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quinta-feira, 11 de março de 2010
Noam Chomsky: sobre Anarquismo, Marxismo e a esperança no futuro
Noam Chomsky é bastante conhecido pela sua crítica à política de negócios estrangeiros dos EUA, e pelo seu trabalho como linguista. Menos conhecido é o seu apoio aos objectivos socialistas libertários. Numa entrevista especial dada à "Red And Black Revolution", Chomsky dá os seus pontos de vista sobre anarquismo e marxismo, e as suas expectativas para o socialismo no tempo presente. A entrevista foi dirigida em Maio de 1995 por Kevin Doyle.
RBR: Noam, há já muito tempo que você tem sido um defensor da ideia anarquista. Muitas pessoas estão familiarizadas com a introdução que escreveu em 1970 ao "Anarquismo" de Daniel Guerin, mas, mais recentemente, por exemplo no filme "Manufacturing Consent", você aproveitou a oportunidade para chamar de novo a atenção para o potencial do anarquismo e da ideia anarquista. O que é que o atrai no anarquismo?
Chomsky: Fui atraído pelo anarquismo desde a adolescência, logo que comecei a pensar sobre o mundo para além das coisas pequeninas, e desde então não tive muitas razões para corrigir essas atitudes iniciais. Penso que só faz sentido investigar e identificar estruturas de autoridade, hierarquia e domínio, em todos os aspectos da vida, para depois as desafiar; a menos que nos seja dada uma justificação, elas são ilegítimas e deveriam ser desmanteladas, para aumentar a extensão da liberdade humana. Isto inclui o poder político, a propriedade e a administração, as relações entre homens e mulheres, pais e filhos, o nosso controlo sobre o destino das gerações futuras (o imperativo moral básico por trás do movimento para o meio ambiente, segundo penso), e muito mais. Naturalmente isto significa um desafio às enormes instituições de coerção e controlo: o estado, as inúmeras tiranias privadas que dominam a maior parte da economia nacional e internacional, etc.. E não apenas isto. Foi isso que sempre percebi como sendo a essência do anarquismo: a convicção de que o ónus da prova deve ser colocado à autoridade, e que ela deve ser desmantelada se não conseguir dar essa prova. Por vezes essa prova existe. Se eu for dar um passeio com os meus netos e eles se precipitarem para uma rua movimentada, eu usarei não só autoridade mas também a coerção física para os impedir. É um exemplo típico. E existem outros casos; a vida é uma coisa complexa, entendemos muito pouco sobre o ser humano e a sociedade, e grandes declarações são frequentemente uma maior fonte de sofrimento do que de benefícios. Mas a perspectiva é válida, penso, e pode levar-nos longe.
Para lá destas generalizações, nós começamos a olhar para os casos, e isto leva ao aparecimento das questões humanas do interesse e preocupação.
RBR: É uma verdade quando se diz que as suas ideias e crítica estão hoje mais divulgadas do que nunca. Também se diz que os seus pontos de vista são bastante respeitados. Como pensa que o seu apoio ao anarquismo é recebido neste contexto? Em particular, estou interessado na reacção que você recebe das pessoas que se estão a interessar pela política e que podem, talvez, cruzar-se com os seus pontos de vista. Essas pessoas ficam surpreendidas pelo seu apoio ao anarquismo? Ficam interessadas?
Chomsky: A generalidade da cultura intelectual, como sabe, associa "anarquismo" com caos, violência, bombas, descrédito, etc.. Por isso as pessoas ficam frequentemente surpreendidas quando falo positivamente acerca do anarquismo e identifico-me com as suas tradições mais importantes. Mas a minha impressão é que entre o público em geral, as ideias básicas parecem razoáveis quando as nuvens se afastam. Claro que, quando nos voltamos para matérias específicas -- digamos, a natureza das famílias, ou como uma economia funcionaria numa sociedade mais livre e justa -- as questões e a controvérsia surgem. Mas é natural que seja assim. A Física não consegue explicar determinados fenómenos, e qundo nos voltamos para as questões bem mais complexas de importância humana, a compreensão é muito ténue, há muito espaço para a discordância, experimentação, exploração de possibilidades tanto intelectual como na vida real, que nos ajudam a conhecer mais.
