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sexta-feira, 23 de outubro de 2015

PROVINCIANISMO - COLONIZADOS SOMOS

 

*"(...)O provincianismo consiste em pertencer a uma civilização sem tomar parte no desenvolvimento superior dela — em segui-la pois mimeticamente, com uma subordinação inconsciente e feliz.(...)" Fernando Pessoa

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ser bairrista, suburbano, proletário, subdesenvolvido, provinciano...colonizado, fazer blogs "inspirados" em modelos norte americanos ou europeus, desses blogs comerciais, probloggers, que falam de moda, de decoração...lifestyle!! rsrsrs...ou por exemplo, um programa talk show pasteurizado numa grande rede de tv...nossa, como nós colonizados provincianos somos estranhos!...

o meu provincianismo é...!?... se eu não fosse provinciana nem estaria aqui escrevendo e postando isto, afinal, pra que estou aqui?... que dureza...quem sabe um dia ele termine... e o blog, idem.

Nadia Gal Stabile - 23 10 2015


http://www.citador.pt/textos/o-provincianismo-portugues-i-fernando-pessoa

O Provincianismo Português (I)

Fernando Pessoa


Se, por um daqueles artifícios cómodos, pelos quais simplificamos a realidade com o fito de a compreender, quisermos resumir num síndroma o mal superior português, diremos que esse mal consiste no provincianismo. O facto é triste, mas não nos é peculiar. De igual doença enfermam muitos outros países, que se consideram civilizantes com orgulho e erro.
O provincianismo consiste em pertencer a uma civilização sem tomar parte no desenvolvimento superior dela — em segui-la pois mimeticamente, com uma subordinação inconsciente e feliz. O síndroma provinciano compreende, pelo menos, três sintomas flagrantes: o entusiasmo e admiração pelos grandes meios e pelas grandes cidades; o entusiasmo e admiração pelo progresso e pela modernidade; e, na esfera mental superior, a incapacidade de ironia.
Se há característico que imediatamente distinga o provinciano, é a admiração pelos grandes meios. Um parisiense não admira Paris; gosta de Paris. Como há-de admirar aquilo que é parte dele? Ninguém se admira a si mesmo, salvo um paranóico com o delírio das grandezas. Recordo-me de que uma vez, nos tempos do "Orpheu", disse a Mário de Sá-Carneiro: "V. é europeu e civilizado, salvo em uma coisa, e nessa V. é vítima da educação portuguesa. V. admira Paris, admira as grandes cidades. Se V. tivesse sido educado no estrangeiro, e sob o influxo de uma grande cultura europeia, como eu, não daria pelas grandes cidades. Estavam todas dentro de si".
O amor ao progresso e ao moderno é a outra forma do mesmo característico provinciano. Os civilizados criam o progresso, criam a moda, criam a modernidade; por isso lhes não atribuem importância de maior. Ninguém atribui importância ao que produz. Quem não produz é que admira a produção. Diga-se incidentalmente: é esta uma das explicações do socialismo. Se alguma tendência têm os criadores de civilização, é a de não repararem bem na importância do que criam. O Infante D. Henrique, com ser o mais sistemático de todos os criadores de civilização, não viu contudo que prodígio estava criando — toda a civilização transoceânica moderna, embora com consequências abomináveis, como a existência dos Estados Unidos. Dante adorava Vergilio como um exemplar e uma estrela, nunca sonharia em comparar-se com ele; nada há, todavia, mais certo que o ser a "Divina Comédia" superior à "Eneida". O provinciano, porém, pasma do que não fez, precisamente porque o não fez; e orgulha-se de sentir esse pasmo. Se assim não sentisse, não seria provinciano.
É na incapacidade de ironia que reside o traço mais fundo do provincianismo mental. Por ironia entende-se, não o dizer piadas, como se crê nos cafés e nas redações, mas o dizer uma coisa para dizer o contrário. A essência da ironia consiste em não se poder descobrir o segundo sentido do texto por nenhuma palavra dele, deduzindo-se porém esse segundo sentido do facto de ser impossível dever o texto dizer aquilo que diz. Assim, o maior de todos os ironistas, Swift, redigiu, durante uma das fomes na Irlanda, e como sátira brutal à Inglaterra, um breve escrito propondo uma solução para essa fome. Propõe que os irlandeses comam os próprios filhos.   Examina com grande seriedade o problema, e expõe com clareza e ciência a utilidade das crianças de menos de sete anos como bom alimento. Nenhuma palavra nessas páginas assombrosas quebra a absoluta gravidade da exposição; ninguém poderia concluir, do texto, que a proposta não fosse feita com absoluta seriedade, se não fosse a circunstância, exterior ao texto, de que uma proposta dessas não poderia ser feita a sério.
A ironia é isto. Para a sua realização exige-se um domínio absoluto da expressão, produto de uma cultura intensa; e aquilo a que os ingleses chamam detachment — o poder de afastar-se de si mesmo, de dividir-se em dois, produto daquele "desenvolvimento da largueza de consciência" em que, segundo o historiador alemão Lamprecht, reside a essência da civilização. Para a sua realização exige-se, em outras palavras, o não se ser provinciano.
O exemplo mais flagrante do provincianismo português é Eça de Queirós. É o exemplo mais flagrante porque foi o escritor português que mais se preocupou (como todos os provincianos) em ser civilizado. As suas tentativas de ironia aterram não só pelo grau de falência, senão também pela inconsciência dela. Neste capítulo, "A Relíquia", Paio Pires a falar francês, é um documento doloroso. As próprias páginas sobre Pacheco, quase civilizadas, são estragadas por vários lapsos verbais, quebradores da imperturbabilidade que a ironia exige, e arruinadas por inteiro na introdução do desgraçado episódio da viúva de Pacheco. Compare-se Eça de Queirós, não direi já com Swift, mas, por exemplo, com Anatole France. Ver-se-á a diferença entre um jornalista, embora brilhante, de província, e um verdadeiro, se bem que limitado, artista.
Para o provincianismo há só uma terapêutica: é o saber que ele existe. O provincianismo vive da inconsciência; de nos supormos civilizados quando o não somos, de nos supormos civilizados precisamente pelas qualidades por que o não somos. O princípio da cura está na consciência da doença, o da verdade no conhecimento do erro. Quando um doido sabe que está doido, já não está doido. Estamos perto de acordar, disse Novalis, quando sonhamos que sonhamos.

