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domingo, 20 de julho de 2014

Rubem Alves morre aos 80 anos - Marcelo Novaes escreve

por Marcelo Novaes - 19 de julho de 2014

Em março de 2010, passei uma tarde na casa de Rubem Alves, em Campinas. No dia de sua morte, colocarei aqui um pequeníssimo depoimento, que será ampliado amanhã no blog Turquia. Apesar de ter sido um encontro só, foi denso, e eu o compararia a dois encontros que tive com Eleonora Marino Duarte, a Lola, que é minha amiga até hoje, encontros havidos em 2009 e que, tenho certeza, nenhum de nós se esquece.
Uma professora de literatura da Unicamp fez a ponte entre mim, outro poeta e Rubem Alves. Ao chegar na casa dele, ele estava dormindo, fazendo a "sesta". Não tenho a menor dúvida de que ele não nos esperava e, ao ver o grau de confusão de tantos professores universitários, não duvido que o "desencontro" tenha se dado por má comunicação da professora. Foi interessante chegar no dia errado, inclusive para flagrar a espontaneidade assim gerada. E para vivê-la.
Rubem Alves é [e faço questão de manter o verbo no presente] um cara sem afetações. Não vi isso em professores acadêmicos, e não coloco aqui nenhuma exceção, depois de conhecer bastante muitos professores acadêmicos. Ao dar-lhe meu livro de juventude, Cidade de Atys, escrito antes dos meus 26 anos, ele disse: "bastante herético". Vimos que somos, ambos, anticlericais, mas profundamente religiosos. Rubem Alves era teólogo, além de psicanalista, e não lhe agradava o clericalismo, bem como a agenda política atrelada às religiões. Não o imaginem "ateu", longe disso. Eu lhe falei de cristãos que me interessavam, dos blogs que tinha na época [muitos desfeitos de lá pra cá], e ele viu que minha espiritualidade era baseada em cristãos neoplatônicos [Duns Scotus, Escoto Erígena] e nos místicos apofáticos [Nicolau de Cusa e Meister Eckart], além do Budismo. Repito: Rubem Alves era profundamente religioso, ainda que anticlerical.

Podia, sim, elogiar um padre destacado do clero [Padre Léo, por exemplo], mas não endossava a institucionalizaçãoa religiosa. Assim como poderia desmontar os males do fundamentalismo, mostrando o absurdo de aplicar as regras do Levítico para os dias atuais. Fez isso em artigo da Folha de São Paulo. Ainda no tocante à religião, brincou achar o "caqui" a fruta do Éden, e mostrou um quadro que fez, com folhas secas do caqui. Comentou a sobrevivência de sementes de caqui à radiação de Hiroshima, o que para ele era simbólico-emblemático de sua associação.
Era também educador, como todos sabem, com ênfase no "aprender a aprender". Eu diria, um Krishnamurti tupiniquim, sabendo ouvir e fazer perguntas que despertassem mais o conhecimento latente. Maiêutico, portanto.
Tomamos café numa padaria, acompanhado da versão local de um biscoito de polvilho mais consistente, de cujo nome, infelizmente, não consigo me lembrar. Falava-me de encontros que promovia em sua casa, onde os já idosos encerravam as leituras e conversas com "pão e sopa". Nada mais apropriado. Sei que eles liam bastante Guimarães Rosa, a inspiração para o tipo de tertúlia que ele recepcionava.
De lá para cá, muita água rolou. Conheci saraus e deles me despedi, porque me agradam conversas a dois, a três, a cinco, ou aquele ambiente caseiro que os poetas que conheci não sabem produzir em saraus. Fui a dezenas deles para decidir que não quero "mais do mesmo". Enxuguei meus blogs. Rubem Alves decidiu encerrar sua coluna na Folha quando descobriu que "já tinha dito o bastante". Era um grande "escutador" e "provocador de relatos", além de contador de histórias. No passado, achara que dizia as coisas para se encaminhar para o silêncio, mas, de fato, assumia que a perspectiva de um grande silêncio lhe parecia "barulhenta", "assustadora" demais, como na expressão de Nelson Rodrigues: "Fez-se um silêncio ensurdecedor". Em Rubem Alves, paradoxos não eram estilo, nem boa dramaturgia: eram uma constatação da vida. Um modo de ser fiel aos fatos e a si mesmo. Daí suas "deserções" do mundo institucionalizado: ex-teólogo, ex-psicanalista, valorizador das passagens e dos "fracassos" [fracassos corretos, diria eu, como o de Van Gogh], contra nossa idolatria cultural dos "sucessos". Dizia ele, textualmente, e assim me disse: "Nunca conheci nenhum bem-sucedido que fosse interessante".
Fique em Paz, Rubem Alves, porque a Paz é para os bons, e vc é bom. Como na tabela periódica, cada qual ruma para o "peso atômico" em que seus sentimentos de amizade, justiça, valor e amor pendem. Se estiveres entre seus iguais, este lugar merece o nome de Céu. Ou uma das boas casas do Pai.
Abraços fortes e conforto à família.

 Marcelo Novaes, 19/07/2014.

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