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domingo, 16 de agosto de 2015

O ACOBERTAMENTO JURIDICO-POLICIAL DAS CHACINAS

 
 
Carlos A. Lungarzo

15/06/2015

 

Talvez a expressão “prende e arrebenta”, usada para caracterizar a PM de quase todos os estados da União, deva ser completada com um slogan mais atual: “arrebenta sem prender”, pois o tempo é curto, o espaço é escasso, a polícia tem cada vez mais tarefas, os salários são baixos, e o furor vingativo tem pressa. Perder o prazer de torturar um prisioneiro pode ser compensado pela quantidade: arrebentar 18, 20 ou 30 pessoas de uma vez, mesmo pulando a fase de “prender + torturar” pode compensar.

Massacres Prisionais

As polícias dos estados mais populosos, seus chefes, os magistrados, os políticos, os empresários que financiam a repressão, os fabricantes de armas, e outros atores sociais entenderam a vantagem da velocidade há muito tempo. O massacre de Carandiru foi um dos piores democídios carcerários da história moderna, apenas comparável com alguns outros:

1200 assassinados ¾ Líbia, prisão de Abu Salim, 26/6/1996;

500 aprox. ¾ Síria, prisão de Tadmor 27/6/80;

244 ¾ Peru, prisão de El Frontón, 18/7/1986;

Os outros extermínios de prisioneiros que ficaram famosos na história do terror de estado são menores: Sri Lanka (Tadmor), EEUU (Ática), Venzuela (Sabaneta – quase igual: 108 vitimas), Argélia (Serkadji).

Um caso pouco conhecido foi Tajikistan, na prisão de Khujandi, onde foram massacrados cerca de 100 prisioneiros, em 17 de abril de 1997. Talvez este caso seja pouco divulgado porque os agentes da repressão e seus comunicadores não gostam de “palavras difíceis”.

De qualquer maneira, a maioria dos grandes massacres prisionais são numericamente inferiores ao de Carandiru, mesmo se aceitarmos que 111 foi a quantidade real. Por outro lado, salvo nos países islâmicos, os conflitos prisionais no Brasil (tanto no Rio, como em SP e alguns outros lugares) estiveram entre os poucos em que o massacre não foi precedido por qualquer forma de negociação.

Fogo Verbal

Nem todo mundo tem oportunidade de atirar com armas de verdade. Muitos outros não querem, porque isso dá má imagem e é impróprio de pessoas distintas. Foi por isso que quando Anistia Internacional publicou seu relatório sobre a violência policial no Rio de Janeiro, os dignitários de diversos poderes limitaram-se ao fogo verbal.


Desta vez, o secretário de segurança do RJ não estava irônico nem pernóstico, mas, aparentemente preocupado.

Já o MPRJ (cujo porta voz não é indicado nas notícias) foi bem mais dramático. Quero destacar um parágrafo apenas de sua diatribe. Ele se refere à dificuldade para processar os policiais suspeitos de crimes.

De acordo com MPRJ “a situação é ainda mais grave quando se trata de criminosos que ostentam a qualidade de policiais, agentes públicos que cometem os mesmos crimes que juraram combater".

Este tipo de conversa, recorrente desde há séculos (pelo menos desde o 1º Império Napoleônico) no lenga-lenga das instituições repressivas, coloca um interrogante que ninguém parece objetar, talvez porque todos acreditem entender.

O que significa

“criminosos que ostentam a qualidade de policiais”

?

Criminoso designa (salvo melhor juízo das colendas autoridades) alguém que executa crime: a infração de tipo mais alto, classificada no CP em diversos casos: contra a pessoa, contra a incolumidade, contra a honra......

Ora, ser policial é uma profissão, como ser médico, professor, escritor, engenheiro, etc.?

Por que, quando um policial comete um crime se diz que ele é um criminoso que usurpou a função de policial? Não é verdade, acaso, que alguns dos que cometem crimes comuns têm profissão? Se um físico matasse sua esposa por ciúmes, deveríamos dizer que é um “criminoso que ostenta a condição de cientista”, ou que “é um cientista criminoso”?

