Aborto: Uma
Polêmica “Contundente”
Carlos A. Lungarzo
Carlos A. Lungarzo
Há
alguns dias, a Primeira Turma do STF concedeu Habeas Corpus a cinco pessoas
presas no Rio de Janeiro por envolvimento em abortos clandestinos. Que eu
lembre, o voto de Luís Roberto Barroso
conteve a primeira declaração explícita feita por um alto magistrado mostrando
que as leis que proíbem o direito de escolha das mulheres são contrárias à Constituição.
A
decisão dos juízes gerou uma reação “nervosa” em parlamentares, líderes
religiosos e militantes antiaborto porque ela talvez seja um antecipo do
resultado da ADI 5581, apesar de que o lobby antiaborto está movendo seus
poderosos recursos para “abortar” qualquer decisão objetiva sobre a questão. O
silêncio absoluto da mídia sobre a “polêmica” ajuda muito ao lobby antiaborto.
Esta
ação 5581, apresentada pela associação dos defensores públicos e do Instituto
de Bioética Anis, coordenado pela antropóloga Débora Diniz, propõe a
descriminalização do aborto para o caso de mulheres infetadas por Zika, por
causa dos devastadores efeitos que o vírus tem sobre o feto, principalmente a microcefalia.
O
grupo já promoveu em 2004 uma ação semelhante no caso de anencefalia, que só foi julgada e aprovada oito anos depois, quando
as manobras dos lobbies religiosos se esgotaram, e o fato tinha obtido
repercussão internacional.
A Falsa Polêmica
Na maioria dos assuntos, religiosos,
políticos ou econômicos, as polêmicas são usadas como maneira de ofuscar as
evidências. Cada polemista luta para fazer brilhar sua opinião e humilhar seu
adversário. No caso do aborto, o que se apresenta como “polêmica” é uma
campanha de ódio contra mulheres e ativistas aos que se qualifica de “assassinos”.
Em alguns países (por exemplo, nos EUA e na Espanha), essas campanhas vão mais
longe, sendo frequentes os atos terroristas contra médicos e clínicas da
tendência pró-escolha.
Veja a foto deste artigo:
uma foto do clima de tensão na clinica de planejamento familiar de Colorado
Springs, no conservador estado de Colorado. Um terrorista cristão matou três
pessoas e feriu outras nove.
(Este assunto é alheio à
realidade brasileira atual, mas dedico a ele um capítulo em meu próximo livro,
porque acredito que pode ser uma advertência para um futuro perigoso.)
O chavão “direito de nascer”
é muito parecido a outras frases misteriosas como “a existência do nada”, ou “a
temporalidade do nunca”, coisas que as pessoas aceitam seguindo um conselho de
Santo Agostinho, que dizia que temos que aceitar e venerar aquilo que está além
de nosso entendimento.
Vida ou Morte Lenta?
Os lobbies antiaborto
enfatizam que um embrião/feto de qualquer idade é vida humana, como se isso fosse uma novidade, apesar de que as
pessoas aprendem isso na escola (ou, melhor, aprendiam). Essa discussão lembra as disputas medievais, pois
ninguém duvida de que as células são seres vivos, e um óvulo humano fecundado é, sem dúvida, vida humana.
Esquece-se dizer, porém, que
também óvulos não fecundados são
seres com vida humana, e o simples ato de evitar a fecundação (mesmo que seja
se abstendo de fazer sexo, sem usar qualquer método artificial) já seria uma
maneira de sabotar a existência de um “nascituro”. Mas, o lobby antiaborto não
considera essa circunstância, porque o objetivo é o “impacto”, tipo programa
policial da TV.
A afirmação de que as
pessoas que praticam aborto matam vida
humana, também não é novidade, porque a morte é uma interrupção de vida, e o
aborto é interrupção de vida humana. Mas, isso não prova que seja um atentado
contra a vida de alguém que é sujeito de
direito.
Os “intelectuais” antiaborto
gostam de usar o dualismo ato-potência, inventado há 2300 anos por Aristóteles,
para dizer que o óvulo fecundado é uma criança potencial. Metáforas podem ser usadas livremente, porém, nesse
caso, é forçoso reconhecer que o óvulo de
uma mulher que o parceiro não fecunda, também é uma criança potencial.