RBR: Talvez, mais do que qualquer outra ideia, o anarquismo sofreu de um problema de deturpação na apresentação. O anarquismo pode significar muitas coisas para muitas pessoas. Acontece-lhe frequentemente dar por si a ter de explicar o que significa anarquismo no seu entendimento? A deturpação na apresentação do anarquismo incomoda-o?
Chomsky: Toda a deturpação é um incómodo. Muita dela é originária das estruturas do poder que têm interesse em impedir a sua compreensão, por razões óbvias. Será bom recordar os "Principles of Government" de David Hume. Ele expressou surpresa pelas pessoas se submeterem sempre aos seus governadores. Ele concluiu então que "a força está sempre do lado dos governados, os governadores nada mais têm a suportá-los além da opinião. É só nisto, em minha opinião, que o governo está estabelecido; e este princípio aplica-se aos governos mais despóticos e militaristas, e igualmente aos mais livres e mais populares." Hume era muito astuto -- mas dificilmente se poderia considerar um libertário pelos padrões actuais. Ele subestimou certamente a eficácia da força, mas a sua observação está correcta na sua essência, e válida particularmente para as sociedades mais livres, onde a arte de controlar a opinião está por isso muito mais refinada. A deturpação e outras formas de confusão são naturalmente existentes.
Se a deturpação me incomoda? Claro, mas o mau tempo também me incomoda. Ela vai existir desde que as concentrações de poder engendrem uma espécie de comissários de classe para as defender. Como eles não são muito inteligentes, ou suficientemente inteligentes para saberem que era preferível evitar a arena do facto e argumento, eles voltam-se para a deturpação, a calúnia, e outros expedientes que estão disponíveis àqueles que sabem que terão a protecção dos vários meios à disposição dos poderosos. Nós devemos compreender porque acontece isto, e desmascará-lo o melhor que pudermos. Isso é parte do projecto de libertação -- nossa e dos outros, ou, mais razoavelmente, das pessoas que trabalham em conjunto para atingir estes objectivos.
Pode parecer simples, e é. Mas ainda estou para encontrar muitos comentários à vida humana e à sociedade que não sejam simples, quando o absurdo e interesse pessoal são afastados.
RBR: E o que se passa em círculos mais estabelecidos de esquerda, onde é de esperar uma maior familiaridade com aquilo que o anarquismo defende? Encontra alguma surpresa aí, pelas suas posições e apoio ao anarquismo?
Chomsky: Se com "círculos mais estabelecidos de esquerda" quer dizer aquilo que eu penso, não existe muita surpresa pelos meus pontos de vista sobre o anarquismo, porque muito pouco é conhecido pelos meus pontos de vista sobre qualquer coisa. Eu não tenho contactos com esses círculos. Raramente encontrará uma referência a algo que eu tenha dito ou escrito. Isto não é completamente verdade, claro. Por conseguinte nos EUA (e menos frequentemente no Reino Unido ou noutros países), encontrará alguma familiaridade com aquilo que faço em alguns dos sectores mais críticos e independentes daquilo que pode ser chamado como os "círculos mais estabelecidos de esquerda," e tenho amigos pessoais e associados espalhados por aqui e ali. Mas, dê uma vista de olhos pelos livros e pelos jornais e verá o que eu quero dizer. Não espero que aquilo que escrevo e digo seja melhor acolhido nesses círculos que no clube da faculdade, ou na redacção do jornal -- uma vez mais, com excepções.
A questão levanta-se apenas marginalmente, há tanto para dizer que é difícil de responder.
RBR: Algumas pessoas repararam que você usa o termo "socialista libertário" no mesmo contexto que usa a palavra "anarquismo". Vê esses termos como essencialmente similares? O anarquismo é para si um tipo de socialismo? A descrição já foi usada anteriormente "anarquismo é equivalente ao socialismo com liberdade". Concorda com esta equação básica?
