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quinta-feira, 3 de março de 2016

Territórios em disputa: “há dificuldade em saber qual é o tamanho real da presença estrangeira no Brasil”

http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/551765-territorios-em-disputa-ha-dificuldade-em-saber-qual-e-o-tamanho-real-da-presenca-estrangeira-no-brasil-entrevista-especial-com-roberto-miranda






 

 Territórios em disputa: “há dificuldade em saber qual é o tamanho real da presença estrangeira no Brasil”. Entrevista especial com Roberto Miranda

A partir dos anos 1990, com a abertura econômica do Brasil e mudanças na legislação, “passa a haver uma força muito maior do capital internacional atuando no processo produtivo e de comercialização de grãos no país”, constata o pesquisador.
Foto: www.paranacooperativo.coop.br
A história do Brasil é permeada por intensos processos de luta por território que já se iniciam com a chegada dos primeiros colonizadores. Entretanto, essas disputas nunca cessaram e se atualizam nos confrontos entre as populações tradicionais e o capital, que se personifica na figura dos grandes produtores agrícolas e nos grupos envolvidos na construção de vultosas obras de infraestrutura de empreendimentos como as usinas hidrelétricas.
Segundo Roberto Miranda, especialista que acompanha de perto as questões sociais no campo, existem diversos projetos territoriais no país que defendem seus interesses quanto aos modos de ocupação e usos da terra.
O pesquisador desenvolveu uma investigação de fôlego na região do município de Balsas, Maranhão, que resultou em sua tese de doutorado intitulada Ecologia Política da Soja e Processos de Territorialização no sul do Maranhão, defendida na Universidade Federal de Campina Grande – UFCG.
Em entrevista por telefone à IHU On-Line, o pesquisador frisa que os territórios não são exclusivos e quem tem maior capacidade de mobilização financeira e política acaba vencendo os embates. “Não podemos falar em um único projeto territorial, mas sim em projetos que disputam legitimidade e recursos, e claro que os grupos que têm uma capacidade maior de eleger deputados, governadores, vereadores e prefeitos tendem a implementar com mais facilidade seus projetos. Nem estou colocando em questão aqui o apoio muito forte dado pela imprensa. Há redes de televisão e jornais de grande circulação no Brasil que defendem alguns projetos, os quais, se forem analisados do ponto de vista socioeconômico ou socioambiental, não são tão interessantes, mas acabam sendo implementados”, aponta.
Tal disparidade de forças gera um problema sério e recorrente nessas disputas: a grilagem de terras, que é a expropriação de áreas e a concentração de grandes territórios nas mãos de poucos. Prática que ainda é uma realidade no Brasil e está sempre atravessada por diversas violências. “Embora haja uma política do governo para tentar regularizar a situação de pequenos proprietários e populações ribeirinhas, esses grupos menores não têm capacidade, em termos políticos e financeiros, de se organizar e mobilizar de forma tão rápida quanto esses grileiros, que ‘regularizam’ as terras muito brevemente, ao passo que populações do município de Balsas tentam regularizar suas áreas há mais de 20 anos e sempre se defrontam com questões burocráticas que dificultam muito essa titulação”, explica Miranda.
Com a expansão do agronegócio e a globalização dos mercados, uma parte significativa da propriedade desses vastos territórios, utilizados sobretudo para o cultivo de grãos como a soja, tem ficado com o capital estrangeiro. “O objetivo é aumentar a produção de grãos, então eles compram empresas locais e vão encontrando outras maneiras de aproveitar as brechas que a legislação brasileira deixa para a compra de terras, de modo que não há um dado oficial que informe quantos hectares de terras no Brasil são propriedade de não brasileiros”, alerta o pesquisador.