Fernando Pessoa, in 'Portugal entre Passado e Futuro'
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http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/ser-provinciano-e/

Ser provinciano é…

Ou: qual a semelhança entre Danuza Leão e a vereadora Lucinha?
Francisco Bosco
Um dos motivos que fizeram o então candidato Fernando Gabeira perder as últimas eleições para prefeito do Rio de Janeiro foi sua declaração infeliz sobre a vereadora Lucinha, que, segundo Gabeira, teria uma “visão suburbana” a respeito da instalação de um lixão na Zona Oeste da cidade. A infelicidade da declaração consiste em ter ela propiciado um aproveitamento político por parte do adversário, que por seu intermédio transformou Gabeira em “candidato da elite”, preconceituoso, “contra o subúrbio” etc. Mas, bem compreendida – e sem entrar no mérito de sua adequação à realidade, que não tenho como julgar, por desconhecer as posições políticas da vereadora em questão -, a declaração de Gabeira não carrega qualquer preconceito. Ele empregou a expressão “visão suburbana” no sentido de “visão provinciana”, isto é, uma visão limitada, demasiadamente local e contingencial de um problema. Nesse sentido, não se tratava de um preconceito contra determinada origem sócio-geográfica, mas sim de um juízo político contra uma vista com antolhos. Teria sido melhor, portanto, empregar a palavra “provinciana”, que já traz imediatamente em seu sentido corriqueiro esse deslocamento do geográfico para o existencial: ser provinciano não é um problema de origem, é uma forma de ver o mundo. Que forma?
No final do ano passado, Danuza Leão concedeu uma entrevista à Folha de S.Paulo, por ocasião do lançamento de seu livro Fazendo as malas, uma espécie de relato de viagens contendo reflexões sobre temas como moda, elegância, consumo, dinheiro etc. A certa altura da entrevista, ela comenta, em tom de superioridade, que em qualquer lugar do mundo pede-se um copo de vinho ou champanha – “un verre de vin”, “a glass of wine”. “Só no Brasil existe o hábito de pedir uma taça de vinho, ou uma tacinha, pior ainda”. É curioso que um livro que se pretenda tão cosmopolita contenha uma visão tão provinciana. Devemos começar nos perguntando: por que pedir uma taça de vinho seria pior que pedir um copo de vinho? Afinal, costuma-se beber vinhos em taças, não em copos. Na língua portuguesa, a diferença é clara: taças têm haste e base, possuem uma forma mais delicada; copos são geralmente cilíndricos, desprovidos de haste ou asas, têm uma forma mais simples. Na língua inglesa, entretanto, não existe um correspondente perfeito para taça. “Glass” significa também, e principalmente, copo. Se se procura pelo verbete “taça” num dicionário português-inglês, a primeira palavra que aparece é “cup”. Mas “cup” significa antes xícara, como atestam as expressões “cup of tea” e “cup of coffee”. Em seguida registra-se “goblet”, que designa, com efeito, um recipiente para beber com haste e base, sem asas, mas se trata de uma palavra inusual, e que parece remeter a formas arcaicas da taça (em outros materiais que não o vidro ou o cristal). No francês existe, é verdade, a palavra “coupe”, mas que, salvo engano, costuma designar antes a taça, de boca mais aberta, e não abaulada, em que se bebe, por exemplo, o drinque marguerita. Assim, a falta de uma palavra coloquial para designar especificamente o objeto taça, em sua forma específica de taça para vinho, que não é a mesma que de taça para champanhe [flûte, em francês], por exemplo, seria a provável razão para os falantes de língua inglesa e francesa empregarem as palavras “verre” e “glass”, que são menos precisas.