Chomsky: A introdução ao livro de Guerin que você mencionou começa com uma citação de um simpatizante anarquista de há um século atrás, e diz que "o anarquismo tem costas largas," e "aguenta tudo." Um dos elementos principais tem sido o que é tradicionalmente designado como "socialismo libertário". Tenho tentado explicar aqui e noutros lugares o que quero dizer com isso, sublinhando que não é propriamente um conceito original. Eu pego em ideias das principais figuras do movimento anarquista, os quais eu cito e que, de forma bastante consistente, se descrevem a si próprios como socialistas, ao mesmo tempo que condenam severamente a "nova classe" de intelectuais radicais que tentam obter poder estatal no decurso da luta popular e se tornam na perversa "Burocracia Vermelha" de que Bakunine advertia; o que é frequentemente designado de "socialismo". Eu concordo mais com Rudolf Rocker na percepção de que estas tendências (bastante centrais) do anarquismo derivam antes do melhor do Iluminismo e do pensamento liberal clássico, bem para lá do que ele descreveu. De facto, à medida que eu tenho tentado mostrar o seu contraste nítido com a doutrina e a prática Marxista-Leninista, as doutrinas "libertárias" que estão particularmente em voga nos EUA e no Reino Unido, e outras ideologias contemporâneas, elas perecem-me reduzir-se a advogar uma ou outra forma de autoridade ilegítima, bastante frequentemente uma verdadeira tirania.
A Revolução Espanhola
RBR: No passado, quando tem falado sobre anarquismo, você tem enfatizado frequentemente o exemplo da Revolução Espanhola. Para si aí teriam existido os dois aspectos deste exemplo. Por um lado, a experiência da Revolução Espanhola é, como diz, um bom exemplo do "anarquismo em acção". Por outro, você também sublinhou que a Revolução Espanhola é um bom exemplo do que os trabalhadores podem alcançar pelo seu próprio esforço usando a democracia participativa. Estes dois aspectos -- anarquismo em acção e democracia participativa -- são uma e a mesma coisa para si? O anarquismo é uma filosofia para o poder do povo?
Chomsky: Sinto-me relutante em usar polissílabos extravagantes como "filosofia" para referir o que parece ser simples senso comum. E também me sinto desconfortável com slogans. As conquistas dos trabalhadores e camponeses espanhóis, antes da revolução ser esmagada, foram impressionantes sob muitos aspectos. O termo "democracia participativa" é mais recente, e desenvolveu-se num contexto diferente, mas há seguramente pontos de semelhança. Peço desculpa se isto parece evasivo. É, mas isso é porque eu não penso que tanto o conceito de anarquismo ou o de democracia participativa sejam suficientemente claros para responder à questão de eles serem ou não o mesmo.
RBR: Uma das principais conquistas da Revolução Espanhola foi a forma como a democracia se estableceu. Em termos de pessoas, estimou-se que mais de 3 milhões estiveram envolvidas. A produção rural e urbana foi gerida pelos próprios trabalhadores. Acha uma coincidência que os anarquistas, conhecidos por advogarem a liberdade individual, tenham tido sucesso nesta área de administração colectiva?
Chomsky: Não foi nenhuma coincidência. As tendências que sempre me atraíram mais no anarquismo procuram uma sociedade altamente organizada, integrando muitos tipos de diferentes estruturas (local de trabalho, comunidade, e outras variadas formas de associação voluntária), mas controladas pelos participantes, não por aqueles que estão numa posição de dar ordens (excepto, uma vez mais, quando a autoridade possa ser justificada, como é por vezes o caso, em contingências específicas).
Democracia
RBR: Os anarquistas despendem muitas vezes um grande esforço na construção das raízes da democracia. De facto são frequentemente acusados de "levar a democracia a extremos". E no entanto, apesar disto, muitos anarquistas não identificariam prontamente a democracia como um componente central da filosofia anarquista. Os anarquistas descrevem amiúde a sua política como sendo sobre "socialismo" ou sobre "o indivíduo" -- dificilmente dirão que anarquismo é sobre democracia. Você concorda que as ideias democráticas são uma característica central do anarquismo?