De acordo com Miranda, essa participação internacional, além de gerenciar grandes porções do território brasileiro, interfere também no cenário político e jurídico do país. “O grande exemplo disso foi a Lei de Cultivares, Lei n° 9.456, de 25 de abril de 1996, que implementou no Brasil a possibilidade de cultivar organismos geneticamente modificados. Trata-se de um processo de mobilização de grandes empresas multinacionais, com destaque para a Syngenta e Monsanto, que conseguiram, a partir do financiamento de campanhas de políticos e de lobbies no Congresso Nacional, modificar a legislação brasileira”, ressalta. Situação que demonstra que os limites, seja das leis, seja da preocupação com o bem-estar da população e do ambiente, são elásticos quando se trata de interesses econômicos.
Roberto Miranda é graduado em Ciências Sociais, mestre em Sociologia e Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Campina Grande – UFCG, instituição onde também é professor da Unidade Acadêmica de Ciências e Tecnologia Ambiental. Tem experiência em Sociologia Rural, especialmente na análise da agricultura familiar, de instituições sociais e desempenho institucional em assentamentos rurais, territórios da cidadania; em Ecologia Política, com ênfase em conflitos e mudança ambiental no Cerrado e Pré-Amazônia maranhense; e em Extensão Rural, trabalhando o associativismo, o cooperativismo e a inovação tecnológica em assentamentos rurais. Também integra a Sociedade Brasileira de Sociologia, a Rede de Estudos Rurais e a Sociedade Brasileira de Economia, Administração e Sociologia Rural.
Foto: lattes.cnpq.br
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O Estado brasileiro tem um projeto territorial? Qual é? Que avaliação o senhor faz desse projeto? Ao longo da história, de que modo os dirigentes do país trataram desse tema?
Roberto Miranda – Eu prefiro trabalhar essa questão no plural. Entendo que nós temos projetos territoriais e que determinados territórios não são exclusivos. Então nós podemos falar de vários projetos; temos um projeto na área da agricultura, vinculado ao agronegócio, por exemplo, que privilegia determinadas culturas, principalmente commodities voltadas para a exportação; mas neste mesmo espaço rural temos projetos vinculados às populações indígenas e também projetos ligados aos agricultores familiares. Dentro dessa especificidade das áreas rurais, esses projetos entram em conflito em determinados momentos da história brasileira. Isso nós podemos resgatar em um período amplo, ou em um intervalo mais breve, como acontece na disputa pela posse da terra, onde sempre aqueles atores que conseguem mobilizar mais recursos financeiros e políticos acabam tendo êxito na implementação de suas ações.
Na área rural do Brasil, durante os anos 1970 houve uma modernização da agricultura que privilegiou os grandes proprietários e marginalizou as populações locais tradicionais porque elas ficaram de lado neste processo. Dos anos 1990 para cá nós tivemos um período de criminalização dessas populações locais, porque os grandes projetos agropecuários e minerais geram passivos ambientais e como contrapartidas, em muitos casos, são criadas, por exemplo, reservas biológicas. Então as populações originárias que foram marginalizadas nos anos 1970 passaram a ser criminalizadas nos anos 1990, porque elas não têm mais acesso às áreas em que elas coletavam, pescavam, porque esses espaços se tornaram zonas de conservação ambiental em virtude dos grandes projetos agrominerais. Podemos tomar como referência aí o caso da região amazônica.
Em outras áreas também temos grandes disputas na questão urbana, por exemplo. Há um segmento empresarial que mobiliza projetos, interesses, e nós temos duas cidades que são referência para esse Brasil:
- Rio de Janeiro, com a realização das Olimpíadas, onde muitos grupos historicamente desfavorecidos foram retirados de seus locais para que os grandes empreendimentos vinculados aos Jogos Olímpicos fossem construídos, desde unidades esportivas, até unidades habitacionais para os atletas e outros grandes projetos.
- Recife, onde o mesmo vem acontecendo, em que as pessoas são desalojadas para que os setores imobiliários possam construir seus grandes empreendimentos, horizontais ou verticais, e assim ganhar dinheiro.
Com isso quero resumir que nós não podemos falar em um único projeto territorial, mas sim em projetos que disputam legitimidade e recursos, e claro que os grupos que têm uma capacidade maior de eleger deputados, governadores, vereadores e prefeitos tendem a implementar com mais facilidade seus projetos. Não estou colocando em questão aqui o apoio muito forte dado pela imprensa. Há redes de televisão e jornais de grande circulação no Brasil que defendem alguns projetos, os quais, se forem analisados do ponto de vista socioeconômico ou socioambiental, não são tão interessantes, mas acabam sendo implementados.
