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quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

José Reis e o pioneirismo no estudo da doença aviária* - OSMIR J.NUNES


Osmir J. Nunes**
Em 15 de março de 1932, dentro de uma singela revista com o nome de Chácaras e Quintais, traz um texto precavido: “No início da Estação Avícola de 1932 – Algumas sugestões aos avicultores brasileiros”, assinado “por José Reis do Instituto Biológico de São Paulo (Original para Cha. e Qui.)”.

É surpreendente folhear esta antiga revista, que intercala entre os textos a mais variada gama de anúncios sobre granjas, mudas e produtos diversos para uso agrícola. Só esse campo visual já prepara o leitor, distante desta data, para uma viagem ao “décor” dos anos 30, bem como para extrair uma visão sociológica diametralmente oposta ao atual universo industrializado. É possível encontrar vários anúncios, chamando atenção para os produtos oferecidos pelas chácaras de Santo Amaro, onde hoje se localizam os bairros Chácara Flora, Alto da Boa Vista e Granja Julieta.

Nesse contexto é que vamos encontrar o Dr. José Reis e sua iniciação na divulgação científica, ou na popularização dos conhecimentos científicos, como gosta de afirmar em algumas de suas entrevistas. No trecho inicial do primeiro artigo publicado na revista Chácaras e Quintais, em 15 de março de 1932, que consideramos seu primeiro artigo de divulgação científica, já é possível identificar a linguagem simples usada para discutir um assunto árido, tendo por objetivo um público não especialista no assunto, neste caso chacareiros e sitiantes: “Cremos oportuna a época para lembrar aos criadores algumas questões fundamentais de ornipatologia e de profilaxia geral, cujo desconhecimento é responsável pelo naufrágio de muitas tentativas avícolas.


José Reis: jornalista, cientista e divulgador científico
“Não são poucos, infelizmente, os que admitem que para iniciar granja e levá-la avante bastem alguns contos de réis, aves de “pedigree”, dormitórios e parques construídos segundo o compêndio, e ração balanceada aprendida com avicultor vizinho. Em verdade, é muito, pois há quem suponha apenas necessários, além das aves, galinheiros, arranjados no fundo do quintal, com poleiros feitos de cabo de vassoura... mas não é tudo; é preciso que o avicultor conheça perfeitamente os inimigos que tem de enfrentar e os meios de que dispõe para combatê-los eficazmente, esta é, justamente, a questão mais difícil da avicultura e a que menos familiar se torna aos nossos avicultores, pela falta de livros e de artigos que aliem rigor científico a linguagem fácil e popular. Não é estranhável tal ausência de boa literatura ornitopatológica entre nós, dada a carência, só muito recentemente suprida, de laboratórios especializados, sem os quais o diagnóstico e a profilaxia das doenças não passam de simples fantasia.
“Em São Paulo, o Instituto Biológico, apesar de suas instalações precárias e da falta de recursos decorrente da atual situação financeira, conseguiu já, em menos de dois anos, levantar o censo das principais moléstias contagiosas que atacam as aves, em todo o território do Estado, preparando contra elas, regularmente, vacinas e soros específicos e disseminando as noções indispensáveis à prevenção das mesmas doenças.”

Sob o comando de Rocha Lima este era o período de implantação de uma série de pesquisas que o Instituto Biológico estava pondo em prática, voltado para a produção agrícola do Estado de São Paulo. As propriedades pequenas eram dominantes no estado paulista. Entre numerosas atividades que esses sítios e chácaras proporcionavam, uma delas era a criação de aves. Por falta de informações e recursos técnicos muitos desses empreendimentos não davam certos.

As primeiras pesquisas no Instituto Biológico, no início de 1930, e conseqüentes visitas ao campo não ficaram na rotina burocrática do pesquisador microbiologista José Reis. Era necessário passar informações o mais rápido possível a essa população do campo. Publicar artigos em revistas especializadas para entidades científicas era, e ainda é, um caminho natural de divulgação de um cientista pesquisador. Publicar artigos em órgãos de comunicação de massa não era e ainda hoje, para alguns, não é o caminho usual.

Lembrando esse período determinante em sua vida, o Dr. José Reis, em entrevista no Ciência Hoje - nº 1, julho/agosto de 1982, nos informa que de fato foi nesse episódio que se deu o início de sua trajetória de divulgador científico. Comenta sobre sua ida para São Paulo, recém formado em medicina, para trabalhar no Instituto Biológico: “Pois foi aí que eu comecei de fato minha carreira de divulgador da ciência. Eu trabalhava ao lado do grande cientista Hermann von Ihering, que um dia entrou na minha sala com o seguinte problema: um modesto sitiante procurava o Instituto para esclarecer qual era o problema que atacava suas galinhas que eram dizimadas por uma “peste”. O Dr. Von Ihering me perguntou: “Que peste é essa? Aí está uma coisa que você pode descobrir para ajudar esse pessoal”. Aceitei o desafio e, resolvido esse, outros foram-se apresentando. Mas para desincumbir-me bem dessa missão de aconselhar, informar os sitiantes, tornava-se importante estabelecer contato com eles e aprender a falar-lhes e escrever-lhes com a maior simplicidade. Ao fim de pouco tempo, eu estava escrevendo artigos em revistas agrícolas, como Chácaras e Quintais”.

A informação, oficializando os primeiros textos em Chácaras e Quintais, vem anunciada pelo editor: “chamamos a atenção dos avicultores todos, sobre a douta colaboração que inicia neste número o jovem e competente cientista do Instituto Biológico de S. Paulo”.

