Não há classe dominante sem cultura dominante.
A cultura é uma amálgama de todas as relações sociais; um cadinho das forças centrípetas originárias da formação de um povo; um resumo de hábitos, religiões, folclore, conhecimentos ancestrais e atividades espirituais e artísticas que fazem com que um povo se identifique e se reconheça como detentor de determinados e específicos valores culturais.
No entanto, quando a cultura é institucionalizada – depois do período de fermentação necessário – o povo a quem ela pertence também estaciona, tornando-se escravo de hábitos culturais que o ultrapassam, devido à sua inação.
É quando sobrevém o sentimento de desfrutar aquilo que já existe e está estabelecido; de transformar o fator cultural em objeto de lucro. E este é o primeiro passo para que se forme uma mentalidade capitalista, que somente objetiva auferir lucro, como uma espécie de usufruto, dos seus valores culturais estanques.
É também nesse momento que a criatividade começa a ceder lugar à repetição; momento em que a cultura já possui normas próprias e se constitui em produto.
Um povo que para de criar é um povo que começa a morrer espiritualmente, de tanto repetir a sua cultura normatizada aviltando e esquecendo as suas próprias origens e raízes, porque a herança cultural e espiritual de um povo é, também, o seu único legado.
No capitalismo, a cultura é tida como um produto, objeto de consumo, e quando está institucionalizada, estacionária, tende a se exaurir.
Pelas próprias características intrínsecas do capitalismo – que implica, forçosamente, na divisão de classes – a classe dominante e manipuladora de todos os setores sociais procura se apropriar da cultura, compartimentando-a e a tornando fonte de poder e de lucro.
Assim, a cultura, que é sugada das classes populares em sua essência e origem, passa a ser a cultura da classe dominante, que a utiliza como sustentáculo e razão de ser do seu status.
Tratada como produto, a cultura passa então a ser recriada, reinventada incessantemente, pelos agentes culturais da classe dominante – ou produtores culturais – estreitamente ligados à burguesia. Mas essa recriação e reinvenção da cultura é horizontal e serve como base ideológica de um sistema que deseja perpetuar-se através do convencimento da sua superioridade. Pela ausência de força, de origens, de raízes, a cultura assim tratada horizontalmente dilui-se no abstracionismo e na repetição dos mesmos temas, porque é roubada do povo apenas em seus aspectos artísticos, que podem ser compartimentados, encaixotados e utilizados como qualquer outro produto.
É nesse momento que os artistas passam a cúmplices do sistema, utilizados para uso e prazer da burguesia (como modernos bufões) que, assim, forma a sua cultura própria e separada das demais classes populares. Uma cultura híbrida e oca que irá extinguir-se junto com a natural extinção da burguesia.
Essa cultura que então se torna burguesa, utilizada para fins de “demonstração” da superioridade da classe manipuladora, também se torna útil quando é jogada de volta para o povo, mas em seus aspectos mais degradados, como restolho ou lixo cultural, através da mídia subserviente, sob a farsa mascarada de “cultura popular” para que os despossuídos também culturalmente – e principalmente os mais jovens – tenham a ilusão de estar participando da “construção cultural” do país. E atua, também, (como cultura embriagante) como fator de massificação e alienação da verdadeira realidade social.
No Brasil, temos como exemplo gritante desse lixo cultural reciclado e jogado de volta para o povo, na música o “hip-hop”, ou “rap” - que já vem de uma subcultura estrangeira, porque nasceu nos bairros negros dos Estados Unidos como forma de grito de protesto, mas foi absorvida pelo sistema, transformada em cultura “comportada” e exportada para os países periféricos, como o Brasil, que absorve tudo o que vem da matriz.
Outro exemplo bem atual, que tem as mesmas raízes estadunidenses, é a assim chamada “musica sertaneja”, que, na verdade, é uma cópia da música country norte-americana, assim como os rodeios e as festas que a acompanham e ritualizam, principalmente no interior de São Paulo.
