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quarta-feira, 16 de março de 2011

Caso Battisti: O que Vai Julgar o STF?

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Caso Battisti: O que Vai Julgar o STF?
Carlos A. Lungarzo
Am. Int. 9152711
Na sessão de dezembro de 2010, o Supremo Tribunal Federal aprovou, por 5 votos contra 4, que a decisão de executar ou recusar a extradição cabia ao chefe de Estado, ressalvado o cumprimento do Tratado de Extradição Brasil-Itália.
No final de 2010, a Advocacia Geral da União (AGU) produziu um detalhado despacho sobre os riscos que o possível extraditando poderia sofrer na Itália, baseados no inciso 3.1.f do Tratado.
Emitido o decreto do ex-presidente Lula em 31/12/2010, o atual presidente do STF desconheceu a legitimidade do mandato que o próprio STF tinha conferido, e decidiu manter preso o escritor. Mais de um mês depois, o ex-presidente do STF, que é o atual relator do caso, anuncia que a decisão de Lula será julgada proximamente. Mas, neste caso, julgar significa o quê?
Linchamento sem Fim
Se Lula recusou a extradição de Battisti, com base no item 3.1.f do tratado, é evidente que o chefe de estado acatou o acórdão, porque: (1) usou o mandato conferido pelo próprio STF, e (2) usou o tratado, pois o item 3.1.f, referido no despacho da AGU está, obviamente, no documento assinado por Brasil e Itália, e não por exemplo, num convênio entre Togo e China. Também é óbvio que o ponto utilizado é relevante ao caso.
Portanto, o presidente usou do direito que lhe fora  dado novamente (pois já existia) de tomar decisão e, além disso, a decisão foi tomada com base num item relevante do Tratado.
O presidente Lula poderia ter sido questionado se tivesse usado o artigo 4º, pois este não é relevante ao Caso Battisti, já que a Itália não tem (legalmente, que é o que interessa) pena de morte. Lula haveria também violado o tratado, se negasse a extradição de Battisti porque este é um intelectual (pois o documento não contempla benefícios para os intelectuais, como a lei brasileira), ou porque este tem mais de 50 anos, porque o convênio não dá nenhuma vantagem a pessoas maduras.
Então, dizer que o chefe de estado deve acatar o tratado significa:
1)    O chefe de estado deve basear seu decreto num motivo que apareça explícito no tratado.
2)    A interpretação do texto deve ter em conta que o motivo seja relevante para o caso em apreço.
No caso de Battisti, a AGU e o presidente usaram um artigo que impede a extradição quando há riscos de perseguição do extraditando, ou agravamento da sua situação. Esta expressão aparece de maneira explícita no documento, e descreve uma situação que pode acontecer no caso Battisti.
Portanto, a única atitude minimamente sensata do chefão do STF teria sido entender (ou pedir a alguém que lhe explicasse) que Lula tinha acatado o famoso mandato de 12/2010, e liberado imediatamente Battisti.  
O que a justiça julga, em qualquer comarca do mundo civilizado, é a adequação entre o ato do cidadão, e as leis relevantes a esse ato. O cidadão pode ser punido se ele desobedecer a lei, mas se ele não violar a lei, é uma clara insanidade julgá-lo para depois absolvê-lo.
Imaginemos, por exemplo, que a polícia detém um cidadão acusado de matar a esposa. O coitado sujeito reclama, enquanto é colocado no xadrez:
¾Delegado... o senhor viu que a minha mulher está viva e saudável, e nunca foi machucada por mim nem por ninguém!
¾Sem dúvida ¾ responde o delegado¾. Você é inocente, mas não tenha medo. O juiz sabe disso e vai absolver você no ato.
Esta não é uma dessas piadas preconceituosas inventadas por alunos de ciência, tecnologia e artes para ironizar sobre seus colegas de direito, filosofia ou teologia. Este exemplo mostra um caso estruturalmente idêntico ao de Lula. Vejamos:
Primeiro Problema: o tratado foi usado. Com efeito, o decreto invoca o artigo 3º, sec. 1, letra f, e isto é evidente para uma criança que aprendeu ontem o alfabeto até a letra f e os números até 3.
Segundo Problema: o argumento é relevante. Isto aqui é mais difícil, e exige pelo menos 2ª série do ensino básico. Mas, nenhum garoto negaria ajuda à cúpula do STF, se esta pedisse. Há possibilidade de que Battisti veja sua situação “agravada”?