Chomsky: A crítica à "democracia" entre os anarquistas tem sido frequentemente a crítica à democracia parlamentar, porque ela surgiu em sociedades com características profundamente repressivas. Tomemos os EUA por exemplo, que foram livres desde as suas origens. A democracia americana foi fundada no princípio, sublinhado por James Madison na Convenção Constitucional de 1787, de que a primeira função do governo é "proteger a minoria opulenta da maioria." Deste modo ele argumentava que na Inglaterra, o único modelo quase-democrático da época, se fosse dada palavra à população em geral, nos destinos públicos, ela implementaria uma reforma agrária ou outras atrocidades, e que o sistema americano devia ser cuidadosamente concebido para evitar tais crimes contra "os direitos da propriedade," os quais devem ser defendidos (de facto, devem prevalecer). A democracia parlamentar dentro deste quadro merece uma crítica aguda pelos libertários genuínos, e deixei de fora muitas outras características que dificilmente se consideram subtis -- a escravatura, para mencionar apenas uma, ou as escravatura do salário que foi amargamente condenada por gente trabalhadora que nunca ouviu falar de anarquismo ou comunismo durante o século XIX, e para além deste.
Leninismo
RBR: A importância das raízes da democracia para qualquer mudança significativa na sociedade, pareceriam evidentes. No entanto a esquerda tem sido ambígua sobre isto no passado. Falo em termos gerais, da social-democracia, mas também do bolchevismo -- tradições na esquerda que parecem ter mais em comum com o pensamento elitista do que com a estrita prática democrática. Lenine, para usar um exemplo bem conhecido, era céptico quanto aos trabalhadores poderem desenvolver algo mais do que uma "consciência sindicalista" -- pela qual, penso, ele queria dizer que os trabalhadores não conseguiam ver além da sua situação imediata. Similarmente, a socialista fabiana Beatrice Webb, que era muito influente no Partido Trabalhista britânico, achava que os trabalhadores apenas se interessavam por "apostas de cavalos"! Onde se originou este elitismo e o que é que ele faz à esquerda?
Chomsky: Receio ter dificuldade em responder a isso. Se por esquerda é suposto incluir o "bolchevismo", então eu dissocio-me terminantemente da esquerda. Lenine foi um dos maiores inimigos do socialismo, na minha opinião, pelas razões que temos discutido. A ideia de que os trabalhadores apenas se interessam por corridas de cavalos é um absurdo que não resiste mesmo a um olhar superficial pela história trabalhista ou pela imprensa operária, activa e independente, que floresceu em muitos lugares, incluindo as cidades industriais da Nova Inglaterra, não muito longe de onde estou a escrever -- para nem falar nos registos inspiradores das lutas corajosas de pessoas oprimidas e perseguidas através da História, até este preciso momento. Tome por exemplo o canto mais miserável deste hemisfério, o Haiti, olhado pelos conquistadores europeus como um paraíso e fonte de uma parte considerável da riqueza europeia, agora devastado, talvez para além da recuperabilidade. Nos últimos anos, em condições tão miseráveis que poucas pessoas em países ricos as conseguem imaginar, camponeses e habitantes dos bairros de lata construiram um movimento popular democrático baseado em organizações de raíz que ultrapassam quase tudo o que conheço noutros lugares; só comissários profundamente empenhados poderiam aguentar o riso do ridículo quando ouvem as solenes declarações dos intelectuais e dos líderes políticos americanos, sobre como os EUA têm de ensinar aos haitianos as lições de democracia. As suas realizações foram tão substanciais e assustadoras para os poderosos, que eles tiveram de ser sujeitos a mais uma dose de terror traiçoeiro, com um maior apoio americano do que aquele que é publicamente reconhecido, e mesmo assim ainda não se renderam. Estarão eles apenas interessados em corridas de cavalos?
Eu sugeriria algumas linhas que por vezes cito de Rosseau: "quando vejo multidões de selvagens inteiramente despidos desprezar a voluptuosidade europeia e sofrer a fome, o fogo, a espada e a morte para preservar apenas a sua independência, sinto que não compete aos escravos debater sobre liberdade."
RBR: Falando novamente de um modo geral, o seu próprio trabalho -- Desencorajando a Democracia, Ilusões Necessárias, etc., -- tem lidado consistentemente com o papel e a prevalência de ideias elitistas em sociedades como a nossa. Você tem argumentado que no interior da democracia "ocidental" (ou parlamentar) existe um profundo antagonismo a qualquer desempenho real ou contribuição das massas populares, mal exista uma ameaça à distribuição desigual da riqueza, que favorece os ricos. O seu trabalho é bastante convincente neste ponto, mas, além disso, alguns têm ficado chocados pelas suas asserções. Por exemplo, você compara a política do presidente John F. Kennedy com Lenine, pondo-os mais ou menos lado a lado. Isto, devo acrescentar, chocou apoiantes de ambos os campos! Pode pormenorizar um pouco sobre a validade desta comparação?
