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domingo, 17 de junho de 2012

Pinheirinho: “Relatório” da OAB




Pinheirinho: “Relatório” da OAB
Carlos Alberto Lungarzo
Prof. Tit. (r) Univ. Est. Campinas, SP, Br.
17 de junho de 2012
Durante os últimos quatro meses, a tragédia de Pinheirinho foi ignorada pela mídia, que apenas lhe concedeu alguma atenção logo após o massacre, e o fez só por causa de que as redes sociais e parte da mídia internacional já tinham denunciado a barbárie. Neste último período, os juristas, políticos e operadores de direito progressistas, os ativistas de direitos humanos, os voluntários e as pessoas diretamente vinculadas às vítimas da chacina, foram os únicos em trabalhar intensamente sobre o monstruoso episódio.
Mas, nestes dias, uma subseção da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) veio se pronunciar, emitindo um relatório que, segundo seus autores, seria o produto de uma “investigação” feita por eles no Caso Pinheirinho. Entretanto, antes de continuar, quero fazer algumas observações sobre a OAB, porque talvez a complexa estrutura da Ordem não seja clara para todos.

“Saudável” Diversidade

Em qualquer profissão, ofício ou atividade sistemática para ganhar a vida, há pessoas das mais diversas ideologias, valores morais e crenças sociais. Há médicos, engenheiros, cientistas, técnicos, etc., tanto de posições reacionárias, como centristas ou progressistas.
Esta diversidade é muito maior ainda no campo do direito. Advogados podem ser agentes públicos e exercer seus cargos de maneira bem diferente uns dos outros: compare Gilmar Mendes com Marco Aurélio de Mello, por exemplo. Embora alguns tribunais como o de São Paulo sejam muito homogêneos, outros, como o STF neste momento, percorrem um espectro que vai da ultra direita a uma posição de tênue centro-esquerda.
Ainda, uma minoria de magistrados monocráticos está agrupada em movimentos que são claramente de esquerda, como os Juízes pela Democracia. Isso acontece também com o MP, como é o caso do promotor Márcio Sotelo Felippe, que encabeça a luta pelas vítimas de Pinheirinho.
Esta variação é maior em advogados particulares. Uma minoria, à qual pertence, por exemplo, o advogado do caso Battisti, Luís Roberto Barroso, está comprometida com os direitos humanos e a legalidade democrática. Outros, também em minoria, se ocupam de defender presos políticos. A maioria, formada por profissionais convencionais, procura recursos para viver de acordo com suas aspirações, para o qual assume tarefas lucrativas. Fechando o espectro, estão aqueles que defendem criminosos de estado, torturadores, genocidas, lavagem de dinheiro, jovens vândalos de famílias ricas, supremacistas raciais e assim em diante.
Observe que quase todos eles devem passar a prova da OAB e estar filiados à Ordem. Portanto, não há uma ideologia uniforme na OAB, embora à de direita seja a mais frequente.
A OAB é uma corporação herdeira do bacharelismo português (por sua vez, remanescente das altas guildas medievais), que foi deixada como herança patriótica em 1843, através do Instituto de Advogados do Brasil. Coerente com sua índole imperial e corporativa, a OAB recebeu status oficial em 1930, do futuro ditador Getúlio Vargas, expoente, numa época posterior, de um fascismo que “temia dizer seu nome”.
Observe que, mesmo num país tão fortemente corporativo como os EEUU (onde a democracia é uma simples luta de lobbies) a Barra (bar) de advogados tem poder limitado. É obrigatória a associação em muitos estados, mas não em todos, e a tendência parece ser a de eliminar essa exigência de outras unidades da união.
Atualmente, pertencer à Barra é obrigatório nas seguintes unidades, das quais 2/3 são rurais, primitivas, e algumas etnofóbicas:
New HampshireNovo MéxicoDakota do Norte, Oklahoma, Oregon, Rhode Island, Carolina do Sul, Dakota do Sul, Texas, Utah, Virgínia, Estado de Washington, West Virginia, Wisconsin, Wyoming, Distrito de Columbia, Ilhas Virgens, Guam e Ilhas Marianas do Norte. O carácter obrigatório da Ordem dos Advogados de Porto Rico foi eliminado em 2009 pela legislatura local.
Sempre tive dificuldade para obter uma boa explicação sobre qual é o status da OAB no Brasil. Todos me dizem que não é um órgão público federal, mas tampouco parece ser uma entidade privada, pois está reconhecida oficialmente como árbitro para determinar quem sabe e quem não sabe “ciências” jurídicas. Tampouco é clara qual seja sua função: se o ensino do direito é ruim, como todos dizem, o problema poderia ser resolvido elevando o nível das Universidades.
A explicação mais convincente é de que atua como um enorme super lobby, para controlar a atividade jurídica no país em todos os sentidos: trabalhos, concursos, nomeações, etc., e servir de opinião pública privilegiada. Então, os interesses em disputa dentro dela formam uma teia complexa, que dificulta perceber as nuances ideológicas, quando aparecem.
Entretanto, em alguns casos estas diferenças são evidentes. No caso Battisti, as autoridades federais da Ordem nos apoiaram sempre com assessorias e com declarações e manifestos públicos. Já outras seções se mostraram indiferentes, e várias “torceram” fortemente pela extradição. Em alguns estados, membros destemperados da ordem nos chamaram de “terroristas” e criminosos. Mas, considerando apenas os setores mais ativos da ordem, parece que a moderação, mesmo de um ponto de vista conservador, é o mais dominante.
Por isso, o manifesto divulgado pela 36ª seção de OAB (correspondente à comarca de São José dos Campos) não deve gerar repulsa contra toda a OAB, pois há várias seções da Ordem, e a própria presidência, que repudiaram o massacre. O então presidente da comissão de direitos humanos da OAB  de São José dos Campos, Aristeu César Pinto Neto foi o primeiro que denunciou com detalhe as mortes provocadas pela polícia durante a repressão na comunidade. (Vide)
O testemunho de Pinto Neto foi o mais importante para que pudéssemos caracterizar os crimes de Pinheirinho como “crimes de lesa humanidade”, tal como previsto no Estatuto do Tribunal Penal Internacional. (É verdade que, no massacre, existem muitas outras causas para qualificar o caso de Pinheirinho como crime massivo aberrante, mas esta é a mais forte). Neto denunciou o lançamento de gases em barracas fechadas onde estavam empilhados os deslocados, o que depois foi confirmado por povoadores que ajudaram a levar a um hospital uma criança asfixiada. Também, Neto denunciou o uso sistemático de bombas no edifício fechado e superlotado da Igreja, cujo efeito não foi possível saber, pois os resultados foram sonegados.
Além disso, o presidente da OAB, Ophir Cavalcante, condenou a ação policial na época da carnificina de Pinheirinho. Vide.
Pouco depois (em 27 de janeiro) Neto também fez declarações profundas e rigorosas no excelente blog de Eduardo Guimarães, mostrando o caráter inusitado de uma repressão de tamanho impacto. (Vide) e participou recentemente em vários eventos relacionados com a denúncia do massacre, um deles acontecido na USP. Vide.
Isto mostra uma das caras da OAB, mas no mesmo incidente apareceu a outra, a do Rocha, o caporegime de toda a subseção da OAB, que, sem propor nem sequer um interrogatório a Neto, afirmou não existir nada disso e até ameaçou com estudar sanções contra o denunciante.