O óvulo fecundado é uma criança em potencia, que passa a ser uma
criança em ato (sic) através de uma
“causa eficiente” (ou seja, uma causa que transforma a potência em ato). Essa causa seria o parto bem sucedido. Do mesmo jeito, um óvulo não fecundado é uma criança em
potência, que vira ato com apenas um passo mais, tão natural como os outros: o encontro do óvulo com o espermatozoide!
Não é que a vetusta alegoria
filosófica seja relevante, porém, se você aplica num caso, por que não aplicar no
outro? A razão deste esquecimento não é de tipo filosófico, mas político:
Se alguém disser que a
ovulação “perdida” ou a ejaculação fora da vagina são atos de infanticídio, o caráter da campanha
antiaborto ficaria visível. Que os lobbies religiosos, políticos e outros
evitem estes argumentos e assumam um aparente sentimento trágico, mostra que
eles sabem calcular o efeito de sua propaganda.
Para quem não adere a
superstições ou (mesmo aderindo) tem a fineza de respeitar as opiniões dos
outros, o único Mal do universo é o sofrimento. Ora, não há sofrimento do ser
vivo (no caso, o feto) quando a morte é indolor e seu estado de crescimento não
tornaria possível a vida fora do útero.
A apologia do sofrimento
(por exemplo, o autoflagelo) pode dar prazer a mentes doentias como a do
esbirro Silas do Código da Vinci,
mas, como política de Estado só pode ser considerada repugnante.
(De passagem: a pena de
morte é, em todos os casos, um processo cruel, porque o ato está rodeado de
tortura emocional que não é evitável, mesmo se o método de execução não
produzir dor física.)
A questão da sensibilidade fetal preocupa a muitos
ativistas (tanto pró-escolha como neutros), em vários países. Em alguns deles, só
se realizam abortos legais após previa anestesia do feto. Nos lugares mais
avançados do planeta, a anestesia (que é a mesma usada para cirurgia fetal) é
obrigatória sempre que se suspeite de que feto já possa estar numa fase de
sensibilidade.
Veja os seguintes artigos:
Um assunto preocupante em
relação ao aborto é a depressão que pode produzir na mulher e em seu entorno. Esse
é, sem dúvida, um sofrimento psíquico que muitas mulheres sentiram na própria
pele, e muitos homens sentiram por empatia com suas parceiras. A decisão da
mulher do abortar não é, na maioria dos casos, nada fácil.
No entanto, é uma decisão dela. Para que se entenda este
direito, vejamos uma comparação com um caso que independe de gênero. Os homens
não podemos engravidar, mas podemos sermos atacados por uma doença fatal e
dolorosa.
Ora, se um médico nos
perguntar se desejamos passar seis meses com quimioterapia para depois morrer,
temos todo o direito de dizer que preferimos a eutanásia. (Estou falando da situação numa sociedade civilizada, é
claro, até porque uma sociedade brutal não deve ser usada como modelo.)
O questionamento da decisão
de uma pessoa sobre seu corpo é um fato difícil de acreditar no século 21, e a
cumplicidade do Estado, das mídias e dos líderes de opinião é uma infâmia.
Aliás, em todo país
civilizado, o aborto sempre é, não apenas seguro e acessível, como também infrequente.
Segundo Martins-Melo e
outros, entre 1996 e 2012, no Brasil, a média de abortos inseguros por ano foi de quase um milhão (994.465), com
base em dados oficiais do Ministério da Saúde. (Em outros estudos, se comenta
que os dados entre 1996 e 1999 fornecidos pelo Brasil foram contestados pela
OMS, que entende que estavam subestimados).
Como no Brasil o aborto legal é uma raridade (mesmo que,
em teoria, seja admitido pelo Código Penal em dois casos), o número de abortos
inseguros e de abortos em total é equivalente. Então, arredondando, a taxa de
aborto no Brasil (referida à totalidade da população) é de 5000 casos por
milhão. Em 2009, a taxa da Suécia era de 13 (treze) casos num milhão.
