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sábado, 29 de abril de 2017
Leis trabalhistas, pra quê?
Crianças trabalhando em fábrica. Macon, Georgia, EUA. 1909.
https://papodehomem.com.br/leis-trabalhistas-pra-que/
Leis trabalhistas, pra quê?
Vale a pena a decisão moral de criar empregos piores para ter menos desemprego?
Alex Castro
Hoje, economistas admitem que o salário mínimo é desumano e indigno, mas argumentam, com resignação, que o país iria à falência se pagasse um salário mínimo humano e digno. Ontem, cafeicultores admitiam que a escravidão era desumana e indigna, mas argumentavam, com resignação, que o país iria à falência se as lavouras fossem plantadas por pessoas assalariadas. Seja na época colonial ou no desgoverno Temer, o consenso entre as-pessoas-brasileiras-que-vivem-em-condições-humanas-e-dignas é sempre o mesmo: O Brasil só pode existir enquanto entidade política viável se mantiver grande parte das outras pessoas brasileiras em condições desumanas e indignas. Mas é viável uma entidade política que não consegue nem mesmo garantir condições humanas e dignas para a maioria de sua população?
Nesse caso, existir para quê? Existir para quem?
* * * Digamos que economistas façam uma proposta modesta: se devorarmos as pessoas mais pobres, resolveremos todos os problemas econômicos do Brasil! Eu poderia até dizer que essa proposta é imoral e ineficiente, mas uma coisa é certa: Como esse plano nunca foi tentado, não fazemos ideia do que pode acontecer. (Aposto que não seria nada de bom.) Por outro lado, quando economistas propõem desmontar as leis trabalhistas para turbinar a economia, a única resposta possível é que já sabemos que não funciona. (O mundo era assim até anteontem.) Crianças trabalhando em fábrica. Macon, Georgia, EUA. 1909. No passado, a disseminação desses empregos miseráveis e inseguros, precarizados e indignos, causou uma crise social tão grande que só foi solucionada... ...pelas próprias leis trabalhistas que agora querem destruir. (Sou historiador formado por universidade pública. Ou seja, todas as pessoas brasileiras fizeram uma vaquinha para que eu me tornasse um guardião profissional da nossa memória — teoricamente porque viam algum valor nessa atividade. Então, em encruzilhadas históricas como a atual, eu me sinto obrigado a me manifestar.)
* * * Diz uma amiga empresária: "Alex, o salário mínimo causa desemprego sim! Se ele fosse mais barato, as funcionárias custariam menos e eu poderia contratar mais. É fato." Digamos que minha amiga está certa. Por que parar no salário mínimo? Ela também estaria certa se dissesse que 13º salário causa desemprego: se empresas pudessem pagar apenas doze salários por ano, com certeza contratariam mais, pois funcionárias custariam menos. Se não fosse obrigatório pagar vale-transporte, disponibilizar banheiros, dar pausas para alimentação, oferecer equipamento de segurança, as funcionárias também custariam menos e as empresas também poderiam contratar mais. De fato, se fizermos a conta friamente, todas as obrigações trabalhistas servem apenas para encarecer as funcionárias e, consequentemente, aumentar o desemprego.
A questão é que essas contas nunca são frias: a economia é, antes de tudo, moral. A lei, criada por nossos representantes eleitos, impõe essas obrigações trabalhistas às empresas porque nós, enquanto sociedade, tomamos a decisão moral de que é melhor termos menos empregos dignos do que mais empregos indignos.
* * * Retruca minha amiga empresária: "Que loucura, Alex. Você acha mesmo que os empresários são criminosos? Que vamos contratar alguém e não deixar a pessoa ir ao banheiro?" Mas essas situações não são hipotéticas: sabemos o que acontecia antes dessas leis existirem, sabemos o que acontece quando existem e não são respeitadas. Hoje, não faltam processos trabalhistas contra empresas que não fornecem equipamentos de segurança ou que não dão pausas para banheiro. Ontem, não faltavam casos de empresas que praticavam quase escravidão. (Aliás, hoje também.)
* * * Continua minha amiga empresária: "Pôxa, Alex, eu não quero voltar à Revolução Industrial, com crianças de nove anos trabalhando turnos de vinte anos. Quero apenas poder pagar um salário mínimo mais baixo e ter menos obrigações trabalhistas, etc." Pode até ser que minha amiga ficasse satisfeita em eliminar apenas alguns direitos fundamentais, mas outras empresárias não ficariam. O argumento de minha amiga para acabar com o salário mínimo ("gera desemprego") pode ser usado para acabar progressivamente com todas as proteções trabalhistas, até voltarmos justamente à Revolução Industrial. A quem interessa viver em um Brasil de pleno emprego, mas onde quase todas as pessoas trabalham em empregos miseráveis e inseguros, precarizados e indignos?
* * * O cálculo de que salário mínimo alto causa desemprego não está errado. (Digamos!) O erro está em fazer esse cálculo como se não fosse uma conta fundamentalmente moral. Nós, enquanto sociedade, queremos que nossos pais e nossas filhas, nossas esposas e nossos colegas, tenham esses empregos miseráveis e inseguros, precarizados e indignos? A questão não é a conta fria de que o salário mínimo causa desemprego. A questão é a decisão moral de que alguns empregos é melhor que nem existam.
* * * O mais triste dessa história é que minha amiga está errada: diminuir o salário mínimo não diminui o desemprego, como já foi demonstrado empiricamente diversas vezes.
* * * Nenhuma conquista social foi ganha de mão-beijada. Cento e poucos anos atrás, as pessoas que hoje acham que greve é coisa de vagabundo diziam que jornada de oito horas, semana de cinco dias, férias anuais, pagamento de hora extra, pausa para almoço, etc, era tudo coisa de vagabundo. Esses direitos que desfrutamos hoje só foram conquistados porque muita gente apanhou da polícia, foi torturada, perdeu a vida. Então, quando lutamos, não é por nós, mas por pessoas que ainda nem nasceram: é pelos filhos e pelas filhas de quem está batendo na gente. Lutamos não porque sabemos ou achamos que vamos ganhar. (Muito provavelmente, a luta não pode ser ganha. Muito provavelmente, a luta não tem fim.) Nesse cantinho do espaço-tempo que nos coube viver (nesse pedaço leste da América do Sul, nesse começo de um século que não veremos o fim), a única coisa que podemos garantir é que vamos lutar. Vamos lutar não porque a vitória é possível, mas porque nos seria intolerável testemunhar o horror e a injustiça, e não lutar.
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