Chomsky: Eu de facto não "comparei" as doutrinas dos intelectuais liberais da administração de Kennedy com os leninistas, mas notei surpreendentes pontos de similaridade -- tal como previsto por Bakunine um século antes no seu comentário discernente sobre a "nova classe." Por exemplo, citei passagens de McNamara sobre a necessidade de aperfeiçoar o controlo administrativo se formos verdadeiramente "livres," e sobre como a "subadministração" que é "a verdadeira ameaça à democracia" é um assalto contra a própria razão. Altere algumas poucas palavras nestas passagens, e temos a típica doutrina leninista. Eu argumentei que as raízes são bem mais profundas, em ambos os casos. Sem uma melhor clarificação acerca do que as pessoas consideram "chocante", não posso fazer mais comentários. As comparações são específicas, e penso que ambas são apropriadas e devidamente qualificadas. Caso contrário é um erro, e eu estaria interessado em ser elucidado sobre ele.
Marxismo
RBR: Especificamente, leninismo refere-se a uma forma de marxismo que se desenvolveu com V.I. Lenine. Você está a distinguir implicitamente os trabalhos de Marx da crítica que faz a Lenine quando usa o termo "leninismo"? Vê uma continuidade entre os pontos de vista de Marx e as práticas posteriores de Lenine?
Chomsky: Os avisos de Bakunine sobre a "Burocracia Vermelha" que instituiria "o pior de todos os governos despóticos" foram feitos muito antes de Lenine, e eram dirigidos contra os seguidores do Sr. Marx. Existiam, de facto, seguidores de muitos tipos diferentes: Pannekoek, Luxembourg, Mattick e outros estão muito distantes de Lenine, e as suas posições convergem frequentemente com elementos do anarco-sindicalismo. Korsch e outros escreveram por simpatia da revolução em Espanha, de facto. Existem continuidades de Marx a Lenine, mas também existem continuidades até aos marxistas que eram severos críticos de Lenine e do bolchevismo. O trabalho de Teodor Shanin nos últimos anos sobre as atitudes tardias de Marx em relação à revolução camponesa também é relevante aqui. Eu não sou propriamente um estudioso de Marx, e não arriscaria nenhum julgamento sério sobre qual destas continuidades reflecte o "verdadeiro Marx", mesmo que exista uma resposta a essa questão.
RBR: Recentemente, obtivemos uma cópia das suas "Notas sobre Anarquismo" (reeditado o ano passado pelo Discussion Bulletin nos EUA). Nele você menciona os pontos de vista do "Marx inicial", em particular o seu desenvolvimento da ideia de alienação sob o capitalismo. Você concorda de um modo geral com esta divisão na vida e no trabalho de Marx -- um jovem e mais libertário socialista mas, nos últimos anos, um autoritário firme?
Chomsky: O Marx inicial aproxima-se consideravelmente do meio em que viveu, e encontram-se muitas semelhanças com o pensamento que animou o liberalismo clássico, aspectos do Iluminismo, e do Romantismo francês e germânico. Uma vez mais, não sou um grande estudioso de Marx para pretender dar um julgamento de opinião autorizada. A minha impressão, sem qualquer garantia, é que o Marx inicial era uma figura do Iluminismo tardio, e o Marx posterior era um activista altamente autoritário, e um analista crítico do capitalismo, que tinha pouco a dizer sobre alternativas socialistas. Mas isto são impressões.
RBR: Segundo o meu entendimento, o núcleo do seu pensamento global foi transmitido pelo seu conceito de natureza humana. No passado a ideia de natureza humana era vista, talvez, como algo regressivo, mesmo limitador. Por exemplo o imutável aspecto da natureza humana é muitas vezes usado como um argumento pelo qual as coisas não podem ser fundamentalmente mudadas na direcção do anarquismo. Você tem uma posição diferente? Porquê?