Essa é a ideia que perpassa a pesquisa que realizei. Não trabalho, por exemplo, a Amazônia legal e o Cerrado como áreas exclusivas ou do agronegócio da soja, ou das populações locais e tradicionais, mas como um território que é composto de diferentes grupos sociais que procuram dar legitimidade aos seus projetos. De um lado, temos os grandes produtores e empresas que produzem grãos e, de outro lado, há os pequenos produtores, os chamados agricultores familiares, e as disputas entre esses dois grupos ocasionam diferentes tipos de mudanças sociais, econômicas e especialmente ambientais.
IHU On-Line – Quais são as forças de poder envolvidas nos processos de territorialização no Brasil? Que conflitos são mais acirrados?
Roberto Miranda – Há uma variação no tempo quando falamos em poder. Nos anos 1970 havia muitos políticos locais, no caso da posse da terra, se articulando para regularizar áreas não tituladas ou não reconhecidas formalmente pelos cartórios como pertencentes a uma determinada família ou pessoa, embora nesse espaço já existissem agricultores e índios morando e trabalhando há muito tempo. Então, na pesquisa que realizei pude comprovar que, em um primeiro momento, o que nós entendemos como grileiros ou pessoas que procuraram regularizar essas áreas eram políticos locais, funcionários da polícia e comerciantes influentes. A partir da consulta a outros trabalhos, percebi que essa situação foi comum a outras regiões do Brasil, como Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, oeste da Bahia, sul do Piauí, Maranhão, Amazonas, Pará e outras áreas de expansão de fronteira agrícola.
Nos anos 1980 temos a chegada de outros atores, algumas empresas passam a entrar nesse mercado. Muitas vezes são empresas nacionais que vendem terras que possuem na região sul e passam a investir no Cerrado, como, por exemplo, o grupo SLC Agrícola, que vendeu dois mil hectares em Horizontina, no Rio Grande do Sul, e comprou 26 mil hectares no Maranhão, então conseguiram mobilizar muitos recursos financeiros para se instalar.
Entrada do capital estrangeiro
Nos anos 1990 já há uma modificação nesse cenário, com o processo de abertura econômica que o país iniciou, com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES financiando não só empresas de capital nacional, alguns segmentos sendo privatizados, então há uma reestruturação do agronegócio brasileiro. Empresas que detinham segmentos da indústria têxtil, processamento de grãos e produção de carne foram se desfazendo de alguns segmentos que atuavam. Por exemplo, o grupo Hering ficou só com a parte têxtil e vendeu a CEVAL para a BUNGE, empresa europeia que já atuava no Brasil e ampliou os seus tentáculos com a negociação. Há também uma expansão da atuação da CARGIL e a entrada de outras empresas no mercado. Assim passa a haver uma força muito maior do capital internacional atuando no processo produtivo e de comercialização de grãos no país.
Esse cenário interfere também na questão política, por isso julguei importante abordar no meu trabalho como esses grupos e atores sociais conseguem mobilizar recursos financeiros e políticos. O grande exemplo disso foi a Lei de Cultivares, Lei n° 9.456, de 25 de abril de 1996, que implementou no Brasil a possibilidade de cultivar organismos geneticamente modificados. Trata-se de um processo de mobilização de grandes empresas multinacionais, com destaque para a Syngenta e Monsanto, que conseguiram, a partir do financiamento de campanhas de políticos e de lobbies no Congresso Nacional, modificar a legislação brasileira.
Isso vem ocorrendo de forma muito mais intensa nas duas últimas décadas dos anos 2000, porque hoje no Brasil não existem apenas produtores particulares, ou empresas de grãos investindo na produção agropecuária brasileira; há, por exemplo, um grupo argentino, o Los Grobo, que não compra terra, mas sim arrenda propriedades, maquinários, e o antigo proprietário se torna às vezes um funcionário, um gestor. Há também outro grupo, o Agroinvest, muito associado aos grandes fundos de investimentos e de pensão dos Estados Unidos e da Europa, que está investindo na compra de terras no Brasil.

