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sábado, 28 de abril de 2012

ABORTO ANENCEFÁLICO




Aborto Anencefálico
Carlos A. Lungarzo
Professor Titular (r) da UNICAMP
O problema do aborto ganhou novamente atualidade no Brasil por causa da proposta de reforma do Código Penal, que está considerando a possibilidade de aumentar os casos de descriminalização do mesmo. Mas, no começo de abril, também influiu o julgamento pelo STF de uma ação sobre o direito a abortar fetos sem cérebro, que se mantinha obstruída desde 2004.
A decisão do STF foi por 8 votos a 2. Entre os opositores, estavam o ministro Lewandowski, quem, na biografia de alguns portais jurídicos aparece como oficial retirado das forças armadas e ex juiz militar, e o ministro Peluso, radical católico que já tinha se oposto em 2004 a uma liminar que permitia o aborto de veto anencéfalo concedido pelo ministro Marco Aurélio de Mello.


Aborto de “Sem Cérebro”

Em 12 de abril de 2012, o Brasil tornou-se o 4º país da América Latina que descriminalizou o aborto no caso de feto anencéfalo.
O primeiro país a adotar o aborto foi Cuba, em 1965, pensando talvez nos princípios marxistas de igualdade da mulher e o direito de escolha. Entretanto, esta proposta deixou de ser libertadora e foi deturpada quando o governo cubano começou a difundir o aborto como se fosse um método normal de contracepção. O aborto foi utilizado com a finalidade de reduzir os problemas econômicos do Estado, sem ter em conta o trauma psicológico que pode afetar uma mãe incentivada a interromper uma gravidez (Vide).
O segundo foi o da Colômbia, que aumentou o número de situações em que o aborto era permitido, incluindo, em 2006, o caso de fetos com deformações. O motivo desta medida numa sociedade ultraconservadora foi um fato de grande repercussão: Marta Solay González (1971–2007) descobriu que tinha um câncer de útero no 2º mês de gravidez, mas a justiça lhe negou o direito à terapia, argumentando que o tratamento mataria o feto. No momento de dar a luz, já o tumor era incurável. A crueldade desta condena a morte pelos juízes produziu uma enorme indignação na opinião pública, a despeito da intimidação que a Igreja católica exerce sobre as classes pobres do país.
A Corte Suprema, preocupada pelo clamor nacional, sentiu-se obrigada a estender as condições de legalidade do aborto. Uma das condições adicionadas foi a de fetos com graves danos cerebrais. (V)
O 3º caso de despenalização se aprovou parcialmente em 2010 no Uruguai, quando o senado legalizou a interrupção da gravidez (V). O Uruguai tem certa tradição de secularidade e, apesar de ter sofrido uma ditadura (1973-1984), foi durante décadas uma sociedade democrática.
No resto da América Latina, incluindo países desmilitarizados como a Costa Rica, a influência da Igreja Católica fez proibir o aborto  em quase todos os casos. Em países desenvolvidos (em geral, nos que têm um maior grau de civilidade, mas também nos EEUU), o aborto no primeiro trimestre de gestação é permitido com a simples demanda da mãe. Na Europa, isto acontece em quase todos os países, mas nos mais teocráticos (que formam uma minoria ínfima) existem proibições até para o caso de defeito fetal. Eles são: as duas Irlandas, San Marino, a Andorra e o Vaticano. Este proíbe o aborto em todos os casos, incluindo o risco de morte da mãe.
No Brasil, o acordão que permite a descriminalização do aborto de fetos anencéfalos aprovado no dia 12 de abril, já tinha um antecedente importante numa intensa disputa que aconteceu em 2004. Algo antes, o ministro Marco Aurélio de Mello do STF, tinha concedido liminar para uma mulher grávida de um feto anencéfalo executar aborto legal. Mas o voto de Mello foi acompanhado só por Ayres Brito, Celso de Mello e Sepúlveda Pertence. Todos os outros (7 ministros) votaram contra a liminar. A mulher, porém, foi salva por um “antimilagre”: ela não faleceu nem deu a luz. Teve um aborto natural, contra o qual os 7 juízes não podiam aplicar nenhuma punição.
Com base nesse fato, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), representada por Luís Roberto Barroso (vide), jurista célebre por sua militância em causas humanitárias e progressistas, promoveu uma ação que só foi julgada no dia 12 de abril de 2012, e aprovada por 8 votos a 2. Entre os apoiadores, estavam dois juízes que em 2004 tinham votado contra a liminar, mas que perceberam a nova composição do STF e a pressão social, e “mudaram” suas idéias.

