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quinta-feira, 11 de março de 2010

IDÉIAS E CRENÇAS - (UM TEXTO DE PAULO FREIRE)

Um texto de Paulo Freire

Nasci em 19 de setembro de 1921 e vivo uma experiência que, de modo geral,
os chamados "intelectuais" têm ou passam: a de viver uma impossível
dicotomia entre mente e corpo. A mente continua viva, curiosa, inquieta,
arriscando-se. O corpo não a acompanha. Costumo dizer que não é fácil viver
essa sensação de ter uma mente jovem num corpo de 75 anos. Quando se chega a
certa idade (que às vezes chamam pomposamente "idade provecta") e lhe
perguntam sobre a educação da juventude, o perguntado corre o risco de se
enclausurar e começar a ver perigosamente a nova idade. Começo, então,
denunciando esse risco, ou seja, vou evitar pensar como um sujeito que fala
de cima para baixo sobre o futuro dos que estão aí fazendo o seu presente.
Em primeiro lugar, a prática educativa tem que ver, na medida em que é uma
prática social e histórica, com as condições de tempo e espaço em que se dá.
Por causa das revoluções tecnológicas que se sucedem em prazos cada vez
menores - quando a gente pensa que na Idade Média as diferenças substantivas
de um tempo para outro passavam cem anos para ser vividas e hoje atingem-se
diferenças no campo da tecnologia e da ciência a cada semana - há uma certa
velocidade que nos faz passar pelo tempo às vezes ficando atônitos. Esses
avanços colocam algumas exigências para essa geração jovem que está aí ou
para a outra que está chegando.
Por exemplo, a necessidade de que sua experiência educativa seja centrada no
desenvolvimento, na criação, na construção e no desenvolvimento de uma
consciência que eu chamo de consciência crítica. Os avanços tecnológicos vêm
exigindo cada vez mais respostas rápidas, precisas e imediatas a desafios
diferentes, que às vezes se atropelam. E esses desafios não podem ficar à
espera de amanhã. Este é um dos problemas que a geração nova já está
enfrentando, e o motivo pelo qual ela precisa também assumir a briga por uma
transformação pedagógica. A tradição brasileira, profundamente autoritária,
coloca sempre o formando como um objeto sob a orientação do formador, que
funciona como o sujeito que sabe. É preciso deixar de ser assim.