“A grilagem ainda continua sendo uma prática

 

IHU On-Line – De que forma a expansão das atividades agropecuárias e de mineração tornou-se um dos principais agentes da expropriação de territórios e de todos os problemas advindos desse processo?
Roberto Miranda – O Estado brasileiro, principalmente durante a ditadura, partiu do pressuposto que o Cerrado e a Amazônia eram áreas desabitadas, então houve um intenso processo de elaboração de programas, políticas e projetos para deslocar populações para essas regiões. O Estado disponibilizava terra para esses projetos, ou então os atores políticos - que muitas vezes tinham informações privilegiadas sobre esses planos do governo - grilavam terras para depois vender esses territórios para tais projetos governamentais.
Nessa articulação de compra e venda há políticos locais e grandes empresários envolvidos, o que favorece que pequenos produtores sejam expropriados de suas áreas porque não possuem titulação formal delas. Assim os projetos governamentais de colonização foram implementados, especialmente naquele momento em que não havia muito rigor em termos de fiscalização ambiental.
Em um segundo momento, há grandes grupos, como os fundos de pensão e de investimento, que passam a atuar nessas áreas para produzir grãos, e também passa a ter uma articulação do capital internacional para controlar esse processo produtivo, o qual está muito relacionado ao cultivo dos organismos geneticamente modificados, porque aí é possível receber royalties com essa produção. Por outro lado, não se sabe quais são os impactos desses organismos modificados no corpo humano nem na natureza, e não há uma preocupação do Estado brasileiro e dos órgãos internacionais que teriam a função de analisar com mais cuidado essa questão. A preocupação é do grande capital em obter lucro.
Essa lógica é a mesma que desaloja populações indígenas para construir usinas hidrelétricas. Algo muito comum no sul do Maranhão é vermos grandes torres de transmissão de energia elétrica e, ao mesmo tempo, as populações que habitam abaixo dessas linhas nem sequer têm acesso à eletricidade. Ou seja, a energia produzida é destinada a abastecer grandes centros e o passivo ambiental e social fica para as comunidades locais, geralmente indígenas, ribeirinhos e pequenos produtores.
IHU On-Line – Especificamente na região sobre a qual o senhor pesquisa, o sul do Maranhão, quais são as implicações da expansão da cultura de soja nesse território que se insere em dois biomas, Cerrado e Amazônia?
Roberto Miranda – Existem muitos problemas e questões que podem ser relacionados a esse processo. Uma dessas dificuldades é demográfica. O município de Balsas basicamente dobrou sua população a cada década. Depois dos primeiros cultivos de soja nos anos 1970, de 10 em 10 anos a população foi sendo dobrada e a infraestrutura da cidade, como rede coletora de esgoto e saneamento básico de um modo geral, transporte, educação e segurança, não recebeu investimentos como o agronegócio e a soja receberam para ser ampliados nessa região. Um dos reflexos é o crescimento exorbitante da violência no sul do Maranhão, onde há diversos casos violentos de assassinatos e outros crimes.
Também há a questão da produção de alimentos, que fica prejudicada, pois mais de 120 mil hectares da região são destinados ao cultivo de soja, o carro-chefe da produção, além de girassol, eucalipto, algodão e cana-de-açúcar. São culturas que historicamente não fazem parte da dieta da população local, especialmente a nordestina. Assim, se dá um aumento no preço da cesta básica porque boa parte dos gêneros alimentícios precisa ser comprada em outras localidades, uma vez que a quantidade de agricultores familiares foi reduzida.