Isto não é uma questão de nomes, nem frescura acadêmica. Quando existe uma atrocidade grande, como a morte dos 18 jovens em SP no dia 14 de agosto, costuma a falar-se dos “maus policiais”. Esta perspectiva, de pensar que os policiais que cometem crimes são “maus como policiais”, ou, então, que não são verdadeiros policiais e apenas ostentam essa condição, conduz a uma espécie de teoria de infiltração.

Esta teoria, confusa como toda teoria conspiratória, tem vários pontos fracos:

Primeiro: os policiais que fizeram numerosos megacídios, como os de Carandiru, Vigário, Candelária, Carajás, Amazonas (recentemente), etc. etc. etc., os que mataram a Amarildo e outros milhares, entraram na polícia normalmente, tem cadastro normal, uniforme (se são militares), arma regulamentar, pertencem a uma corrente de mandos, dão ordens a seus subordinados e recebem ordens dos superiores, submetem-se à disciplina institucional... Eles não ostentam uma condição que não possuem. São policiais normais e obedecem a sua instituição e às instâncias de poder superiores.

Por que se diz que essas pessoas ostentam qualidade de policiais, ou, segundo um linguajar mais simples, são falsos policiais? Eles são, na verdade, policiais autênticos, oficiais, reconhecidos. Não são para-policiais, nem ex-policiais. Quando cometem crime, são policiais criminosos, mas não “falsos policiais”.

Parece que esta metáfora de “falsos policiais” pretende ocultar que as instituições repressivas em seu conjunto possuem uma estrutura truculenta que não é casual, nem constitui um excesso: está na base da tradição fascista e escravocrata de alguns estados. As instituições não são seres vivos, nem possuem vontade, como acham os fascistas ao falar de pátria, nação, espírito do povo, e assim em diante.

Uma instituição pode ser qualificada por seus membros, seres vivos e (segum dizem) pensantes. Como nenhuma instituição têm todos os membros equivalentes, a instituição só pode ser caracterizadas moral, social o juridicamente por grupos de seus membros. Usar a maioria é um recurso habitual, nem sempre válido, mas, em princípio, razoável.

Aí vem a segunda falácia: os policiais que cometem atrocidades, ou seus cúmplices, ou os que os aplaudem, são minoria.

Serão? Ninguém investiga o bastante para oferecer uma prova disso.

Segundo: Se os que matam sistematicamente, torturam, arrebentam, são os “maus policiais”, por que a instituição não trabalha apenas como os “bons policias”, seja isso o que for?

Costuma dizer-se (e isso insinua o MPRJ) que é difícil responsabilizar os policiais estaduais, sejam civis ou militares, porque as provas sempre são frágeis. Ora, se os policiais “maus” são uma ínfima minoria, como sempre se argumenta, como é possível que a enorme maioria de policiais “bons” não preste depoimento contra eles? Ou alguém pode, de boa fé, acreditar que chacinas gigantescas possam ser mantidas em sigilo dentro da própria corporação ou ignoradas pelos operadores jurídicos?

É bem conhecido a escala mundial, e a Anistia Internacional bem como HRW e as próprias ONGS brasileiras de DH o têm denunciado, que os MPs e os tribunais de justiça, especialmente o de SP, são lenientes (em realidade, eles deveriam dizer entusiastas) com a repressão truculenta.

 Quando foi julgado o carrasco de Carandiru, a TJSP permitiu que seu advogado levasse os membros Conselho de Sentença à prisão, como se fosse uma visita turística, para “fazer sua cabeça”, mostrando os “horrores” cometidos pelos assassinados. Como é bem conhecido, o júri votou pela condenação, o que prova que perceberam a brutalidade policial e não a dos detentos. Mesmo assim, o tribunal deu um jeito para forjar a absolvição.

