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quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

PIQUENIQUE NO PARQUE


Tentei chegar perto quando vi aquele montão de barracas. Já tinha visto de longe, porque eu sempre durmo no parque, a não ser nos dias de chuva, e a primeira coisa que imaginei é que tinham me tirado o lugar. Mas depois pensei: “é gente como eu, só que são um pouquinho menos pobres; tem até barracas”, e fui chegando perto, esperançoso de também encontrar comida, porque eu e meus amigos dividimos tudo, até os restos que achamos no lixo.   
     Já era quase de noite. Fui chegando devagar, espreitando aqui, espreitando ali, sem ficar muito perto, porque vá que fossem da polícia... Quase eram! De repente, ouvi um grito de mulher: “Um mendigo!” É claro que sou um mendigo, não sei qual foi a surpresa e nem porque tanto espalhafato. Logo vieram outras pessoas e um deles me perguntou: “O senhor é de onde?” Ora vejam, que pergunta boba! De onde eu sou... Fiquei até pensando... De onde eu sou? Taí uma pergunta inteligente.
     Eu sou de onde der pra ser. De onde deixarem eu ser. Às vezes cato lixo, mas não paga a pena. Além de ficar todo esfalfado carregando aquele carrinho pesado o dia inteiro, fraco e com fome, quando entrego na fábrica que recicla o lixo dos que tem, recebo uma miséria. Moedinhas. E assim não dá! Por mais que digam que é trabalho e que é honesto, não dá pra sobreviver só com aquela honestidade. Coisa de escravo. Já não sou mais um moço; tenho minhas dores e minhas vertigens. “Qualquer dia caio morto”, pensei, no dia em que desisti de ser catador. As pernas doíam muito e não sentia mais as mãos. Mas de onde eu sou?
     “Eu sou ali da igreja”, expliquei, por falta de melhor resposta. Muitos riram, mas um deles ainda perguntou: “De qual igreja?” Tive que explicar que eu não podia escolher igreja; que ficava na mais próxima, quando podia ia para uma mais central onde passa mais gente e aproveitei para perguntar se eles tinham algum resto de comida, porque havia muita gente, tudo gurizada, e faziam comida aqui e faziam comida ali e tocavam violão e cantavam e falavam muito. Aqueles que estavam à minha volta pareciam já ter jantado. Tinham os olhos gordos e brilhantes. E logo uma das moças – bonita! – falou: “O senhor espere um momentinho aqui, que eu já vou lhe trazer um prato de comida.”
     Levei até um susto, esse tipo de coisa só acontece em época de Natal, e olhe lá! Mas acreditei. Sentei ali por perto, sobre um tronco caído, e esperei. Não demorou muito e veio um prato de comida, e até talheres.
     Comi. Comi. Comi. Comi de ficar feliz. Como é bom comer! Depois, entreguei o prato pra moça e perguntei se ela queria que eu fizesse alguma coisa em troca. Ela disse que não, que não precisava; que ali estava tudo muito bem organizado, pois era um acampamento da juventude. E eu pensei: “Então é piquenique, e dos grandes!”.
    Logo depois, vieram dois rapazes e me perguntaram se eu estava sabendo do Fórum Social. Disse que sim, para não parecer muito burro, mas que não sabia bem o que era, embora eu soubesse que existia, que estava acontecendo. Então, me disseram que era uma reunião com gente muito importante – reunião grande, que durava dias – para debater sobre como resolver o problema das maldades do mundo. Disse pra eles que a intenção era muito bonita, ainda mais se tratando de jovens, mas que não precisavam debater muito, porque as maldades do mundo estão bem à vista, era só olhar em volta.
     Foi quando um deles me falou que todas aquelas maldades em volta eram resultado de um modelo de política que eles queriam acabar e por isso se reuniam para debater a respeito. Vibrei! “E quando esse modelo acabar, eu posso não ser mais mendigo?”, perguntei. O que parecia mais esperto, ou mais falador, disse que sim, que quando aquele modelo errado acabasse eu seria tratado como gente, poderia até ter casa e emprego decente e assistência médica de verdade. Me entusiasmei e perguntei: “E quando vai ser?”
     O outro, que parecia mais compenetrado, disse que tudo iria depender do processo político, da conscientização das pessoas, da mobilização das massas. Aparteei, perguntando se até a semana que vem já dava para eu ter casa e emprego. Expliquei que eu já não era mais um jovem como eles e que não podia ficar esperando muito.
     Riram e saíram, me olhando com uma cara estranha. Não demorou muito e chegou uma moça dizendo que eu poderia dormir por ali naquela noite, mas nas noites seguintes não, porque aquele acampamento era vigiado pela polícia, que dera permissão só para a juventude ficar ali durante os dias do Fórum.  
     Percebi que tinham desconversado, que era um piquenique mesmo, mas não me fiz de rogado. Agradeci, me afastei e fui dormir sonhando com o dia em que o tal processo político mudar. Parece que vai demorar muito, mas não custa nada sonhar. É só fechar os olhos.

Fausto Brignol.
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