Nesse cenário, temos uma cidade com o custo de vida alto. Além disso, em termos ambientais há um aumento do desmatamento e com isso o assoreamento dos rios, contaminação de solo e água, pois o descarte correto das embalagens dos produtos agrotóxicos utilizados na agricultura só passou a ser fiscalizado efetivamente nessa região na segunda metade dos anos 2000. Chegaram a ser encontrados casos de fazendas que acumulavam embalagens armazenadas de forma incorreta em quantidade suficiente para encher cinco carretas de trem de carga. Também há relatos sobre poluição da água e desvio de nascentes, desrespeito à legislação ambiental no que se refere à área de preservação permanente e reserva legal.
Assim, embora a região produza muita riqueza, essa riqueza não se reverte em desenvolvimento social e econômico local. Pelo contrário, todas as divisas são enviadas para as grandes empresas, muitas delas com sede fora do país, como a BUNGE e a CARGIL. Junta-se a isso a participação dos fundos de investimento, como a Agroinvest e o grupo Los Grobo, que compram terras no Brasil. Esse discurso de que a soja produz desenvolvimento não é verdadeiro, porque as vantagens se revertem apenas para os atores que produzem — as grandes empresas —, e para as comunidades locais ficam os grandes passivos ambiental e socioeconômico.
Para se ter uma dimensão disso, para cada 100 hectares de soja é gerado apenas um posto de trabalho, há diversos estudos que comprovam esse dado. Então são gerados poucos empregos, e a população rural que no município de Balsas, nos anos 1980, era algo em torno de 70%, hoje está apenas entre 11 e 14%. Com a migração de boa parte da população do município para a zona urbana, há um aumento da violência, prostituição e outros problemas que afetam todos os municípios brasileiros que cresceram rapidamente e não tiveram investimento em infraestrutura. Casos semelhantes são encontrados em Uruçuí no Piauí; no oeste da Bahia, tanto em Luiz Eduardo Magalhães como em Barreiras; em cidades dos Estados de Goiás, Tocantins e Pará. Há investimentos para que determinados grupos econômicos possam ter mais lucros e as populações locais não têm acesso a esses dividendos.
IHU On-Line – Na trajetória histórica do Brasil, que papel ocupa a grilagem de terras nas disputas territoriais? Quando tem início esse processo e em que áreas é mais frequente? Ainda é uma prática no país?
Roberto Miranda – A grilagem ainda continua sendo uma prática e o processo de ocupação de terras no Brasil está muito relacionado à própria colonização, com a prioridade que se deu às grandes áreas de cultivo e às grandes propriedades. Mas a grilagem propriamente dita tem uma intensificação a partir dos anos 1960 quando se inicia a política de cercamento das propriedades. Se observarmos o Nordeste nesta época, uma das principais atividades econômicas no interior era a pecuária e os rebanhos eram criados soltos, os terrenos que deveriam ser cercados eram as áreas de cultivo agrícola.
Então, a política de cercamento de terras e especialmente a modernização da agricultura nos anos 1960 e 1970 acirraram muito o conflito pela posse da terra e a grilagem, principalmente nas regiões em que havia grandes áreas de terras devolutas, e aqui me refiro ao oeste da Bahia, sul do Piauí, sul do Maranhão, Tocantins e Pará. Essas localidades nesse período tiveram grandes grilagens. Eu cito no meu estudo um comerciante da cidade de Balsas que possuía 500 hectares de terras aproximadamente e, quando foi julgada a posse, essa propriedade aumentou para 70 mil hectares. Logo que ele conseguiu regularizar, toda essa área foi repartida com funcionários públicos locais do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - Ibama, da polícia, comerciantes e políticos.
No momento os grileiros estão atuando em locais que ainda possuem terras devolutas, e o foco hoje é o estado do Pará, onde há uma grande gama de áreas desse tipo. Embora haja uma política do governo de tentar regularizar a situação de pequenos proprietários e populações ribeirinhas, esses grupos menores não têm capacidade, em termos políticos e financeiros, de se organizar e mobilizar de forma tão rápida quanto esses grileiros, que “regularizam” as terras muito brevemente, ao passo que populações do município de Balsas tentam regularizar suas áreas há mais de 20 anos e sempre se defrontam com questões burocráticas que dificultam muito essa titulação. No entanto, os mais influentes conseguem em dois ou três meses regularizar áreas enormes, utilizando pessoas como laranjas.
