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quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

DIÁLOGOS SOBRE O AMOR ROMÂNTICO - Jurandir Freire Costa.

(uma das perguntas feitas ao psicanalista Jurandir Freire Costa)
leia na íntegra em : http://jfreirecosta.sites.uol.com.br/entrevistas/com_o_autor/amor_romantico.html


Sua análise do amor romântico me parece equivocada por dois motivos: primeiro, você confunde “apaixonamento” com “amor”; segundo, dizer que a cultura do narcisismo inviabiliza o amor não implica dizer que o amor é algo mau ou indesejável. É como se você quisesse tomar o caminho mais fácil: já que não se pode mudar o mundo, que se mude o amor. Você não acha isso um outro sintoma da cultura do narcisismo? Afinal, você concebe um mundo sem amor?

Vejamos a primeira parte da pergunta. Existe, de fato, diferença entre o estado mental do “apaixonamento romântico” e, digamos, o do “romantismo amoroso mitigado”. Mas não era esse o problema discutido. O “apaixonamento” como o “amor atenuado” são, ambos, momentos ou fases do complexo emocional que chamei de “amor-paixão-romântico”. A distinção, aqui, está no grau, na intensidade afetiva entre etapas de um mesmo processo e não na qualidade das emoções vividas. O apaixonamento não se diferencia do amor atenuado da mesma forma que o amor se diferencia do medo, do pesar, da cólera etc. o mais importante nessa diferenciação, no entanto, é notar que saber distinguir o “apaixonamento” do “amor pacífico e sensato” foi e continua sendo uma das maneiras de cultivar o romantismo. Ou seja, como o apaixonamento, em geral, retira parte da autonomia do sujeito e o leva, muitas vezes, a agir de modo moralmente inaceitável em outras circunstâncias afetivas, desde Rousseau – o pai intelectual do romantismo – se tenta apresentar a paixão como um flash de êxtase que deve dar lugar ao amor seguro, equilibrado, orientado para fins mais nobres.

Em síntese, ser capaz de diferenciar “paixão” de “amor”, como se costuma dizer, faz parte do aprendizado romântico. Convencer-se de que a “paixão” passa e que, transcorrido esse instante, devemos nos esforçar para manter vivo o momento seguinte, isto é, o momento do amor firme e atenuado, significa, justamente, admitir os custos psicológicos da mencionada ascese amorosa.

Aceitar perder a magia, o fascínio do êxtase passional, para conservar o encanto dos sentimentos ponderados foi o ideal do romantismo antigo. Ora, é essa linguagem romântica dos séculos XVIII, XIX e primeiras décadas do século XX que está sendo “desaprendida”. Ao insistir no peso dado ao moderno culto das sensações, quis mostrar como a ordem cultural que faz o elogio das “emoções intensas” fez do “amor mitigado” um adversário sentimental do “apaixonamento”.

A questão central, por conseguinte, não é opor “apaixonamento” a “amor bem temperado”, fazendo do primeiro a fagulha necessária ao amor harmonioso, este sim, o verdadeiro Bem ao qual se deve aspirar. A questão é notar o impasse criado entre duas exigências contraditórias: a) o desejo das experiências intensas e fugazes e b) o desejo de amores ternos que durem para sempre. Até o momento, não encontramos soluções culturais ou psicológicas para o dilema. Ou se tem um ou se tem outro, e, ao perdermos um deles, o resultado é, quase inevitavelmente, o sentimento de vida contrariada, de atentado ao direito de ser feliz.