Chomsky: O núcleo do pensamento de quem quer que seja é um conceito de natureza humana, por muito distante que esteja da consciência ou lhe falte articulação. Pelo menos, isto é verdade para pessoas que se consideram agentes morais, e não monstros. Excluindo os monstros, quer uma pessoa advogue reforma ou revolução, ou estabilidade, ou o regresso a patamares anteriores, ou simplesmente a cultivar o seu próprio jardim, parte dos princípios do que é "bom para as pessoas." Mas esse julgamento é baseado em alguma concepção da natureza humana, que uma pessoa razoável tentará fazer com que seja tão claro quanto possível, porque só assim poderá ser avaliado. Por isso neste aspecto não sou diferente dos outros.
Você tem razão, a natureza humana tem sido olhada como algo "regressivo," mas isso deve ser o resultado de profunda confusão. A minha neta não é diferente de uma rocha, uma salamandra, uma galinha, de um macaco? Uma pessoa que rejeita este absurdo como tal, reconhece que existe uma natureza humana identificativa. Apenas somos deixados com a questão sobre o que ela é -- uma questão nada trivial e altamente fascinante, com um enorme interesse científico e significado humano. Conhecemos um bom bocado sobre certos aspectos dela -- não aqueles de maior ênfase humano. Para além disso, ficamos com as nossas esperanças e desejos, intuições e especulações.
Não há nada de "regressivo" no facto de um embrião humano estar tão limitado que não lhe cresçam asas, ou que o seu sistema visual não funcione como o dos insectos, ou que lhe falte o instinto de orientação dos pombos. Os mesmos factores que limitam o desenvolvimento do organismo, também lhe permitem obter uma estrutura rica, complexa e altamente articulada, similar nos modos fundamentais aos outros da sua espécie, com capacidades valiosas e notáveis. Um organismo ao qual faltasse esta estrutura intrínseca e determinante, que obviamente limita as vias de desenvolvimento, seria uma espécie de criatura amiboide, para ser lamentada (se conseguisse sobreviver). O alcance e os limites do desenvolvimento estão logicamente relacionados.
A linguagem, por exemplo, uma das poucas capacidades humanas distintivas sobre a qual se conhece muito. Temos fortes razões para acreditar que todas as linguagens humanas possíveis são muito semelhantes; um cientista marciano observando humanos poderia concluir que existe apenas uma única linguagem, com variantes menores. A razão para isto é que o aspecto particular da natureza humana que está por trás do desenvolvimento da linguagem permite opções muito restritas. Isto é limitativo? Claro que sim. Isto é libertador? Claro que sim, também. São estas mesmas restrições que tornam possível um sistema de expressão de pensamento intrincado e rico, pensado para se desenvolver em modos semelhantes com base em experiências muito variadas, rudimentares e difusas.
E quanto à questão das diferenças humanas biologicamente determinadas? Que elas existem é uma verdade, e são um motivo de alegria, e não de medo ou mágoa. Uma vida entre clones não teria qualquer valor, e uma pessoa sensata apenas se alegrará pelas capacidades que os outros possuem e não partilham. Isto devia ser elementar. O que se pensa normalmente sobre estes assuntos é deveras estranho, em minha opinião.
A natureza humana, qualquer que ela seja, conduzirá ao desenvolvimento de modos de vida anarquistas ou será uma barreira para eles? Não sabemos o suficiente para responder, num ou noutro sentido. Isto são matérias para experimentação e descoberta, não para declarações vazias.
O futuro
RBR: Estamos a chegar ao fim, e gostava de lhe pôr algumas questões breves sobre alguns dos temas que se colocam presentemente à esquerda. Não sei se a situação é parecida nos EUA mas aqui, com a queda da União Soviética, uma certa desmoralização instalou-se na esquerda. Não que as pessoas fossem grandes apoiantes do que existia na União Soviética, mas antes um sentimento geral que com o desmembramento da União Soviética a ideia de socialismo também foi arrastada na queda. Já se cruzou com este tipo de desmoralização? Qual a sua resposta perante ela?