É um problema que muitas pessoas pensam que não existe mais no Brasil, mas ele ainda ocorre, especialmente na região amazônica, porque há municípios e estados muito grandes onde o poder público é muito ausente ou faz parte do processo de grilagem.
IHU On-Line – Como se dão os conflitos com as populações tradicionais, como os índios, ribeirinhos, quilombolas e pequenos produtores, que habitam os territórios em disputa?
Roberto Miranda – Os conflitos se dão da seguinte maneira: como hoje é necessário georreferenciar as terras, essas pessoas que vão grilar áreas enviam funcionários para fazer essas coletas de informação. As populações locais que estão minimamente organizadas entram em conflito proibindo que esses funcionários entrem nos territórios, mas muitas vezes são reprimidas duramente com execuções. Sobre o município de Balsas, na minha tese apresento relatos de pessoas que sumiram depois que entraram em conflito com grileiros. As pessoas já moravam naquela localidade, porém os grileiros simplesmente chegaram com um funcionário e disseram que determinadas terras eram deles. As pessoas, por sua vez, se recusaram a sair e depois disso nunca mais foram vistas.
Estou falando de regiões que são mais isoladas, nas quais, se não houver a atuação de movimentos sociais e sindicatos para divulgar o que acontece no campo, não se tem acesso às informações. Para se ter uma ideia, eu fiz meu estudo em uma localidade que fica distante 200 Km da sede do município de Balsas, que são áreas de difícil acesso.
Os conflitos só não foram maiores na área onde pesquisei porque houve a intervenção de instituições internacionais, principalmente da Alemanha e da Itália, que defendem Direitos Humanos e passaram a pressionar o governo do estado do Maranhão a criar assentamentos rurais. Entretanto, o projeto do grupo de grileiros era de povoar a região só com produtores de soja, tornar as populações locais trabalhadores rurais assalariados e criar um município.
Então há muitos conflitos, alguns também relacionados à construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, em que os índios não foram ouvidos sobre as questões relacionadas à cultura local, como a existência de cemitérios indígenas em áreas de alagamento, a destruição de espaços de caça, pesca e moradia históricos da população, elementos que não foram respeitados. Em alguns casos os índios detiveram os engenheiros das empresas que trabalhavam nas obras e ficaram com eles reclusos por um tempo para chamar a atenção da imprensa.
Entretanto, um outro problema em relação a isso é que a mídia massiva coloca as populações locais sempre como vândalos quando fala, por exemplo, do Movimento dos Sem Terra - MST como um movimento social que coloca fogo em pneus, que prejudica o trânsito nas rodovias, que invade prédios; ou quando diz que os índios brasileiros não produzem alimentos e por isso deveriam ter áreas menores para morar para que o Brasil pudesse produzir mais e assim exportar alimentos.
Dessa forma, há um conjunto de interesses que procuram sempre apontar como culpado esses grupos sociais mais vulneráveis. No estado do Pará há muitos casos de violência, mas não temos acesso a essas informações, exceto quando é morto algum missionário, como foi o caso da Irmã Dorothy Stang, que teve uma repercussão internacional muito grande. Mas o tempo todo lideranças de movimentos sociais rurais são executadas no Pará porque estão lutando pela posse da terra.
IHU On-Line – Tem havido denúncias a respeito da compra de terras no Brasil por empresas estrangeiras. Como têm se dado esses negócios no país? Em que implica essa entrada de capital internacional na aquisição de grandes áreas de terras brasileiras?
Roberto Miranda – Essa movimentação se intensifica nos anos 2000, mas as primeiras grandes entradas de capital estrangeiro aconteceram já nos anos 1970, com a companhia de gás italiana Liquigas Group, que conseguiu extensas áreas na Amazônia, e também com o estabelecimento da Volkswagen no país.