Dos argumentos a favor da despenalização do aborto, o mais importante foi o de Marco Aurélio de Mello. Ele demonstrou com raciocínios impecáveis que a alusão à religião no Preâmbulo da Constituição Brasileira não pode considerar-se normativa, pois isso implicaria violar o princípio de liberdade de consciência, amparando apenas as pessoas crentes e, ainda, as monoteístas. (Vide, passim, mas especialmente, p. 12 ss).
A observação de Mello vai muito além do problema em pauta e entra na legitimidade do aborto em geral: a decisão de uma mulher sobre seu corpo não pode estar sob o jugo de ninguém, nem mesmo dos teólogos.
O ministro Lewandowski, que votou contra, parece ter percebido que a legalização no caso de anencéfalos conduziria naturalmente a autorizar o aborto de qualquer feto que padecesse de deformações.
Em seu voto (V, p. 5), coloca uma citação grifada em que se menciona a ilegitimidade do aborto eugenésico (sic). É impossível conhecer as idéias que envolve a complexa retórica jurídica, mas esta citação parece aproveitar a má fama da palavra “eugenésico”, que foi muito utilizada pelo nazismo. Mas deve ter-se em conta que os mais brutais programas de eugenesia nazista (como o Aktion T4, de 1/9/1939) eliminavam crianças que tinham vida autônoma e não fetos que só poderiam tornar-se autônomos eventualmente (V).
Admitir a “humanidade potencial” do feto não viável, seguindo as especulações de Santo Tomás de Aquino, permite concluir que qualquer medida contraceptiva é criminosa, pois evita que o óvulo (que sempre é uma entidade viva) possa ser fecundado.
É verdade que o que se chama anencefalia é geralmente uma atrofia do cérebro e nem sempre a total ausência dos hemisférios, mas esse defeito é suficiente para tornar a vida impossível após o parto. Os meninos que vivem com anomalias cerebrais até idades mais avançadas não são anencefálicos, mas portadores de defeitos cerebrais graves. Isto causou confusão em alguns juízes, que finalmente votaram também a favor de ação, porque ativistas antiaborto apresentaram crianças de mais de 2 anos com sérias disfunções cerebrais que foram mostradas, falsamente, como anencéfalas.
Aliás, o critério clínico (aceito até pelos mais fechados fundamentalistas) de morte de um ser humano é o fim das funções cerebrais e não, como antigamente se acreditava, a parada respiratória ou cardiológica. Portanto, uma pessoa sem cérebro é uma pessoa morta, e carece de sentido dizer que abortar um morto é um crime.
É claro que o aborto produz certo constrangimento, que se acentuou nos últimos anos quando as pessoas conseguiram ver os movimentos dos fetos nos diagnósticos de imagem. Mas, isso não implica que qualquer grupo supostamente iluminado possa substituir a decisão da portadora, a quem cabe a propriedade de seu próprio corpo.
Entretanto, o que se obteve com esta decisão do tribunal aqui apenas uma esmola, não pequena, mas esmola e não direito. Esmolas são importantes: para muitos, elas são a diferença entre vida e morte. Mas, a dádiva do STJ não permite abortar outros fetos, mesmo gravemente afetados, que não sejam anencefálicos. A situação melhorou para alguns milhares de mulheres, mas ficou igual para alguns milhões.

