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terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Aborto, Misoginia e Feminicídio - por Carlos A. Lungarzo

http://aluzprotegida.blogspot.com.br/2016/12/aborto-umapolemica-contundente-carlos-a.html 


Aborto: Uma Polêmica “Contundente” 
Carlos A. Lungarzo 

Há alguns dias, a Primeira Turma do STF concedeu Habeas Corpus a cinco pessoas presas no Rio de Janeiro por envolvimento em abortos clandestinos. Que eu lembre, o voto de Luís Roberto Barroso conteve a primeira declaração explícita feita por um alto magistrado mostrando que as leis que proíbem o direito de escolha das mulheres são contrárias à Constituição.
A decisão dos juízes gerou uma reação “nervosa” em parlamentares, líderes religiosos e militantes antiaborto porque ela talvez seja um antecipo do resultado da ADI 5581, apesar de que o lobby antiaborto está movendo seus poderosos recursos para “abortar” qualquer decisão objetiva sobre a questão. O silêncio absoluto da mídia sobre a “polêmica” ajuda muito ao lobby antiaborto.
Esta ação 5581, apresentada pela associação dos defensores públicos e do Instituto de Bioética Anis, coordenado pela antropóloga Débora Diniz, propõe a descriminalização do aborto para o caso de mulheres infetadas por Zika, por causa dos devastadores efeitos que o vírus tem sobre o feto, principalmente a microcefalia.
O grupo já promoveu em 2004 uma ação semelhante no caso de anencefalia, que só foi julgada e aprovada oito anos depois, quando as manobras dos lobbies religiosos se esgotaram, e o fato tinha obtido repercussão internacional.

A Falsa Polêmica

Na maioria dos assuntos, religiosos, políticos ou econômicos, as polêmicas são usadas como maneira de ofuscar as evidências. Cada polemista luta para fazer brilhar sua opinião e humilhar seu adversário. No caso do aborto, o que se apresenta como “polêmica” é uma campanha de ódio contra mulheres e ativistas aos que se qualifica de “assassinos”. Em alguns países (por exemplo, nos EUA e na Espanha), essas campanhas vão mais longe, sendo frequentes os atos terroristas contra médicos e clínicas da tendência pró-escolha.
Veja a foto deste artigo: uma foto do clima de tensão na clinica de planejamento familiar de Colorado Springs, no conservador estado de Colorado. Um terrorista cristão matou três pessoas e feriu outras nove.





(Este assunto é alheio à realidade brasileira atual, mas dedico a ele um capítulo em meu próximo livro, porque acredito que pode ser uma advertência para um futuro perigoso.)
O chavão “direito de nascer” é muito parecido a outras frases misteriosas como “a existência do nada”, ou “a temporalidade do nunca”, coisas que as pessoas aceitam seguindo um conselho de Santo Agostinho, que dizia que temos que aceitar e venerar aquilo que está além de nosso entendimento.

Vida ou Morte Lenta?