Aliás, será que um especialista em segurança, um delegado, um promotor pode ignorar a quase impossibilidade de arrolar testemunhas contra a polícia? Como disse a um jornalista uma moradora de uma comunidade de SP, “a gente não quere que continuem matando nossos filhos?

Este não é comentário pejorativo. É mais que justo que ninguém queira morrer ou expor seus filhos, por um testemunho que será ignorado por juízes e promotores, e que não modificará nada na situação. Quando os operadores jurídicos estimulam as pessoas a denunciar policiais “maus”, o objetivo é mapear a distribuição geográficas dos que assistiram à chacina, e ver como neutralizá-los.

Há numerosos casos disso. O bárbaro linchamento (ou 2º ou 3º do país em décadas) ocorrido numa favela de Guarujá há um ano e meio, instigado por um blog da região, por um “Wanted” policial e por mensagens de ódio de pastores e apresentadores. Esse crime foi  assistido por mais de 50 pessoas. Onde estão agora os réus? As mais recentes atualizações dos sites jornalísticos não dizem nada sobre isso. Tudo foi arquivado.

As causas da barbárie policial são muitas, e ela é muito comum nos países subdesenvolvidos (perdão, “emergentes”) e em alguns já “emergidos” como os EUA, a Espanha e a Itália, porém em proporções muito menores. Mas, o Brasil está na vanguarda no Ocidente, não apenas em números absolutos (o que serve para que alguns argumentem que os crimes policiais são maiores porque o país é maior que outros), mas também em proporção.

Propostas

Junto com o relatório de AI, houve outro fato importante: a visita ao Brasil de Juan Méndez, o relator da ONU para DH. http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/08/relator-da-onu-diz-haver-alto-grau-de-tortura-presos-interrogados-no-brasil1.html

Veja também o blog Sarau para Todos, de Nádia Stabile


 



Todo o que se faz contra esta barbárie é necessário, mas não suficiente. É necessária uma conexão internacional entre as vítimas da polícia. Em vários países desenvolvidos, há numerosas organizações e redes formadas por vítimas da polícia, especialmente nos EUA, onde a barbárie repressiva é muito grande para um país industrializado. Veja, entre outros:





O seguinte site têm vários links de ONGs internacionais que promover a cooperação entre vítimas das polícias em diversos países. Algumas delas são extremamente ativas e possuem alguma capacidade de pressionar a opinião pública de seus países:


O futuro promete ser duríssimo, embora ninguém possa predizer com certeza. O país é cativo de uma máfia política que consegue preparar golpes de estado com baixa reação da sociedade. A justiça condena seletivamente políticos, com base em razões ideológicas. O linchamento é abertamente propagandeado, como aconteceu com o horroroso esquartejamento de Guarujá, aplaudido por alguns apresentadores/as. Os juízes rejeitam ações de grupos afro-brasileiros que pretendem proteger-se do terror religioso.

A poluição (quem falou “lavagem”? tomara fosse) de cérebro feita pelo rádio e a TV (especialmente a mais trash), incentiva o ódio social e religioso. Como se tudo isto fosse pouco, defensores do linchamento, promotores da teocracia e similares continuam angariando cargos e se candidatando a outros, inclusive os mais altos do Estado.

Os legisladores, em sua maioria, defendem ou aceitam o racismo, a superstição, a homofobia, a misoginia, a militarização dos civis, as milícias de “gladiadores”, a incriminação de crianças e a dissolução da justiça do trabalho.

O cinismo das autoridades repressivas e seus numerosos cúmplices é tão grande que produz pouca indignação. Até os ativistas mais militantes em DH às vezes pensamos: “Será que vale a pena? Não é melhor esperar a extinção da espécie humana?” Mas esta posição blasè é negativa. Este niilismo é a melhor ajuda para os assassinos e reforça a barbárie obscurantista, porque parece que aceitássemos pacificamente o “destino”. O mundo não acabará amanhã, e para poder viver os séculos ou, talvez, milênios que ficam à espécie, é necessário tornar a sociedade minimamente humana.

 

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