Racionemos: o agravamento da situação de um preso no sentido usado no tratado, não é uma relação jurídica, mas um fato empírico. Battisti poderia ser maltratado, espancado, torturado e, finalmente, linchado. Não podemos dizer, é claro, que a lei proíbe tais coisas (por sinal, a Itália é o único país da Europa que não proíbe a tortura, mas deixemos barato!), pois não se está argumentando se a lei permite ou não a extradição. Está se argumentando que, apesar da lei, algum desses abusos poderiam acontecer.
Como mostrarei num artigo próximo, Battisti foi ameaçado de morte e tortura por diversos grupos e pessoas: sindicatos, associações de “vítimas”, ministros, policiais, etc. Quanto mais precisamos para pensar que pode haver risco de agravamento?
Ou seja, qualquer pessoa com QI > 0 percebe que:
1.  O argumento da AGU está num inciso do tratado (3.1.f)
2.  A situação descrita nele pode acontecer com Battisti. Conferir  se o risco é significativo ou não, não é um problema jurídico.
A justiça protege (teoricamente) direitos, mas não faz predições sócio-políticas. Não é um magistrado, mas um grupo de assessores em problemas de conflito social e político, quem pode responder à pergunta: “Será que uma pessoa que foi ameaçada pelo governo, o parlamento, a polícia, os carcereiros, os prefeitos e outros poderosos de seu país, correrá algum risco se a deixarmos a sós durante alguns dias com um bando deles?”
Tampouco cabe aos magistrados responder esta pergunta:
“Não será que Itália, quando tentou boicotar o comércio com Brasil, quis impedir um jogo de futebol, insultou os ministros brasileiros, proibiu os livros dos amigos de Battisti e até sugeriu uma guerra, não estariam de brincadeira? Não será que eles amam Cesare demais e queriam dissimular?”
Como no caso anterior, outra vez vou dar um exemplo, porque assuntos políticos parecem ser fácil presa de distorção. Pensemos, por exemplo, se um juiz pode dar palpite sobre medicina.
Leis e Atos Concretos
A justiça, para tomar a decisão de absolver ou condenar um réu, se guia por uma relação jurídica: o que a justiça julga é a obediência (ou desobediência) da lei por um cidadão, quando este realiza certo ato. Mas não avalia os aspectos empíricos desse ato concreto, e suas conseqüências fora do sistema jurídico. O exemplo típico é o julgamento de erro médico, muito frequente nos tribunais do mundo todo.
Imaginemos que um paciente com síndrome jacksoniano morre de um problema cardíaco quando estava sendo atendido pelo melhor neurofisiólogo do país, que, além disso, é um homem rico. A família acusa o profissional de incúria, imprudência, tratamento temerário, etc., aduzindo que o morto tinha um grave bloqueio atrioventricular e, apesar disso, o médico lhe receitava carbamazepina. O juiz não pode decidir a questão, porque não conhece química, neurologia nem cardiologia, mas entrega o caso a uma comissão de médicos, químicos e biólogos.
Imaginemos agora que os especialistas, após oito meses de examinar a história clínica do paciente e os resultados da autopsia, decidem por unanimidade:
“O doente morreu de um aneurisma, que não se relaciona com a administração de carbamazepina. Além disso, não tinha nenhum bloqueio atrioventricular.”
O tribunal lê o laudo, mas decide que o comitê não interpretou bem a doença do falecido, e condena o médico a pagar 5 milhões de reais e 4 anos de prisão. O tribunal fundamenta sua decisão em 70 páginas, dizendo que os membros do comitê, por ser da mesma profissão que o condenado, tiveram um desvio de finalidade, de conduta e de propósito. Acrescenta que, embora os membros do comitê não conhecessem o réu, todos eles compartilhavam a mesma ideologia: eram materialistas e ateus. Finalmente, o relator afirma que o prestígio dos médicos é irrelevante, pois a justiça está acima de coisas triviais como a ciência.
Esqueçamos agora todo o problema Battisti e pensemos se estes argumentos dos magistrados parecem razoáveis.
Extradição e Política
Nas democracias, para decidir uma extradição, a palavra final sempre é confiada aos chefes de estado, que consultam especialistas de diverso teor, incluindo advogados, diplomatas, técnicos em imigração, sociólogos, psicólogos, cientistas políticos, etc.