No final dos anos 1990 e início dos anos 2000, quando os chineses passaram a investir mais na compra de terras e na produção de grãos para garantir que o país tivesse acesso a alimentos, o Brasil modificou um pouco a legislação, limitando o percentual de terra que cada empresa ou pessoa não brasileira poderia adquirir por município. No entanto, a lógica do capital é o tempo todo criativa na tarefa de maximizar os ganhos. Assim a Agroinvest modificou o agronegócio brasileiro no mercado de comercialização de terras lançando formas distintas de captação de recursos.
No Brasil, se alguém quisesse comprar terras e captar recursos procurava uma instituição financeira, um banco público ou privado para fazer um empréstimo e realizar a operação. A Agroinvest criou um modo de captação de recurso a partir da expectativa de ganhos futuros, como algumas empresas fazem, mas isso não era uma prática comum na produção agropecuária. Dessa forma, em termos de negócios de terras, se abriu a possibilidade de os grandes fundos começarem a investir nessas empresas e indiretamente adquirir territórios.
O Brasil fechou uma porta, ao limitar o percentual de área que os estrangeiros poderiam comprar, mas abriu outra, a partir da possibilidade de investir nessas empresas que produzem grãos ou administram estabelecimentos agropecuários com base nos ganhos futuros no médio e no longo prazo. Desse momento em diante temos muitos casos de fundos internacionais que estão investindo nessas empresas que ampliam o agronegócio brasileiro.
A Agroinvest hoje controla uma região que eles chamam de MAPITOBA, que compreende o Maranhão, Piauí, Tocantins e Bahia. O objetivo é aumentar a produção de grãos, então eles compram empresas locais e vão encontrando outras maneiras de aproveitar as brechas que a legislação brasileira deixa para a compra de terras, de modo que não há um dado oficial que informe quantos hectares de terras no Brasil são propriedade de não brasileiros, porque embora a terra esteja em nome da Agroinvest, quem administra e controla financeiramente não são brasileiros, são fundos de investimento internacionais. Por isso que há dificuldade em saber qual é o tamanho real dessa presença estrangeira. Eu gosto de trabalhar com a seguinte hipótese: a área que a Agroinvest tem não é basicamente área de brasileiros, são empresas ou fundos internacionais que estão investindo nessa nova forma de negócio.

“Não há um dado oficial que informe quantos hectares de terras no Brasil são propriedade de não brasileiros

IHU On-Line - Em suas pesquisas o senhor propõe uma “ecologia política figuracional” para pensar as diversas dimensões dos processos de apropriação dos espaços. Em que consiste essa ideia? O que ela pode esclarecer acerca da questão territorial no país?
Roberto Miranda – Quando me debrucei sobre minha pesquisa, eu me deparei com algumas contradições. Existe uma gama de trabalhos em ecologia política que sempre colocam a questão da justiça social, por exemplo, posicionando os pobres sempre como os prejudicados, que não conseguem se mobilizar, e ao mesmo tempo colocam sempre os grandes como os vilões — não estou dizendo que eles não sejam responsáveis por uma série de coisas. Essas ideias partem do pressuposto que os territórios são exclusivos, ou seja, se há uma localidade onde existem grupos indígenas é como se aquele espaço tivesse que ser obrigatoriamente destes povos. Quando eu me deparei com meu local de pesquisa, percebi que no município de Balsas, especialmente na região do estudo, que é Gerais de Balsas, dentro do recorte histórico dos anos 1970 até os anos 2000, havia pecuaristas, agricultores familiares e produtores de soja. Porém, dentro desses grupos também havia diversificações.
A ideia de ecologia política é interessante porque me permite fazer uma análise mais profunda. Meu objetivo com a pesquisa era saber como o avanço da cultura de soja teve impactos sociais e ambientais naquela localidade, mas faltava um elemento que me permitisse analisar as disputas entre os grupos e as disputas no interior desses grupos. Foi aí que eu lancei mão de Norbert Elias com a noção de poder e figurações sociais, onde a questão central é que mesmo o escravo não é tão desprovido de poder como se imagina, porque se ele deixa de existir, toda a estrutura que se orientou em termos organizativos na escravidão é desarticulada.
