos
contrários a disposições expressas da Constituição. Assim, pois, cabem recurso
e reclamação para que seja preservada a Ordem Jurídico-Constitucional
brasileira. Essa é a minha Opinião Jurídica quanto aos aspectos jurídicos do
caso Cesare Battisti, considerados os antecedentes jurídicos e a pretensão, a
meu ver sem qualquer consistência jurídica, de reabrir o caso, anulando as
decisões das autoridades máximas dos Poderes Judiciário e Executivo brasileiros, para tentar atender à
intolerância e ao inconformismo das facções políticas extremadas que não têm
qualuer respeito pelos preceitos éticos e jurídicos que regulam a convivência
humana no âmbito internacional e na ordem constitucional dos Estados.
Essa
é a minha Opinião Jurídica quanto à Ação Civil Pública proposta pelo Ministério
Público perante a 1a. Vara da Justiça Federal da 1a. Região, pretendendo a
expulsão ou deportação, absolutamente injustificadas, de Cesare Battisti, cujo
direito de permanência em liberdade no território brasileiro decorre de
decisões conjugadas do Supremo Tribunal Federal, do Presidente da República e
do Conselho Nacional de Imigração, decisões rigorosamente legais e definitivas,
que, como tais, devem ser respeitadas e cumpridas.
Paris, 12 de Março de 2015
Dalmo de Abreu
Dallari
Advogado
e Professor Emérito da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo
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