E assim em todos os aspectos artísticos, com o objetivo de, ao mudar das gerações, fazer o povo (que somente recebe informações da mídia controlada) pensar que essa cultura é originária do seu próprio fazer cultural.
Assim o carnaval no Brasil. Uma repetição de códigos e de signos dos quais já se conhece a síntese, que será sempre uma quarta-feira de cinzas, repetindo-se ano a ano com o objetivo de satisfazer os desejos mais pobres de sensualidade e volúpia, e, por isso mesmo, permanecendo estacionário enquanto fator cultural, porque nada acrescenta ao que já está disposto e agendado. Mas serve ao sistema, que o usa como fonte de lucro e benefício, utilizando para isto artistas dos mais diversos setores – desde coreógrafos e bailarinos até músicos profissionais – como cúmplices e co-proprietários da apropriação da cultura popular pela burguesia para fins de exploração.
A própria globalização também é uma forma de tentar unificar mundialmente a miséria cultural, aliada da miséria econômica. As classes mais ricas reservam para si o que julgam ser uma cultura mais “sofisticada”, mas não menos alienante do que o lixo cultural que devolvem para o povo, que se torna carente também de cultura, perde as suas raízes, esquece as suas tradições e busca exemplos na subcultura dos grandes países capitalistas, que são especialistas na difusão de todo o tipo de degradação.
Um povo, uma nação, é um corpo social. Se perder a vitalidade, se seu sangue for sugado ao ponto de tornar-se doente, cairá na decrepitude e morrerá. A cultura é o sangue do corpo social. E tem que ser constantemente revitalizada para que o corpo não se torne enfermo. Essa revitalização somente acontece através de novas formas de criatividade, mas sempre preservando as origens, a fonte do seu nascedouro como povo e como nação.
Ocasionalmente, e talvez sazonalmente, quando surgem os sintomas dessa doença no corpo social, o próprio sistema que se apropriou da cultura costuma agir, acionando os seus anticorpos na forma de novas explosões culturais – mas, inevitavelmente, movimentos culturais que surgem dentro da burguesia, da classe dominante.
Assim foi a Semana de Arte Moderna, em 1922, que trouxe para o Brasil o Modernismo, através da poesia concreta e da arte abstrata, entre outras facetas culturais. Trouxe sangue novo para a cultura brasileira, mas sangue importado da Europa, porque foram os agentes culturais da burguesia – mesmo que se considerassem “rebeldes” – que importaram essas formas de cultura que já tinham surgido no velho continente. Isso fez com que as classes dominantes se recuperassem do perigo de envelhecimento, mas as classes populares continuaram doentes.
E assim, em cada década, novos movimentos culturais surgiram, mas sempre dentro da mesma classe dominante que se apropriou da cultura e dela se serve como produto. Nada que fosse extensivo ao povo ou que dele germinasse.
É próprio dos países colonizados e dependentes economicamente – como o Brasil em relação aos Estados Unidos e às grandes casas bancárias internacionais – aceitar também a colonização cultural. Nós não exportamos cultura, mas absorvemos a cultura que é gerada em outros países. O máximo que fazemos em termos de exportação de cultura é enviar de volta uma cultura pasteurizada, anteriormente absorvida do exterior; ou vendermos uma cultura estereotipada, que revela a imagem de um Brasil colonizado – como Carmen Miranda na época da “política de boa vizinhança” com os Estados Unidos.
Mesmo quando surge um novo movimento cultural, como, por exemplo, a Jovem Guarda, nos anos sessenta – que tentava fazer um rock brasileiro -, ou a Bossa Nova, na mesma época – que buscava uma estética parecida com o Jazz – esse movimento acontece sempre dentro da mesma classe social dominante.
Raramente ocorrem legítimas manifestações populares, como foi o caso do Tropicalismo, com Caetano, Gil, Tom Zé e outros (sendo que Caetano e Gil foram domesticados, enquanto Tom Zé ainda insiste em ser criativo), que buscaram na cultura popular novas formas estéticas na tentativa de fazer uma música realmente brasileira, mas dentro de novos padrões experimentais. Quando isso acontece, o povo desperta. Mas aquele movimento artístico surgiu numa época de extrema repressão e, mesmo tentando ser original, foi obrigado a se condicionar ao encaixotamento das gravadoras e da mídia.