Os lobbies antiaborto enfatizam que um embrião/feto de qualquer idade é vida humana, como se isso fosse uma novidade, apesar de que as pessoas aprendem isso na escola (ou, melhor, aprendiam). Essa discussão lembra as disputas medievais, pois ninguém duvida de que as células são seres vivos, e um óvulo humano fecundado é, sem dúvida, vida humana.
Esquece-se dizer, porém, que também óvulos não fecundados são seres com vida humana, e o simples ato de evitar a fecundação (mesmo que seja se abstendo de fazer sexo, sem usar qualquer método artificial) já seria uma maneira de sabotar a existência de um “nascituro”. Mas, o lobby antiaborto não considera essa circunstância, porque o objetivo é o “impacto”, tipo programa policial da TV.
A afirmação de que as pessoas que praticam aborto matam vida humana, também não é novidade, porque a morte é uma interrupção de vida, e o aborto é interrupção de vida humana. Mas, isso não prova que seja um atentado contra a vida de alguém que é sujeito de direito.
Os “intelectuais” antiaborto gostam de usar o dualismo ato-potência, inventado há 2300 anos por Aristóteles, para dizer que o óvulo fecundado é uma criança potencial. Metáforas podem ser usadas livremente, porém, nesse caso, é forçoso reconhecer que o óvulo de uma mulher que o parceiro não fecunda, também é uma criança potencial.
O óvulo fecundado é uma criança em potencia, que passa a ser uma criança em ato (sic) através de uma “causa eficiente” (ou seja, uma causa que transforma a potência em ato). Essa causa seria o parto bem sucedido. Do mesmo jeito, um óvulo não fecundado é uma criança em potência, que vira ato com apenas um passo mais, tão natural como os outros: o encontro do óvulo com o espermatozoide!
Não é que a vetusta alegoria filosófica seja relevante, porém, se você aplica num caso, por que não aplicar no outro? A razão deste esquecimento não é de tipo filosófico, mas político:
Se alguém disser que a ovulação “perdida” ou a ejaculação fora da vagina são atos de infanticídio, o caráter da campanha antiaborto ficaria visível. Que os lobbies religiosos, políticos e outros evitem estes argumentos e assumam um aparente sentimento trágico, mostra que eles sabem calcular o efeito de sua propaganda.
Para quem não adere a superstições ou (mesmo aderindo) tem a fineza de respeitar as opiniões dos outros, o único Mal do universo é o sofrimento. Ora, não há sofrimento do ser vivo (no caso, o feto) quando a morte é indolor e seu estado de crescimento não tornaria possível a vida fora do útero.
A apologia do sofrimento (por exemplo, o autoflagelo) pode dar prazer a mentes doentias como a do esbirro Silas do Código da Vinci, mas, como política de Estado só pode ser considerada repugnante.
(De passagem: a pena de morte é, em todos os casos, um processo cruel, porque o ato está rodeado de tortura emocional que não é evitável, mesmo se o método de execução não produzir dor física.)
A questão da sensibilidade fetal preocupa a muitos ativistas (tanto pró-escolha como neutros), em vários países. Em alguns deles, só se realizam abortos legais após previa anestesia do feto. Nos lugares mais avançados do planeta, a anestesia (que é a mesma usada para cirurgia fetal) é obrigatória sempre que se suspeite de que feto já possa estar numa fase de sensibilidade.
Veja os seguintes artigos:
Um assunto preocupante em relação ao aborto é a depressão que pode produzir na mulher e em seu entorno. Esse é, sem dúvida, um sofrimento psíquico que muitas mulheres sentiram na própria pele, e muitos homens sentiram por empatia com suas parceiras. A decisão da mulher do abortar não é, na maioria dos casos, nada fácil.
No entanto, é uma decisão dela. Para que se entenda este direito, vejamos uma comparação com um caso que independe de gênero. Os homens não podemos engravidar, mas podemos sermos atacados por uma doença fatal e dolorosa.
Ora, se um médico nos perguntar se desejamos passar seis meses com quimioterapia para depois morrer, temos todo o direito de dizer que preferimos a eutanásia. (Estou falando da situação numa sociedade civilizada, é claro, até porque uma sociedade brutal não deve ser usada como modelo.)
O questionamento da decisão de uma pessoa sobre seu corpo é um fato difícil de acreditar no século 21, e a cumplicidade do Estado, das mídias e dos líderes de opinião é uma infâmia.
Aliás, em todo país civilizado, o aborto sempre é, não apenas seguro e acessível, como também infrequente.
Segundo Martins-Melo e outros, entre 1996 e 2012, no Brasil, a média de abortos inseguros por ano foi de quase um milhão (994.465), com base em dados oficiais do Ministério da Saúde. (Em outros estudos, se comenta que os dados entre 1996 e 1999 fornecidos pelo Brasil foram contestados pela OMS, que entende que estavam subestimados).
Como no Brasil o aborto legal é uma raridade (mesmo que, em teoria, seja admitido pelo Código Penal em dois casos), o número de abortos inseguros e de abortos em total é equivalente. Então, arredondando, a taxa de aborto no Brasil (referida à totalidade da população) é de 5000 casos por milhão. Em 2009, a taxa da Suécia era de 13 (treze) casos num milhão.