Educação deve contribuir para uma formação crítica


Há 30 anos defendo a posição, radical, sem dúvida, de que conhecimento não
se transfere, conhecimento se constrói. Como a inteligência. Você constrói,
produz a inteligência, não a recebe de graça. Este é um dos problemas a
serem enfrentados pelas gerações novas engajadas no processo educacional.
Não há dúvida de que a prática pedagógica no Brasil não contribui em quase
nada para uma formação crítica, para o que eu venho chamando de curiosidade
epistemológica.
Preocupa-me o modo como devemos viver a prática educativa. Deve-se entender
esta prática como uma experiência política, como um acontecimento estético,
portanto, como uma certa boniteza em si mesma; a prática educativa como
moralidade, portanto, como ética. É preciso ver a prática educativa como
sonhos dentro dos quais há desejos legítimos - e por que não até os chamados
ilegítimos, pois a mim me preocupa saber quem é o juiz que diz que um certo
desejo meu é ilegítimo?
Hoje convivemos com os discursos ideológicos que negam a ideologia, isto é,
estamos diante do discurso neoliberal que vem sorrateiramente impondo,
sobretudo à juventude, o pensamento dos intelectuais ontem progressistas, ou
de esquerda, e que hoje, estupefatos diante da queda do muro de Berlim,
estão convertidos ao pragmatismo do discurso neoliberal, um discurso que vem
despoetizando cada vez mias a educação e a escola. Isso é uma ameaça ao
homem e à mulher. Diante de fato desta natureza - e essa já é uma
preocupação de hoje e não do amanhã - eu defendo uma educação criticizante.
Que eles, os jovens, se convençam de que essa não é apenas uma briga dos
velhos, mas uma briga deles, uma briga dos velhos jovens, dos jovens que não
querem envelhecer.
Não me sinto um homem religioso, mas sim um homem de fé. Quando eu era
menino, li um livro muito bonito de Miguel de Unamuno chamado "Idéias e
crenças" e nunca esqueci que ele começa dizendo: "As idéias se têm e nas
crenças se está". Posso dizer, até enfaticamente, que vivo uma fé sem
religiosidade. Posicionando-me assim, supero a dimensão mais mesquinha da
experiência religiosa, o indiscutível autoritarismo das Igrejas. A Igreja se
acha mãe, mas uma mãe que não é filha. Não conheço mãe que não seja filha. E
que não tenha sido ou não continue a ser filha. As Igrejas se acham mães e
querem que, como filhos e filhas as obedeçamos cegamente. Para mim, não é
isso, mas não estou no mundo para corrigir as Igrejas. Uma das poucas
certezas que tenho é a de que sou mais que o meu cadáver. Certeza esta que
faz parte da minha fé.
Na meninice, fui religioso. Sou nascido e formado numa família católica que
teve, porém, uma experiência muito interessante. Meu pai era espírita
kardecista, mas nos deu um testemunho fantástico de diálogo e de respeito
aos diferentes. Ele era um nordestino do início do século, no Recife, com a
cultura profundamente "macha". Com 7 anos, fui até ele e disse: "Meu pai,
quero lhe dizer que amanhã faço a minha primeira comunhão".
Tinha 7 anos e não pedi licença - o que talvez seja até para alguns
pedagogos um sinal ruim. Apenas comuniquei ao meu pai; aquilo já era um
problema meu. Não precisava de autorização, e ele me deu um testemunho, que
até agora considero de uma força fantástica. Ele beijou minha testa e disse:
"Eu vou com você à igreja amanhã". Respeitou a minha opção, mesmo insegura,
e foi comigo no dia seguinte. Pode-se avaliar o que isso representou na
minha vida inteira, daquela manhã até hoje, na formação do meu ser, o
suporte de uma presença indispensável e afetiva numa hora que eu sabia
importante. Aquilo depois se reproduziria em outras situações em que eu
sentia de novo a presença do referencial, mesmo na ausência.


A contradição entre o discurso e a prática da Igreja


Na adolescência, continuei indo à igreja, mas houve um pouco de rebeldia aos
19 anos: eu sentia uma diferença radical entre o sermão e o comportamento
reacionário da instituição, isto é, a negação da mão estendida e da briga,
já na época, em favor da reforma agrária. Sentia uma contradição terrível
entre a fala e a prática e achava aquilo um disparate. Lembro-me da primeira
fuga que fiz do comportamento religioso e da Igreja. Ainda me lembro de uma
longínqua manhã de domingo em que eu dizia que estava muito severo em minha
crítica, que afinal havia uma dimensão profundamente humana sem a qual a
Igreja não era Igreja, e que eu estava querendo divinizá-la. Tinha que
entender as contradições dos sermões (mas implico com os sermões até hoje).
Depois disso, eu não diria que deixei a Igreja, mas talvez eu possa dizer
uma coisa que, do ponto de vista clássico, já é um pecado; não vejo mérito
na preservação da fé, porque nos momentos mais difíceis que tenho vivido
nesses 75 anos, inclusive na morte da minha primeira mulher, que morreu
sobre meu peito, nunca perguntei "por quê"? Sempre achei essa pergunta
indébita, ou seja, apesar de toda a minha luta no sentido de ser considerado
em meu direito de perguntar, jamais perguntei "por quê?". Essa é uma fé em
que vivo em paz; de vez em quando, sem paz, pois respeito as posições dos
outros. Eu me sentiria um pouco vazio se por uma razão qualquer perdesse a
fé.

Texto do livro "Encontros de vida", de Zélia Goldfeld, da editora Record.
Textos Sagrados


FONTE : http://rui.c.vilabol.uol.com.br/paulof.html

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