Por essa ocasião o Dr. Reis dedicava-se a estudar patologias das aves, no caso das galinhas. Entretanto o trabalho foi tão extenso, reunindo farta documentação iconográfica, que resultou no livro Tratado de Ornitopatologia, publicado posteriormente em 1936, com a colaboração de P. Nóbrega e Annita Swenson Reis. Esta obra republicada e atualizada em 1957, tornou-se conhecida pela comunidade internacional de cientistas da área, que a adotaram como um clássico.

Em outra entrevista ao Biológico, v.57, p.58, jan/dez 95, conta-nos a mesma história com mais detalhes; explica como se iniciou nesse campo de pesquisa e a conseqüente divulgação de sua atuação.
“A carreira então iniciada me permitiu desbravar o campo da ornitopatologia, antes perlustrado apenas ocasionalmente. Criei o termo ornitopatologia em lugar que se usava o velho Rivolta, onitoiatria, porque pretendi estudar as doenças das aves de maneira global, desde a etiologia até a patogenia e a anatomia patológica, para chegar às medidas de prevenção e terapêutica, e não como assunto clínico. Para desincumbir-me completamente da missão, urgia estabelecer contato com os sitiantes e aprender a falar-lhes e escrever-lhes com maior simplicidade”.

Lendo Chácaras e Quintais vamos encontrar José Reis subordinado a um problema real: os sitiantes queriam criar galinhas, mas o que persistia eram as doenças. Essa preocupação aumentava na medida em que sua pesquisa observava comportamentos e procedimentos daqueles criadores.

Ao mesmo tempo em que ele se envolvia em uma pesquisa exaustiva sabia da necessidade urgente de comunicar o que ia descobrindo. É interessante verificar a instauração desse processo, observando como os textos se transformaram em um diálogo do cientista com seus leitores.

Os textos, na medida em que vão sendo publicados, vão se tornando peças de um diálogo que na verdade é um jogo pedagógico. Não adianta falar para o criador apenas como é a doença da galinha, mas como os criadores se comportam diante dela. Na Chácara e Quintais de 15 de maio de 1932, com o título “Alguns erros que os avicultores gostam de cometer”, fica bem clara essa relação do divulgador com seu público, em pleno início de uma aula de comunicação: “Certamente não recolhi todos os erros habituais dos avicultores. Alguns, entretanto, aqui estão, talvez os mais freqüentes e comprometedores”.

Relaciona no artigo cinco tipos de erros, baseados evidentemente em suas observações e andanças. No exemplo a seguir, com o subtítulo “Onde comprar aves para iniciar criação?”, fica patente o uso da linguagem coloquial, longe do ranço considerado “resumo de tese de mestrado ou doutorado”. Estabelece empatia com o seu público leitor: “O Jeca vai ao mercado e arremata verdadeiras pechinchas, pois compra por dois mil réis uma galinha com dezenas de vermes, centenas de micróbios patogênicos e milhares de piolhos. Os mercados públicos são especialistas na venda de aves portadoras de cólera: para eles convergem todos os resíduos das criações particulares. “Não solte em seus galinheiros aves adquiridas no mercado. Do contrário, chamá-lo-ão de Jeca, e com justiça...

“Não menos Jecas do que o legítimo caipira são certos doutores (que coisa engraçada os doutores!). As exposições costumam ser boas mostras de penas: diante de uma Plymouth Barrada em exposição é mais lógico dizer: “que belas penas!” do que: “ótima ave!”. Só Deus sabe o que vai pelas tripas do pobre animal (não se esqueçam os leitores de que há portadores de cólera e disseminadores de coccidiose que se vestem garbosamente com penas merecedoras de todos os primeiros prêmios). “Afinal de contas, quem monta granja é para auferir lucros e não para ter parque de belos exemplares... Conheci um pobre maníaco que de tal modo se entretinha em contar os bicos da crista de seus Leghorns que se esqueceu de vaciná-los contra a bouba... Como é de prever, com ou sem bicos padrões, as cristas se encheram de pipocas.

“Os que além de doutores são frandunos, estes têm sempre olhos compridos para a América e não concebem regular criação que não comece pelo empate de algumas dezenas de contos em aves de refinadíssimas linhagens. Importam galos condecorados e galinhas detentoras de recordes: depois...coçam a cabeça, porque os campeões negam fogo. Pretendem reclamar e bombardeiam o vendedor estrangeiro com granadas de retórica; nada, porém, conseguem porque, si exigiram mil garantias, desta, muito elementar, se esqueceram: um atestado de saúde.”

Eis aí parte do segundo texto de divulgação científica do Dr. José Reis, em 1932. Uma verdadeira aula, onde o jogo das palavras, com expressões certeiras, nos seduz de forma inusitada.



Referências bibliográficas
REIS, José. “No Início da Estação Avícola de 1932”, in Chácaras e Quintais, São Paulo, 15 de março de 1932, pp. 293/298.
REIS, José. “Alguns erros que os avicultores gostam de cometer”, in Chácaras e Quintais, São Paulo, 15 de maio de 1932, pp. 612/614.

REIS, José. “Professor José Reis: Um divulgador da Ciência” (Entrevista), in Ciência Hoje, Rio de Janeiro, nº1, Julho/Agosto de 1982, pp. 77/78.

REIS, José. “José Reis, em foco” (Entrevista), in O Biológico, São Paulo, jan./dez., pp. 53/61.

* Devido a atualidade do texto de José Reis, estamos publicando novamente parte do texto "Entre chácaras, DNA e quintais", que mostra a versatilidade do autor em tratar temas que ainda hoje são motivos de pesquisa, principalmente por causa das preocupações em torno do tema Gripe Aviária.
** Osmir Nunes é pesquisador, supervisor de produção e secretário-geral do Núcleo José Reis da ECA/USP. osmir@usp.br
FONTE : http://www.eca.usp.br/njr/espiral/placa27b.htm

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