Chomsky: A minha reacção ao fim da tirania soviética foi semelhante à minha reacção à derrota de Hitler e Mussolini. Em qualquer dos casos foi uma vitória do espírito humano. Devia ter sido particularmente festejada pelos socialistas, uma vez que um grande inimigo do socialismo tinha por fim caído. Tal como você, fiquei admirado ao ver como as pessoas -- incluindo gente que se tinha considerado anti-estalinista e anti-leninista -- estavam desmoralizadas pelo colapso da tirania. O que revela que elas estavam mais profundamente comprometidas com o leninismo do que acreditavam.
Existem, contudo, outras razões a considerar acerca da eliminação deste sistema brutal e tirânico que tinha tanto de "socialista" como de "democrático" (lembre-se que ele se reclamava de ambos, e a última pretensão era ridicularizada no Ocidente, enquanto a primeira era ansiosamente aceite, como uma arma contra o socialismo -- um dos muitos exemplos do serviço prestado pelos intelectuais do ocidente ao poder). Uma das razões tem a ver com a natureza da Guerra Fria. Do meu ponto de vista, devia-se de modo considerável ao caso especial do "conflito Norte-Sul," para usar um eufemismo que descreve a conquista europeia da maior parte do mundo. A Europa Oriental tinha sido o "terceiro mundo" original, e a Guerra Fria desde 1917 não tinha a mais ligeira semelhança com a reacção às tentativas de seguir um percurso independente por parte de outras partes do terceiro mundo, embora neste caso as diferenças de escala deram ao conflito uma vida própria. Por esta razão, era apenas razoável esperar que a região voltasse ao seu estatuto anterior: para partes do Ocidente, como a República Checa ou a Polónia Ocidental, existia a expectativa que se voltassem a juntar-lhe, enquanto outras reverteriam ao tradicional papel de serviço, com a ex-Nomenklatura a tornar-se na habitual elite terceiro-mundista (com a aprovação do poder corporativo-estatal do Ocidente, que normalmente os prefere às alternativas). Isto não era uma perspectiva agradável e levou a muito sofrimento.
Outro motivo de preocupação tem a ver com a intimidação e o não-alinhamento. Apesar de grotesco, o império soviético pela sua existência oferecia um certo espaço para o não-alinhamento e, por razões absolutamente cínicas, por vezes oferecia assistência às vítimas dos ataques ocidentais. Essas opções acabaram, e o Sul sofre agora as consequências.
Uma terceira razão tem a ver com aquilo a que a imprensa de economia denomina de "trabalhadores ocidentais mal-habituados" com o seu "estilo de vida luxuoso." Com a maior parte da Europa Oriental a voltar ao rebanho, o patronato e os gestores têm armas novas e poderosas contra as classes trabalhadoras e os pobres do seu próprio país. A GM e a VW podem não só transferir a sua produção para o México ou para o Brasil (ou pelo menos ameaçar fazê-lo, o que geralmente vai dar no mesmo), mas também para a Polónia e Hungria, onde podem encontrar trabalhadores experientes e qualificados por uma fracção do custo. E estão a regozijar-se com isso, compreensivelmente, dados os valores vigentes.
Podemos aprender muito sobre o que significou a Guerra Fria (ou qualquer outro conflito) ao procurar quem lucrou ou quem ficou prejudicado depois de ela acabar. Por esse critério, nos vencedores da Guerra Fria incluem-se as elites ocidentais e a ex-Nomenklatura, agora mais ricos do que alguma vez sonharam, e nos derrotados inclui-se uma parte substancial da população do Leste lado a lado com os trabalhadores e os pobres do Ocidente, bem como sectores populares do Sul que procuraram seguir um caminho independente.
Estas ideias tendem a levar os intelectuais ocidentais quase à histeria, isto quando eles as entendem, o que é raro. É fácil de demonstrar. É igualmente compreensível. As observações estão correctas, e são subversivas para o poder e para os privilégios; daí a histeria.
De um modo geral, as reacções de uma pessoa honesta ao fim da Guerra Fria serão mais complexas do que o simples prazer pelo colapso de uma tirania brutal, e as reacções que prevalecem estão impregnadas com uma hipocrisia extrema, na minha opinião.