Aborto e Religião
Todos os argumentos contra o
aborto voluntário são de origem religiosa, ainda quando pessoas que os utilizam
se considerem seculares.
Rejeitar o aborto com base
em ideias morais pode ter sentido apenas quando se pensa em “ideias morais
baseadas na religião”. Todos têm direito de basear sua moral em uma ou mais
convicções religiosas, ou em quaisquer outros simbolismos culturais, mas é
exagerado pretender que as pessoas aceitem essas convicções como se fossem
verdades objetivas.
O problema é que, na América
Latina, a moral cristã é obrigatória.
Prova disso são os linchamentos de praticantes de religiões africanas, executadas
por turbas protegidas pelos poderes públicos, e estimuladas por apresentadores
da mídia, e lideranças eclesiais.
Algumas pessoas podem
encontrar certo consolo no seguinte fato: os últimos anos, as “opções
obrigatórias” de fé aumentaram. Até 1980, mais ou menos, em todo nosso
continente (salvo no Uruguai, que é um país laico), podia escolher-se entre o
catolicismo tradicional e a teologia da libertação. Agora, há uma nova opção
formada pelos evangélicos.
Devemos, porém, evitar um
equívoco: Nem todas as pessoas religiosas
são feminicidas. Há numerosos seguidores de religiões, incluso
tradicionais, que aceitam o aborto. Mais de 60% dos protestantes liberais dos
EUA apoiam o movimento Pró-Escolha. Na religião budista e nas chamadas religiões nativas dos países asiáticos,
a temática do aborto é quase inexistente. Também a comunidade judia não
ortodoxa é significativa pró-escolha.
Um famoso crente pró-escolha
foi o médico George Richard Tiller
(1941-2009), um luterano militante que atuava como voluntário Pró-Escolha numa
clínica de Kansas (EUA).
Ele foi baleado na cabeça
por um ativista “Pró-Vida” quando agia como auxiliar (Usher) numa igreja luterana. Alguns pastores eletrônicos, entre
eles um bem conhecido no Estado de Alabama celebraram seu assassinato.
É curioso que até os
islâmicos, apesar de sua misoginia, possuam leis sobre aborto menos restritivas
que as da América do Sul. A base da lei reprodutiva entre os muçulmanos é o Hadith (relatório) sobre a vida de
Maomé, que complementa o Corão.
A situação varia de um país
a outro, mas nenhum deles proíbe o aborto de maneira absoluta, como acontece no
Chile e na Nicarágua e, na prática, em quase todos os outros países. Havendo as
causas estabelecidas pelas interpretações do Hadith, o aborto pode realizar-se até o quarto mês, sem correr risco de ser preso como aconteceu no caso
dos médicos do RJ.
Isto não justifica, porém,
louvar a lei islâmica. Em realidade, os islâmicos permitem o aborto até o
quarto mês, por motivos tão irracionais como os que usam outros para proibi-lo.
Com efeito, católicos e evangélicos condenam o aborto sempre, porque afirmam que Deus dá a alma humana ao feto no momento
da concepção. Ora, os islâmicos tem sua própria narrativa: Alah infunde a alma humana no feto no quarto mês!
Para as mulheres que
suportam psicopatas no comando da sociedade feminicida, é preferível um mito
que alivie seus sofrimentos a um mito que o aumente. Quantas mulheres gostariam
que os padres e os pastores também acreditassem na teoria do quarto mês!
Mas, as coisas podem mudar.
Segundo Santo Agostinho no século quarto, as crianças que morriam sem batismo
iam para o inferno. No século 14, Frei Reinaldo de Piperino, um obscuro
comentaristas, atribuiu a Santo Tomás a ideia do Limbo, um lugar que não é nem
inferno nem paraíso.
Já no século 21, Bento XVI
admitiu que crianças mortas “antes de nascer” talvez possam ir aos Céus, já
que, segundo ele, é bem conhecido o carinho de Deus pelas crianças. Aliás, ele
disse que não havia certeza sobre a existência do Limbo. (Não sabemos se isso
sugere que a crença no Paraíso é certa, segundo o Papa aposentado.)
Então, talvez a teologia
faça, num futuro, um espaço para os movimentos Pró-Escolha.INÍCIO
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