Assim me baseei nessa ideia para pensar os conflitos. Eu mapeei três grupos sociais: pecuaristas, sojicultores e agricultores familiares. Em um determinado momento os pecuaristas eram a maioria, em seguida tínhamos os sojicultores aumentando e sempre a agricultura familiar diminuindo. A partir do momento que havia alguma alteração na pecuária, repercutia na sojicultura e na agricultura familiar; seja na ampliação ou diminuição de áreas cultivadas, seja no acesso a políticas de créditos ou agrícolas de um modo geral. Então, decidi elaborar uma “ecologia política figuracional”, que me permitiu ao mesmo tempo analisar questões ambientais, as relações de poder que estavam por trás dessas mudanças ambientais e ainda as disputas entre os diferentes grupos sociais.
O projeto dos sojicultores é aumentar a produção e a produtividade, e para isso eles vão buscar mudar a legislação ambiental, ter mais acesso a crédito e a terra. A ampliação desse projeto repercute na diminuição das áreas de cultivo da agricultura familiar. Como os agricultores familiares possuem uma capacidade de mobilização institucional muito menor do que a dos sojicultores, é aí que se dão os conflitos.
Por exemplo, comparando o Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento – MAPA com o Ministério do Desenvolvimento Social – MDS é possível ver isso claramente. É importante observar as disparidades na quantidade de recursos destinada a cada um dos ministérios, muito maior para o MAPA do que para o MDS, e o número de deputados vinculados ao agronegócio brasileiro que é maior do que o de parlamentares que defendem a agricultura familiar. Essas diferenças também repercutem, fazem parte das disputas.
Eu avalio que com a “ecologia política figuracional” é possível analisar de forma mais ampla a diversidade de relações que acontecem em uma determinada localidade. Ainda há outra variável importante: essa perspectiva me permitiu relacionar questões em nível local, regional, nacional e internacional, e como esses diferentes níveis de organização interferiam no processo produtivo. Em um primeiro momento nos anos 1970 houve uma questão muito local e nacional, porém hoje eu não posso analisar o agronegócio na soja deslocado da perspectiva internacional, porque não somente a exportação, mas o próprio processo produtivo desde o início está completamente ancorado em uma lógica internacional.
A principal contribuição da minha tese foi desenhar uma perspectiva teórica que permitisse compreender a realidade que envolve todo um processo produtivo, social e econômico capitaneado pela soja na Amazônia legal e no Cerrado brasileiro a partir da localidade de Balsas, no sul do Maranhão. Essa pesquisa me permitiu ver a complexidade do contexto e sair do binarismo de que o agronegócio só tem pontos negativos e a agricultura familiar é a solução, situação que percebi em diversos trabalhos. Por exemplo, em um período que a agricultura familiar foi muito forte existia uma área de desmatamento causada por fogo, muito maior do que há hoje. Isso porque o agricultor familiar preparava o solo queimando a vegetação. Esse é um dos argumentos que o agronegócio utiliza para dizer que é mais eficiente no processo produtivo. Não estou querendo defender o agronegócio, meu objetivo foi mostrar situações não romantizadas e apontar questões muitas vezes esquecidas.
Por Leslie Chaves
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Transgênicos: enquanto o mundo recusa, o Brasil aprova. Entrevista especial com João Dagoberto dos Santos


“Quando a empresa fala que só irá plantar uma pequena porcentagem de 2% a 3% de eucalipto transgênico, nós estamos falando de 20 a 30 mil hectares”, adverte o engenheiro florestal.

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  • 19/03/2008 - Pecuária, soja e o avanço do desmatamento na Amazônia. Entrevista especial com Tatiana de Carvalho
  • 22/05/2013 - Plantação de cana-de-açúcar na Amazônia Legal: “O ciclo se repete com novos desmatamentos”. Entrevista especial com João Camelini
  • 13/02/2008 - Soja ganha terreno na Amazônia Legal
  • 06/06/2011 - Conjuntura da Semana. Amazônia: A última fronteira de expansão do capitalismo brasileiro
  • 26/03/2015 - Depois de desmatamento zero, soja na Amazônia precisa de ilegalidade zero

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