Nos países democráticos, existem três sistemas de extradição.
No sistema misto, usado no Brasil e no direito romano-germânico, o executivo pede autorização ao judiciário para executar a extradição. Este dá seu parecer, se cingindo à compatibilidade entre a natureza do processo declarado pelo país suplicante, e os processos semelhantes no país suplicado, mas não aprecia o mérito da sentença de origem, desde que o julgamento tenha sido limpo. Se a sentença é negativa, o executivo não pode extraditar. Se a sentença é positiva, o executivo pode extraditar, mas não está obrigado a fazê-lo.
Não sistema onde predomina o judiciário, como na Common Law (salvo nos EEUU), no direito escandinavo e em outros países com verdadeira tradição democrática, os magistrados não analisam apenas a correção formal do julgamento, mas também o mérito. Para decidir se a extradição deve ser permitida ou proibida, analisam todo o processo original e até onde seja possível, eles reconstroem o julgamento original. Na Noruega houve casos em que o tribunal exigiu uma reconstrução completa, reclamando a viagem das testemunhas do Chile a Oslo, o que, obviamente, Chile não aceitou, preferindo perder sua presa. Também neste caso, o tribunal pode negar a extradição, mas não pode obrigar a executá-la.
O único país onde domina o executivo são os EEUU, onde lobbies religiosos, empresariais e patrióticos têm se afastado do espírito inicial da Common Law. Mesmo assim, a justiça tem sua parte. O extraditando pode exigir que seu caso seja avaliado por um juiz.
Permitir a última palavra ao chefe do estado, em caso de extradição viável, não é uma gentileza. Ele é sempre o representante do país nas relações internacionais, e é aquele que “deve dar as caras”, quando surgem conflitos.
Além disso, a pessoa que assume a execução de uma extradição, deve estar não apenas autorizada pela justiça, mas também deve conhecer quais são as consequências de extraditar alguém, o que certamente não aparece nos códigos ou nas súmulas.
Embora o caso Battisti esteja guiado por numerosos interesses, ódios e cálculos da espécie mais sórdida, devemos ter em conta que, às vezes, o desprezo dos juízes pelos “administradores” (como eles chamam os funcionários executivos) são produto da ignorância e da soberba.
Muitos juristas que achariam absurdo que um tribunal dê pareceres sobre medicina, aceitam que o tribunal pretenda dar palpite sobre geopolítica, sociologia, psicologia, história substituindo os especialistas. Salvo uma honrosa e ínfima minoria, os magistrados seguem pensando que todas as ciências humanas são, como no século 16, apêndices bastardos de saberes divinos como o direito e a filosofia. Mas, é claro que, no caso Battisti, este não é o problema.
Reflexões Finais
As pessoas de outros países que conhecem o caso Battisti, se perguntam como é possível que aberrações de todos os tamanhos sejam acumulados neste infame processo sem que se produza nenhuma reação de grande envergadura. Eu, que moro no Brasil há 34 anos, tampouco entendo.
Esta é uma situação de gravidade impossível de imaginar em qualquer sociedade com um mínimo de democracia. Mas, o mais importante é que Battisti não é único prejudicado, nem talvez o principal.
No Brasil há milhões de mulheres que não podem dispor de seus corpos, porque psicopatas terminais com muito poder dizem que o sofrimento (dos outros) é bom. Há milhões de negros que devem escutar de altos políticos, que eles são os culpados da sua própria escravidão, e milhares de índios que não tem direito à terra, porque outros psicopatas a precisam para experimentos bélicos.
Milhares de pessoas seguirão em cadeiras de rodas, porque a engenharia genética ofende a fé dos inquisidores. As pessoas que acham que o prazer depende apenas do consenso dos envolvidos devem manter-se na clandestinidade. Crentes de diversos credos devem venerar os símbolos daqueles que durante séculos banharam em sangue seus povos. Nem a direita é respeitada quando quer agir com certa transparência. Um grande jornal brasileiro está há meses sob a censura.
Os que pensam que o caso Battisti nada tem a ver com eles e, portanto, não se sentem obrigados a pedir justiça, pensem: Battisti não tem nada a ver com vocês, mas seus algozes têm muito a ver. E, como no Poema da Omissão de Brecht, quando vocês decidam reagir pode ser tarde.

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