Ponto de vista do colonizado
Não se trata de convocar aqui um grande conhecimento das línguas inglesa e francesa, portanto o que digo acima pode conter alguma imprecisão, mas esse não é o ponto principal. Seja como for, o fato é que, ao pedir uma “taça de vinho”, e não um “copo de vinho”, nós, brasileiros, estamos sendo apenas literais, chamando as coisas pelo nome que lhes foi dado em nossa língua. Menosprezar esse comportamento é assumir o ponto de vista do colonizado, que é um outro nome para provinciano. Pois, uma vez que chamamos um objeto pelo seu nome correto em nossa língua, por que isso seria pior do que o modo como falantes de língua inglesa e francesa o fazem, a não ser pelo simples fato de eles serem americanos, ingleses, franceses etc, e nós, brasileiros? Esse é o princípio do pensamento colonizado: o que fazemos aqui é pior do que o que os “colonizadores” fazem lá pelo simples fato de que o fazemos aqui. E isso é um modo provinciano de pensar porque incorre num localismo às avessas (mas ainda um localismo): a perspectiva adotada é a do suposto centro, de onde emana todo o comportamento correto. Ao passo que o cosmopolitismo seria antes da ordem de uma relativização e de um descentramento. E, pior ainda (agora sou eu quem diz), ao falar em tom superior e blasé da forma diminutiva “tacinha”, o que se está a menosprezar é toda uma inflexão linguística de dimensão sócio-cultural, ou seja, nossa conhecida propensão às formas afetivas da língua. Aqui não é apenas um caso concreto que é ridicularizado, mas um traço cultural importante e definidor. “Tacinha” é desprezível, no limite, porque o Brasil é desprezível. Quem precisa dessas dicas de elegância?
De modo simetricamente inverso, um poeta e ensaísta, em livro recente (não vou dizer o nome de um e de outro apenas porque não quero lhes dar excessiva importância), faz o elogio da província pela província. Esse tipo curioso de petição de princípio, sócio-geográfico-cultural, obviamente incorre numa segunda petição de princípio que é como que sua consequência (i)lógica: o menosprezo do “centro” pelo “centro”. Assim, o ensaísta em questão, defendendo uma experiência poética do espaço urbano, afirma que “só é possível ter uma compreensão real da vida das casas se fugirmos às zonas centrais, onde tudo já foi por demais pensado e sentido. (…) Tudo que se possa viver nesses lugares, por exemplo, Ipanema, no Rio de Janeiro, será sempre a partir de imagens repetidas e caducas”. Portanto, “é preciso pensar o céu dos
lugares deslocados de qualquer privilégio de centralidade, dos lugares ‘caóticos’ e mal-iluminados”. Esses lugares, o ensaísta os chama de “bairros autênticos”, que seriam, é claro, “os da Zona Norte, Centro, e alguns, raríssimos da Zona Sul [do Rio de Janeiro]”. Assim, a Zona Sul (“centro”, para o ensaísta) é um lugar de “bairros-estereótipos”, e isso impediria uma experiência autêntica em seus domínios. Mas isso não é o mesmo que dizer que não se pode ter uma experiência autêntica no Museu do Vaticano, no Louvre ou na Tate Gallery, ou mesmo em Roma, Paris ou Londres? E, inversamente, que basta estar em qualquer subúrbio de qualquer cidade do mundo para se ter tal experiência? Ora, o que determina um estereótipo é antes o olhar do que o objeto. Uma pessoa pobre de espírito pode ler Stendhal e não ter nenhuma experiência; uma pessoa com grandeza de espírito pode olhar de modo novo para um objeto pisado e repisado. Mas isso que, diante desse argumento, aparece como um mero equívoco de perspectiva, no caso efetivo que estamos analisando se revela, no meu entender, um problema sócio-existencial: o privilégio do subúrbio pela sua condição de suburbaneidade, o menosprezo ao “centro” pela sua condição de centralidade. É uma espécie de provincianismo esclarecido. Creio que isso não chega a formar critérios éticos – políticos, estéticos, poéticos – que possamos afirmar como dignos de orientar nossas ações no mundo.

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