Aborto e Religião

Todos os argumentos contra o aborto voluntário são de origem religiosa, ainda quando pessoas que os utilizam se considerem seculares.
Rejeitar o aborto com base em ideias morais pode ter sentido apenas quando se pensa em “ideias morais baseadas na religião”. Todos têm direito de basear sua moral em uma ou mais convicções religiosas, ou em quaisquer outros simbolismos culturais, mas é exagerado pretender que as pessoas aceitem essas convicções como se fossem verdades objetivas.
O problema é que, na América Latina, a moral cristã é obrigatória. Prova disso são os linchamentos de praticantes de religiões africanas, executadas por turbas protegidas pelos poderes públicos, e estimuladas por apresentadores da mídia, e lideranças eclesiais.
Algumas pessoas podem encontrar certo consolo no seguinte fato: os últimos anos, as “opções obrigatórias” de fé aumentaram. Até 1980, mais ou menos, em todo nosso continente (salvo no Uruguai, que é um país laico), podia escolher-se entre o catolicismo tradicional e a teologia da libertação. Agora, há uma nova opção formada pelos evangélicos.
Devemos, porém, evitar um equívoco: Nem todas as pessoas religiosas são feminicidas. Há numerosos seguidores de religiões, incluso tradicionais, que aceitam o aborto. Mais de 60% dos protestantes liberais dos EUA apoiam o movimento Pró-Escolha. Na religião budista e nas chamadas religiões nativas dos países asiáticos, a temática do aborto é quase inexistente. Também a comunidade judia não ortodoxa é significativa pró-escolha.
Um famoso crente pró-escolha foi o médico George Richard Tiller (1941-2009), um luterano militante que atuava como voluntário Pró-Escolha numa clínica de Kansas (EUA).
Ele foi baleado na cabeça por um ativista “Pró-Vida” quando agia como auxiliar (Usher) numa igreja luterana. Alguns pastores eletrônicos, entre eles um bem conhecido no Estado de Alabama celebraram seu assassinato.
É curioso que até os islâmicos, apesar de sua misoginia, possuam leis sobre aborto menos restritivas que as da América do Sul. A base da lei reprodutiva entre os muçulmanos é o Hadith (relatório) sobre a vida de Maomé, que complementa o Corão.
A situação varia de um país a outro, mas nenhum deles proíbe o aborto de maneira absoluta, como acontece no Chile e na Nicarágua e, na prática, em quase todos os outros países. Havendo as causas estabelecidas pelas interpretações do Hadith, o aborto pode realizar-se até o quarto mês, sem correr risco de ser preso como aconteceu no caso dos médicos do RJ.
Isto não justifica, porém, louvar a lei islâmica. Em realidade, os islâmicos permitem o aborto até o quarto mês, por motivos tão irracionais como os que usam outros para proibi-lo. Com efeito, católicos e evangélicos condenam o aborto sempre, porque afirmam que Deus dá a alma humana ao feto no momento da concepção. Ora, os islâmicos tem sua própria narrativa: Alah infunde a alma humana no feto no quarto mês!
Para as mulheres que suportam psicopatas no comando da sociedade feminicida, é preferível um mito que alivie seus sofrimentos a um mito que o aumente. Quantas mulheres gostariam que os padres e os pastores também acreditassem na teoria do quarto mês!
Mas, as coisas podem mudar. Segundo Santo Agostinho no século quarto, as crianças que morriam sem batismo iam para o inferno. No século 14, Frei Reinaldo de Piperino, um obscuro comentaristas, atribuiu a Santo Tomás a ideia do Limbo, um lugar que não é nem inferno nem paraíso.
Já no século 21, Bento XVI admitiu que crianças mortas “antes de nascer” talvez possam ir aos Céus, já que, segundo ele, é bem conhecido o carinho de Deus pelas crianças. Aliás, ele disse que não havia certeza sobre a existência do Limbo. (Não sabemos se isso sugere que a crença no Paraíso é certa, segundo o Papa aposentado.)
Então, talvez a teologia faça, num futuro, um espaço para os movimentos Pró-Escolha.


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