De lá para cá nada tem surgido como expressão da cultura popular. Nada de verdadeiramente original. Temos excelentes artistas; faz-se, inclusive, por vezes, um teatro que tenta ser libertador, como o exemplo deixado por Augusto Boal, mas sempre circunscrito a pequenos círculos, vigiados cuidadosamente pelo sistema.
Ao povo, a doença do funk, rap, e os protestos da quase arte nos muros. Ao povo a música country e o rock que nada mais diz. O teatro encomendado, as pinturas sem perspectiva e o carnaval estereotipado para gringo ver.
Quando um povo adoece, não só pela pobreza e miséria da maioria dos seus membros, mas, também, devido à normatividade e horizontalização da sua cultura – que se torna rarefeita, perigando se exaurir – necessita, então, de um tratamento radical para que o todo do corpo social não se torne contaminado e venha a perecer.
Esse tratamento se chama Revolução.
A palavra revolução não significa apenas transformação social drástica e necessária, em determinados momentos da vida de um povo. Também indica a necessidade de voltar a evoluir (re-evoluir), porque somente os povos estagnados, que pararam de evoluir social, espiritual e culturalmente, necessitam de uma revolução.
As revoluções sociais que aconteceram visando apenas remendar os aspectos econômicos de determinados países e dar ao conjunto do povo reais condições de vida e não somente de sobrevivência, tiveram curta duração. Principalmente à medida que surgiam novas gerações naqueles países, que se sentiam atraídas pelas novidades tecnológicas dos países capitalistas e que não se interessaram em ‘continuar’ a revolução.
Não pode haver revolução sem que haja, antecipadamente, um povo revolucionário impulsionado por fatores culturais – além dos fatores econômicos – que o faça desejar mudanças estruturais.
Uma revolução não significa simplesmente uma mudança radical de paradigma econômico. Antes de tudo, implica no desejo de novas estruturas culturais que incluirão, também, mudanças na economia visando o bem-estar de toda a população. Não se pode confundir revolução com golpe de estado ou movimento armado que apenas substitua os governantes e imponha uma nova ordem social e política.
Revolução não se impõe. Acontece de acordo com o grau de maturação social de cada nação e de cada povo. E essa maturação surge na medida em que o ambiente cultural torna-se saturado, devido ao reacionarismo vigente que torna estacionária a evolução cultural.
Mas uma revolução não acontece espontaneamente; necessita do sentimento revolucionário do povo. Quando determinado povo alcança aquele grau de saturação cultural e não reage nem desperta para a sua realidade, inevitavelmente será absorvido por povos mais fortes, que lhe darão a sua cultura, a sua forma econômica e política e o seu modo de viver e de ver o mundo – conforme aconteceu com Porto Rico, que hoje é mais uma estrela no pavilhão dos Estados Unidos.
E em povos assim, que desistem de lutar, o nacionalismo se desagrega e tudo aquilo que formava uma nação – e não simplesmente um povo disperso – é colocado de lado, esquecido, jogado no lixo. E o que forma uma nação é a sua cultura, de onde emana a força do povo e a sua capacidade de transformação.
A revolução é necessária em momentos de saturação cultural e não somente - e talvez não principalmente – nos períodos em que o fator econômico parece preponderar e obriga o povo a uma tomada de decisão. Porque um povo que não possua um sentimento revolucionário jamais tomará uma decisão revolucionária. Antes, preferirá deixar-se dominar por uma potência estrangeira, mesmo que lentamente e aos poucos - que lhe ensinará a como usar a sua economia e que lhe imporá a sua cultura. Um povo assim estará gravemente doente.