Capitalismo
RBR: Em muitos aspectos a esquerda de hoje encontra-se de regresso ao seu ponto de partida no final do século XIX. Tal como então, enfrenta agora uma forma de capitalismo que está em ascensão. Parece mesmo existir um maior "consenso" hoje, mais do que em qualquer outra altura da História, que o capitalismo é a única forma válida e possível de organização económica, apesar das desigualdades estarem a aumentar. Sobre este cenário, pode-se argumentar que a esquerda não está segura sobre como avançar para o futuro. Como é que vê este período actual? Será uma questão de "regressar aos princípios"? O esforço deverá concentrar-se hoje em fazer vir ao de cima a tradição libertária do socialismo para sublinhar as ideias democráticas?
Chomsky: A maior parte disto é propaganda, na minha opinião. O que é designado de "capitalismo" é basicamente um sistema de mercantilismo corporativo, com enormes tiranias privadas sem rosto, que exercem um vasto controlo sobre a economia, os sistemas políticos, a vida cultural e social, operando em estreita colaboração com os estados poderosos, que interferem maciçamente na economia nacional e na sociedade internacional. Isto é verdade também nos EUA, apesar da ilusão de parecer o contrário. Os ricos e os privilegiados não estão dispostos a enfrentar a disciplina do mercado mais do que estavam no passado, embora a considerem boa para a população em geral. Só para citar alguns exemplos ilustrativos, a administração Reagan, que alardeava a retórica do mercado livre, também se vangloriava na comunidade empresarial de ser a mais proteccionista da História norte-americana do pós-guerra -- de facto, mais ainda do que todas as outras juntas. Newt Gingrich, que lidera a cruzada actual, representa um distrito super-rico que recebe mais subsídios federais do que qualquer outra região suburbana do país, fora do próprio sistema federal. Os "conservadores" que, defendem o fim das cantinas escolares para as crianças carenciadas, pedem também o aumento do orçamento do Pentágono, que foi estabelecido nos finais dos 1940s na sua forma actual porque -- como a imprensa económica nos informa gentilmente -- a indústria de alta tecnologia não consegue sobreviver numa "economia de livre iniciativa pura, competitiva e não subsidiada" e o governo deve ser o seu "salvador." Sem o "salvador," os eleitores de Gingrich seriam pobre gente trabalhadora (se tivessem sorte). Não existiriam computadores, electrónicas, indústria aeronáutica, metalurgia, automatização, etc., etc., pela lista abaixo. Entre todas as pessoas, pelo menos os anarquistas não se deviam deixar levar por estas fraudes tradicionais.
Mais do que nunca, as ideias socialistas libertárias são relevantes, e a população está muito aberta a elas. Apesar de uma enorme quantidade de propaganda corporativa, fora dos círculos mais instruídos, as pessoas ainda mantêm muitas das suas atitudes tradicionais. Nos EUA, por exemplo, mais de 80% da população vê o sistema económico como "inerentemente injusto" e o sistema político como uma fraude, que apenas serve os "interesses especiais," e não "o povo." Maiorias esmagadoras consideram que as pessoas têm muito pouca voz nos assuntos públicos (e o mesmo se passa em Inglaterra), que o governo tem a responsabilidade de assistir às pessoas em dificuldades, que a despesa em educação e saúde deveria ter prioridade sobre os cortes nos orçamentos ou nos impostos, que as actuais propostas Republicanas no Congresso benificiam os ricos e prejudicam a população em geral, e assim sucessivamente. Os intelectuais podem contar uma história diferente, mas não é muito difícil descobrir os factos.
RBR: Até certo ponto as ideias anarquistas foram demonstradas pelo colapso da União Soviética -- as previsões de Bakunine provaram estar correctas. Acha que os anarquistas devem tomar a peito estes desenvolvimentos gerais e a perceptibilidade da análise de Bakunine? Devem os anarquistas olhar para o futuro próximo com maior confiança nas suas ideias e na sua história?
Chomsky: Eu penso -- pelo menos espero -- que a resposta esteja implícita no que foi dito acima. Penso que a era actual tem maus presságios omniosos, e sinais de grande esperança. O que se seguirá depende do que fizermos com as oportunidades.
(Red And Black Revolution é uma publicação irlandesa.)
Spunk Library
http://www.homeless.com/homepages/raycunhm@macollamh.ucd.ie.html
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FONTE : http://trintadefevereiro.no.sapo.pt/biblioteca/chomskyrbr.html
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