As Causas do “Relatório”

A pressa do trabalho da Internet impede a muitos autores corrigir com cuidado o que escrevem. Por causa disso, às vezes, de maneira involuntária, um escritor pode ofender a inteligência de seus leitores explicando coisas para lá de óbvias.
Para evitar isso, não vejo sentido em comentar nenhum parágrafo da hedionda manifestação desses bacharéis da subseção 36ª da OAB, apresentada, contra toda evidência, como produto de uma “investigação”. O leitor que deseje analisa-la, mesmo que seja por desconfiança, pode lê-la em vários sites de ódio. Entretanto, há uma página da Internet com uma boa matéria do juiz Walter Maierovitch (vide), cujo assunto não é exatamente esse, mas também é interessante. Entre os comentários dos leitores, ad calcem, um dos comentaristas reproduz a manifestação da subseção 36ª da OAB tal como foi divulgada pela imprensa.
O importante não é analisar um monte de infâmias que ninguém acredita (embora muitos simulem acreditar), mas conhecer as causas que motivaram a publicação dessas infâmias. O objetivo não parece ser o de colocar “panos quentes” e dissimular os crimes cometidos pelos desembargadores, o governo do estado, a polícia militar, a prefeitura e os juízes do caso.
Em outras comunidades dominadas pela ultra direita moderna (por exemplo, nos estados do Dixie americano), as autoridades que cometem abusos sentem necessidade de encontrar um pretexto para seu acionar. Elas não podem, meio século após Luther King, gabar-se abertamente de seus crimes, de ter cometido atrocidades com pobres e negros. Mas, nós não somos gringos e não temos as inibições deles.
Com efeito: no Estado de São Paulo não se aplica apenas uma forma de direito penal classista, racista e discriminatório, como em quase todo o continente. A justiça paulista aplica o chamado Direito Do Inimigo (Feindstrafrecht, vide), porém, sem necessidade de cosmética jurídica, como ensinou Sachs em 1985. (Lamento a falta de fontes em português, mas não esqueçam que alguns de nossos mais precípuos inquisidores estudaram na Alemanha e importaram daí algumas doutrinas).
Estando numa uma comarca de tradição escravista, integralista e ligada ao Opus Dei, a faxina social paulista não precisa qualquer pudor: todo aquele que está fora do esquema (mesmo que não se sinta inimigo dele) é portador de uma vida inútil, que pode ser “varrida do mapa”.
Com efeito, se o ataque produziu, como afirmam muitas testemunhas,  numerosos morticínios, isso não seria motivo para o embaraço de altos magistrados, políticos e policiais. Pelo contrário, os executores deveriam receber o costumeiro prêmio à bravura, mesmo que os cadáveres de crianças, mulheres e doentes (os mais demonstradores de bravura) não possam ser exibidos como troféu.
O sujo panfleto de seção 36a tampouco parece apenas uma tentativa da gangue de mostrar que seus adversários estão mentindo, e capitalizar esse fato para as próximas eleições. Isto seria desnecessário num estado onde a direita está municiada pela mídia, as grandes fortunas, e as forças repressivas, e muitas eleições são decididas nos currais eleitorais.
Mas, talvez uma das causas do libelo seja o objetivo de estorvar a entrega do dossier sobre Pinheirinho à CIDH, (Comissão de Direitos Humanos da OEA), que será anunciada o dia 22 de junho numa reunião aberta na USP. (Sobre este evento, publicarei em seguida uma matéria complementar.) Numerosos governos neofascistas tanto das Américas como da Ásia e a África, sempre recebem os relatórios dos organismos internacionais com agressividade e costumam publicar, de antemão, documentos que desmentem as acusações que esses organismos farão.