Uma revolução não necessita ser sangrenta. Ghandi deu o exemplo de como rebelar um povo pacificamente, através da desobediência civil, da não aceitação dos produtos e da cultura inglesa. E os ingleses tiveram que ir embora da Índia, porque os indianos desejavam fazer uma revolução; tinham um forte sentimento de nacionalidade e uniram-se no esforço para expulsar o inimigo comum. Principalmente porque o inimigo era estrangeiro.
Para fazer uma revolução, mesmo que pacífica, é necessário saber identificar o inimigo – mesmo que este seja do mesmo país – e enfrentá-lo abertamente. Porque o inimigo de uma nação sempre será estrangeiro, se representar uma classe que luta apenas por seus próprios interesses individuais, não hesitando em entregar o país e em dissolver a nação.
E uma revolução de verdade não termina. Ou será permanente ou se deixará absorver por forças reacionárias superiores. Lênin previu isto, quando pediu aos artistas soviéticos que procurassem fazer uma nova forma de arte, uma arte revolucionária, que se relacionasse com a cultura popular. Alguns como o cineasta Eisenstein, conseguiram superar-se, mas outros, que já estavam viciados na normatização burguesa, não entenderam e até se rebelaram.
Trotsky e muitos outros revolucionários de primeira hora, depois da morte de Lênin se revoltaram contra o governo de Stálin, que estava se burocratizando e formando castas sociais. Foram todos perseguidos; muitos foram mortos. Trotsky escreveu que o grande erro da revolução soviética foi ter parado, estagnado, o que a levaria – a continuar assim – a ser novamente absorvida pelo mundo capitalista, o que realmente aconteceu.
Um povo não pode deixar-se estagnar culturalmente, ou será somente um povo, não uma nação. E, à medida que a sua cultura estiver sendo, cada vez mais, apropriada pelas classes dominantes para transformá-la em produto de consumo, deverá reagir e revoltar-se. Ou aceitar a sua passiva morte.
Certa vez, Fidel castro foi entrevistado por um jornalista estrangeiro, que lhe perguntou quando iria cortar a sua barba. Fidel respondeu que a cortaria quando a revolução cubana terminasse. Fidel continua barbudo e a revolução cubana continua viva. Não terminará por obra e graça do seu próprio povo, enquanto o povo cubano entender que a revolução deve ser permanente.
Mao-Tsé-Tung instigou o povo chinês, principalmente os jovens, a fazer uma revolução cultural durante os anos sessenta, porque tinha consciência que revolução não é sinônimo de revolta armada. Houve alguns excessos e o Ocidente apavorou-se e condenou a revolução dentro da revolução na China. Mas aquela nova geração se sentiu participante da revolução iniciada pelos seus pais e a China saiu rejuvenescida do processo.
No Brasil nunca houve uma verdadeira revolução, a não ser aqueles pequenos movimentos armados, na época do Tenentismo, a tentativa do nacionalismo com Getúlio, de 1930 a 1945, quando foi golpeado pelas Forças Armadas e novamente de 1950 a 1954, quando preferiu a morte. O grande medo do capitalismo é o nacionalismo.
Depois a contra-revolução em 1964, que fechou o caminho para qualquer evolução cultural, social e econômica, entregando o país ao capital estrangeiro e instituindo uma nova classe social dominante, extremamente reacionária, que até hoje governa, mesmo que sem farda.
Há aqui uma inquietante estagnação.
Yes, nós temos Tom Zé e outros hermetos que não se deixam intimidar ou comprar e não são bananas.
Mas no país do carnaval, o nosso povo que gosta tanto de alegria talvez se esqueça de ir além do sorriso e da gargalhada; talvez se esqueça de exigir mais que alguns dias de folia; talvez se delicie apenas com o seu rosto mascarado, aceitando todas as fantasias importadas e acalente o medo de ousar, de transformar, e se acomode cada vez mais ao estabelecido, até o momento em que estiver completamente domado e ensaiado para ser sempre passivo, sem capacidade para pensar o seu futuro, aceitando, como mendigo estéril, as tristes migalhas do seu eterno presente de palhaço.
Fausto Brignol.
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