A segunda parte da pergunta é mais complexa. A cultura do narcisismo não apenas criou condições desfavoráveis ao exercício do romantismo amoroso; revelou, também, facetas da emoção romântica que se mantinham nas sombras de sua idealização. O amor romântico, antes mesmo da cultura do “mínimo Eu”, na expressão de Christopher Lasch[2], já apresentava traços socio-sentimentais problemáticos, do ponto de vista moral. Com disse Robert Solomon, um dos pensadores mais simpáticos ao romantismo,

A maioria do mundo olha nossas fantasias românticas como uma fonte de caos social e irresponsabilidade, como causa de muita infelicidade e (...) com a razão por trás da impressionante taxa de divórcios e do enorme número de pessoas mais velhas, sobretudo mulheres, que se encontram abandonadas numa cultura particularmente sensível e inconseqüente. Nossa ênfase no romance encoraja a vaidade em detrimento da camaradagem, a reclusão em vez da comunidade, o capricho em vez da responsabilidade e a excitação emocional em vez da estabilidade social. O resultado parece ser o de uma cultura fragmentada, frustrada e solitária justamente porque é romântica. Até que reinventemos uma forma de amor romântico que responda a tais acusações, deveríamos ser humildes quanto a nosso entusiasmo por ele.[3]

O amor romântico, portanto, como qualquer emoção humana, não é feito só de virtudes. Ele carrega um potencial de individualismo e preocupação obsessiva com o próprio bem-estar que pode nos tornar absolutamente indiferentes a tudo e a todos ao redor.

Não se trata, é óbvio, de “reprovar o amor” ou os que pretendem dedicar a vida à realização amorosa; trata-se de mostrar que esse objetivo não está além do bem e do mal. Existe uma grande diferença em afirmar que o amor romântico é um estado afetivo que pode nos fazer muito felizes e que, por isso, pode ou deve ser buscado por quem de direito e apresentar o romantismo como uma obrigação moral universal. No último caso, fazemos de uma possibilidade, necessidade e reforçamos a crença de que todos os que não conseguem amar, no código do romantismo, são pessoas fracassadas, frágeis, insensíveis, “não resolvidas”, do ponto de vista psicológico. O amor romântico, repito, é uma emoção mundana, comprometida, entre outras coisas, com valores estéticos e morais diretamente ligados a interesses de classe social, situação econômico-cultural e preconceitos raciais, sexuais ou religiosos dos amantes. Longe de ser uma emoção pura, inocente ou “divina”, o romantismo amoroso é uma busca de satisfação sexual e sentimental nem mais nem menos legítima do que outras às quais damos as costas por que estamos empenhados, dia e noite, em amar e ser amados.

O problema, em meu entender, não é conceber “um mundo sem amor”, coisa que julgo inimaginável, mas observar como funciona “um mundo com amor”, ou melhor, um mundo hipnotizado pela obsessão amorosa. Um mundo sem amor é uma conjectura a ser explorada, no melhor dos casos, pela ficção científica; um mundo que gira em torno do amor é uma realidade palpável para os que pertencem às classes privilegiadas das sociedades ocidentalizadas. Esse mundo está muito distante do “mundo-cor-de-rosa” da publicidade hollywoodiana. É um mundo, ao contrário, muitas vezes soturno, triste, deprimido, belicoso, voltado para expectativas que redundam em ciúmes destrutivos, possessividade compulsiva, ódios, ressentimentos, violências contra os ex-parceiros, sentimentos de derrota, mesquinharias em disputas econômicas, vilanias na manipulação de familiares, menosprezo dos que são batidos nas disputas amorosas etc.

O culto irrefletido ao amor romântico, é verdade, pode nos levar aos céus do êxtase apaixonado. Mas também pode nos fazer viver, de modo quase permanente, no inferno de uma vida sem alegria, dilacerada pela falta de sentido e de esperanças. Assim, não se trata de mudar o amor porque não se pode mudar o mundo; trata-se de mudar o mundo e ver como podemos mudar nossos modos de amar. Da mesma forma que, ao longo da história, fomos capazes de mudar nossas concepções de justiça, igualdade, liberdade, fraternidade, amizade, amor a Deus, responsabilidade paternal, usufruto da sexualidade, compromisso com o outro etc., podemos, igualmente, experimentar formas de amor que sejam mais satisfatórias. Nem tudo na vida depende de nosso desejo, esforço ou boa vontade, mas muitas coisas dependem da confiança que temos em nosso poder de alterar estados de coisas que podem ser mudados pela forma com que aprendemos a percebê-los, interpretá-los e vivê-los.(...)

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