O Caso do Estupro

O Código Penal Brasileiro, em vigor desde 1940, autoriza apenas dois casos para autorização de aborto: (1) o que  põe em risco a vida da mãe e (2) o de gravidez gerada por estupro.
O primeiro caso é claro. Se os que negam o direito ao aborto se autoqualificam de “defensores da vida”, será contraditório deixar que as mães morram por causa da salvação do feto. No entanto, o direito canónico da Igreja católica proíbe o aborto em TODOS os casos, obrigando, se for necessário, a sacrificar a vida da mãe. Esta é a lei que rege no Estado do Vaticano, por exemplo.
Como se explica que os “defensores da vida” proponham o assassinato da mãe? A razão real é que a Igreja sempre desprezou a mulher, e um filho ainda não nascido poderia ser homem, pois na época não se conheciam os critérios para determinar sexo. Por outro lado, mesmo se fosse mulher, uma vida jovem seria mais útil que uma vida mais velha. Uma menina recém nascida teria mais anos pela la frente que sua mãe para propagar a fé, e tornar-se reprodutora dos seres que os exércitos e as igrejas precisavam para doutrinar e usar em seu benefício.
Apesar disso, muitos países com maioria católica permitem o aborto, quando a vida da mulher está em risco. De fato, mesmo no Brasil de 1940, dominado por um semifascismo, parecia exageradamente sádico proibir o aborto em todos os casos, e  condenar as gestantes a morte para satisfazer a sede de revanche de teólogos sexófobos.  Aliás, apesar do caráter factualmente teocrático (embora simbolicamente democrático) dos países da América Latina, os elementos liberais dentro da classe política, mesmo minoritários, exercem alguma influência.
O segundo caso é o do feto que é fruto do estupro. Aqui, as coisas se entendem menos. O CPB de 1940 não autorizava abortar um feto sem cérebro, mas autorizava abortar um feto totalmente saudável, por ter sido fruto de estupro.
É claro que uma mãe tem direito de abortar um feto cujo pai é o homem que a estuprou. Aliás, a mãe tem direito natural de abortar em qualquer circunstância que esteja no intervalo de não viabilidade. (Usualmente, se convenciona em fixar este intervalo em 12 semanas).
Mas o filho de um estuprador será tão normal como qualquer outro, e a mulher muitas vezes opta por criá-lo sozinha ou com outro parceiro.  Estes casos são comuns e a incidência de transtornos na criança não são maiores de outros casos em que o filho desconhece o pai biológico.
Então, por que os legisladores reacionários e religiosos sustentam que: (1) O aborto de um feto saudável, no caso de estupro, é legítimo, e que (2) o aborto de um feito sem cérebro é um crime?
Há vários motivos:
1.     Um deles se deduz muito bem de um comentário do ministro Peluso em 2001: o sofrimento (neste caso, da mãe) é um fator de purificação. Claro que o ministro se refere ao sofrimento dos outros.
2.     Doutrinas obscurantistas acreditam no pecado original. Todo mundo é culpado pelo delito de Adão e Eva, e isso se herda durante milênios. Portanto, filhos de pessoas que cometem delitos (e o estupro é um delito) são, mesmo em forma de feto, criminosos potenciais. Então, permitir que sejam abortados (embora seja um pecado) é um pecado menor que abortar o filho de um home de “bem”. Algumas religiões orientais até obrigam a abortar o feto produto de estupro. Como vemos, há culturas ainda mais brutais que as nossas.
3.     Se a mulher for casada, compromissada, o namorada de alguém, ter um filho de estupro seria interpretado pela cultura machista, como afronta para o parceiro.
O contraste é bizarro:
(1) Uma mulher está obrigada a dar a luz um filho morto, com o risco dela também morrer. Abortar esse morto é crime.
(2) Todavia, não será crime se o pai fosse um estuprador.

Para os moralistas místicos, é mais grave ter um pai que cometeu um delito que não ter cérebro. Dá para entender: teólogos, puritanos e afins nunca precisaram de cérebro. Então, não entendem por que outros dão tanta importância a algo que eles não usam.

Paradoxos e Contradições

Para a Igreja católica e outras seitas, os filhos pertencem a Deus, como toda a Humanidade, mas são “alugados” aos pais, que têm sobre eles todos os direitos. Abraham, por exemplo, estava disposto a matar o filho, porque Deus mandou fazer isso.
Ainda hoje, filhos de famílias monoteístas muito religiosas são tratados como pequenos robôs. Eles devem fazer tudo o que seus país mandem, e estes, por sua vez, recebem suas diretrizes do padre, dos moralistas oficiais, dos professores conservadores, da mídia, dos políticos, dos militares.
Observemos esta contradição:
Segundo as igrejas, um menino e, mais ainda, uma garota, de 13, 15 e, às vezes, até  de 20 anos, deve estar submetido a seus pais, em assuntos morais, trabalhistas, de conduta e de estudo. Eles são tratados, como se fossem partes do corpo de seus pais, sem vontade nem sentimentos próprios. Claro que atualmente essa tirania familiar enfrenta cada vez maiores rebeliões, mas, nas famílias tradicionais, ricas ou pobres, da América Latina, isso ainda existe em grande proporção.
Ora, inversamente: um feto não viável (digamos, de 2 meses), que é um ente biológico embutido no corpo de mãe, é considerado por carolas e obscurantistas um ser independente, sobre a qual a mãe não possui nenhum direito.
A contradição é crua:
(1)  Os filhos, que são seres biológicos independentes, devem ser escravos de seus pais.
(2)  Óvulos fecundados da mãe, que fazem parte de seu organismo, devem ser tratados como pessoas com todos os direitos.
Para a filosofia familiar católica, por exemplo, uma criança de 10 anos pode ser chicoteada por seus pais “para coloca-los no reto caminho de Deus”, mas um feto de 2 meses deve ser tratado como um ser independente e com vontade própria.
Como se entende isto?
A parte (1) é fácil de entender. Os obscurantistas que queimavam na fogueira os cientistas, os inteligentes e os amantes da liberdade, precisam que suas doutrinas (cada vez menos respeitadas) sejam transmitidas pelo meio familiar. Um menino de 14 anos nunca acreditaria por si próprio que pode ir ao inferno por “brincar” prazerosamente e com segurança com uma menina de 13. Mas, se ele for criado num clima doentio, onde se fala de pecado, castigo e sofrimento, pode acabar acreditando.
A parte (2) tem a ver com a necessidade histórica dos religiosos de impor sofrimentos a seus fieis. A Igreja não combate apenas o aborto, mas também a eutanásia. Um filho que não pode ser sustentado nem educado chegará ao mundo para sofrer. Um paciente terminal de uma moléstia dolorosa passará por sofrimentos inúteis, se não receber eutanásia.
Esta apologia da dor é típica das igrejas e dos corpos militares, pois o sofrimento torna as pessoas fracas, indefensas e manipuláveis, e as transforma em máquinas humanas.