Neste caso, os algozes podem ter certa desconfiança de que, tendo ganhado o caso Pinheirinho as manchetes internacionais como nenhum outro crime de estado acontecido nos anos recentes num país ocidental, a CIDH se mostre menos lenta que de hábito, e também mais enérgica.
Todavia, é claro que o poder da CIDH é limitado. A Comissão têm investigado vários casos de graves violações aos DH, entre outros, o que conduziu à Lei Maria da Penha, ao assassinato de Vladimir Herzog, aos tormentos e o aniquilamento de Araguaia e a vários outros resultados. No entanto, salvo em poucos casos, sua atitude com respeito à Comissão tem sido usualmente de arrogância e desprezo. As autoridades brasileiras chegaram ao extremo de boicotar sem qualquer delicadeza a reunião para discutir o caso de Belo Monte. Na melhor das hipóteses, os governos têm pago alguma indenização a suas vítimas, porém, barganhando no possível o valor da restituição.
Sem dúvida, a denúncia à CIDH é imprescindível, e constitui a mais séria das medidas que foram tomadas contra o massacre, mas ela deve ser completada com ações penais. A CIDH pode passar o caso à CorteIDH (Corte Interamericana de DH, em San José), que tem faculdades para exigir dos governos a investigação e punição de crimes contra a Humanidade praticados pelas suas forças repressivas. Ela não possui, como o Tribunal Penal Internacional (TPI) o direito de capturar, julgar e, eventualmente, condenar os réus de lesa humanidade.
Nenhum esforço para conseguir a condenação da CIDH e da Corte deve ser poupado. Mas, a probabilidade de que o governo brasileiro julgue criminosos de estado, é ínfima. Afinal, a política classista, a despeito de nuances, tem uma mesma matriz: Nós podemos ser vocês amanhã.
É por isso que insisto em minha proposta principal: pedir a intervenção do TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL contra os cinco maiores responsáveis deste massacre. De fato, além desses participantes na chacina que aparecem em nossa carta ao Promotor Geral do TPI, caberia julgar também a cúpula da PM. Segundo o eminente promotor Márcio Sotelo Felippe incluso os incentivadores econômicos do crime deveriam ser processados, como o magnata que exigiu a devolução das terras.
Tendo passado cinco meses, e não existindo o mínimo indício de que qualquer autoridade nacional, a qualquer nível, tenha feita uma modesta apuração do massacre, é necessário enviar um dossiê paralelo ao Tribunal Penal Internacional de Haia. As mesmas informações usadas para a petição junto à CIDH servirão para o TPI. Não podemos nos deixar vencer pelo pessimismo. Nos últimos tempos, os tribunais penais da ONU (o TPI, e as cortes especiais, Serra Leoa, Kosovo, Ruanda) têm aplicado penas razoáveis. O ex presidente da Libéria, Taylor, foi condenado a 50 anos.
Os dois links seguintes correspondem às petições de apoio à denúncia junto à CIDH, e à proposta de denúncia junto ao TPJ. Se vocês ainda não assinaram, pensem no futuro: será que queremos deixar aos nossos bisnetos uma Síria, um Sudão, uma Ruanda ???
Petição para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos
Petição para o Tribunal Penal Internacional
As quase 3.000 assinaturas da petição ao TPI serão disponibilizadas para que os coordenadores da petição à CIDH as incorporem a seu próprio grupo de assinaturas, se desejarem.
Faço questão de ressaltar a necessidade da ação do TPI, porque o Brasil vive um momento em que as expulsões violentas de moradores e os projetos de faxina social, estão excedendo os outros do Continente, talvez ultrapassando a Colômbia. Além de reparações e indenizações, é necessário parar a carreira truculenta destes devoradores de sangue, e só uma ameaça de punição internacional pode tentar consegui-lo, embora, em todos os casos, nada possa substituir a resistência popular.

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