Conclusões

O aborto é um problema de saúde pública, mas não apenas isso.
Se não houvesse razões sanitárias para abortar, dentro do prazo em que feto não tem vida independente, a simples decisão da portadora, sobre quem recai a responsabilidade de que a criança seja desejada e feliz, deveria ser suficiente.
O único que pode ser pedido da gestante é que aceite se submeter a uma conversa com psicólogos, sociólogos e outros professionais, para conferir se sua decisão é firme, se realmente possui convicção de que deseja interromper a gravidez. De fato, em muitos níveis da vida, às vezes não sabemos exatamente o que queremos, e devemos ter uma oportunidade de que alguém nos ajude a pensar.
Obviamente, não deve fazer-se uma aplicação massiva do aborto, nem, muito menos, estimulá-lo, como se faz na China e em Cuba, onde o aborto é utilizado para evitar problemas ao estado, sem respeito pelos sentimentos da mãe.
A entrevista da gestante com especialistas teria como objetivo comprovar a decisão da mulher, e observar se ela teria interesse em se arrepender. Mas, o grupo examinador não tem em absoluto o direito influir para que e a mulher adote uma decisão pré-determinada. O objetivo é ajudar emocionalmente a gestante, descobrir qual é sua vontade real e respeitá-la. Não é convencê-la.
A atual modificação do Código Penal Brasileiro que está sendo sugerida em 2012 por um grupo de juristas, é ainda confusa, porém é claro que permite às comissões de psicólogos e médicos, a intromissão de decidir se a mulher merece ou não abortar. Isto é uma farsa e os movimentos de DH deve se apressar a confrontar-se contra ela.
O aborto é, geralmente, um processo traumático, e deve ser tratado como recuso final. Nesse sentido, é análogo a um processo médico, ao qual uma pessoa se submete mesmo que produza dor. Portanto, usá-lo como meio alternativo à contracepção é irracional e angustiante. Ele só deveria ser aplicado quando a mãe tem clara consciência de que a continuidade da gestação implica em transtornos para a própria criança, a mãe e seu entorno.
Por outro lado, nos últimos anos se experimenta uma reversão nas preferências pelo aborto. Desde 1995, nos países desenvolvidos, a tendência a rejeitar o aborto foi sempre menor que a tendência a aceita-lo. Mas, nos EEUU, a relação inverteu-se. Atualmente, 51% dos adultos americanos se consideram anti aborcionistas e 42% pró-aborcionistas. Isto pode dever-se à crescente pressão de pentecostais e católicos, que estão aliados para este propósito. Mas, também pode influir, como disse no começo deste artigo, a percepção de fetos nos exames de imagem.
O aborto pode provocar reações melancólicas, sensação de desejo de maternidade frustrado, e a impressão de ter interrompido um processo. Também está a culpa, mas esse é um sentimento espúrio que deve ser elaborado pela pessoa que aborta. Entretanto, a sensação de perda é bastante comum. Algumas mulheres pensam: “gostaria de ter condições para aceitar esse bebê”. Mas, devemos lembrar que é mais grave ainda a responsabilidade de dar a luz um bebê que, por razões psicológicas, sociais ou médicas, não poderá ser feliz.
Ora, quem deve decidir se está disposta ou não a eliminar o feto de seu corpo no período em que ele é inviável, é exclusivamente a pessoa a cujo corpo pertence o ser abortado.

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