Páginas

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

CRACK E BOLINHA DE SILICONE


Bookmark and Share
I

Um relato curioso, mas não incomum:

     “Comecei a me dar conta aos poucos. Uma nova família tinha se mudado para um dos apartamentos térreos do edifício. Ao mesmo tempo, outra família mudou-se para o apartamento em frente. Mães e filhos, alguns adolescentes, outros não.

     “Ouvia gritos durante a noite, correrias no corredor, portas batendo, o portão da frente sendo atropelado; pessoas estranhas entrando, pessoas estranhas saindo. Todos jovens, daquele tipo que dá muitas risadas, falam alto nos seus celulares fora dos apartamentos, tem namoradas que riem e também falam alto como eles e ajudam a fazer todos os barulhos possíveis...

     “Tem motos. Nos fins de semana outras motos aparecem, com o mesmo tipo de fauna dirigindo. Entram correndo, saem correndo, espirrando, tossindo, rindo estranhamente.

     “Aos poucos, fui me dando conta. Não eram apenas jovens mal educados. Tinha algo mais. Comecei a me informar. Não estudam, não trabalham. Aliás, um ou outro diz que trabalha, mas não parece.

     “Foi quando um dos moradores foi embora, dizendo que não aguentava o cheiro. Não sabia dizer se era de crack ou de maconha. Outro, está pensando em se mudar. A janela do filho dele, que é doente, dá para a área de serviço de um daqueles apartamentos. A fumaça entra toda. O filho passa mal e ele tem que conservar aquela janela sempre fechada, mesmo no verão.

     “Quando perguntei a um dos vizinhos mais assustados porque ele não denunciava na polícia, respondeu que tinha filhos e que “para meter com aquela gente tinha que estar muito calçado”. Não entendi direito a expressão. “Estar muito calçado” é estar bem apadrinhado, andar armado ou simplesmente andar com os melhores calçados? Ou tudo isso?

     “As mães não ligam. Não se sabe se são cúmplices ou simplesmente não se importam. Costumam sair nos fins de semana para namorar. Os filhos tomam conta. Junta gente e fazem uma zoeira que só vendo.

     “Reclamou-se. Reclamou-se bastante. Um dos apartamentos pertence a um senhor muito delicado que, na terceira reclamação por telefone explicou que colocando bolinha de silicone nos ouvidos resolvia. Explicou delicadamente.

     “Fizemos uma “vaquinha” para comprar bolinha de silicone. Está muito cara e escasseando. A grande maioria dos edifícios da cidade tem o mesmo problema e como os donos de imobiliárias recomendam a mesma coisa – colocar bolinha de silicone nos ouvidos – todos começaram a comprar a tal de bolinha de silicone, que dizem que é importada e custa muito caro.

     “Foi quando alguém me disse que não é somente consumo. Alguns seriam traficantes conhecidos. Carros e motos param na frente do edifício, com pessoas ansiosas pela sua droga.

     “Suspeita-se que não deva ser só maconha. Suspeita-se de muita coisa.

     “Já houve quem foi a uma delegacia reclamar e me contou que foi tratado como se ele fosse o traficante, o meliante, o indivíduo ou que outro nome os policiais usam para esse tipo de gente. Como reclamar se não houve ocorrência?

     “Mas outro amigo foi a outra delegacia e foi tratado muito bem. As investigações começarão futuramente.

     “Vamos esperar. Enquanto isto, o que devemos fazer? Andar armados?”

II

     Mais um programa sobre crack. Igualzinho a todos os outros que já assisti. Só mudou uma coisa. Agora o viciado é tratado como doente. E a razão desta “doença” é a ausência do pai na infância ou ausência da mãe ou ausência de qualquer coisa que deveria estar presente.

     Não é a educação ou a ausência dela. Nem se fala nisso. São problemas emocionais que encontram seu alívio no consumo da droga mortal. Dizem que a droga é mortal. Muitos morrem devido a ela. Principalmente os que não são viciados, mas são assaltados e mortos. A polícia só trata de casos assim: ocorrências.

     Neste último programa sobre crack, o repórter correu o Brasil inteiro, foi nas mais diversas cidades; entrevistou viciados e ex-viciados. Fez tudo o que um bom repórter deve fazer. Tudo o que estava na pauta. Não estava na pauta buscar a origem, a causa, o porque. Não estava na pauta perguntar aos donos do poder, os assim chamados governantes, porque eles não combatem os fabricantes.

     Por que o governo não combate os fabricantes de crack e de outras drogas?

     Medo não deve ser. Quando quiseram, invadiram algumas favelas, lá no Rio, para poderem inaugurar um teleférico onde o Lula desfilou.

     Esse tipo de programa sobre crack fala apenas dos viciados, ou dos doentes, como preferem dizer agora. Muitos psicólogos e psiquiatras devem estar ganhando bem com essa nova doença. Principalmente se a família do viciado-doente for de classe média para cima. Abaixo da classe média não tem importância: pode ficar atirado, dormindo na rua e consumindo a sua droga-doença diária.

     Menos gente para competir no mercado de trabalho, pedir bolsa-desemprego, bolsa-família e incomodar de alguma maneira. O governo é pragmático. Este é um país livre – cada um pode se matar como quiser.

     Mas porque o governo não combate o fabricante da droga?

     Não confunda com traficante. Traficante é aquele que trafica, que vende para os interessados. Esses o governo combate. Pelo menos na televisão. Volta e meia vemos prisões de famosos traficantes – e até de não tão famosos assim.

     Mas o traficante só existe porque existe o fabricante. E quem fabrica deve saber fabricar; deve conhecer química, talvez até sejam pessoas formadas em química. Há quem diga que grandes empresas químicas, aquelas que fabricam as drogas permitidas, estão envolvidas. Mas deve ser boato. Há quem diga que pessoas saem das faculdades – pessoas formadas em química – com trabalho garantido em empresas de fabricação de drogas proibidas. Poderá ou não ser boato. Química está virando uma profissão atraente.

     Por que só falam do viciado, ou do doente, como se nele estivesse a causa do seu vício-doença? Como se somente dependesse dele livrar-se da droga-doença? Se a droga não existisse, não existiria o viciado-doente, não é óbvio?

     Ou será que, realmente, existe interesse em se formar um público consumidor fiel desses produtos alternativos, oficialmente proibidos? É muito dinheiro a ser lavado. O governo é cúmplice disso, ao não combater a fabricação da droga?

     Há uma grande campanha para que todos pensem que a culpa é do viciado e não do fabricante de drogas. Para que todos tenham pena daqueles coitados que vivem atirados nas ruas fumando os seus cachimbos de crack. Mas não fumariam se não existissem as pedras de crack.

     Qual o interesse do governo em não combater a causa da doença-droga-vício? Ou é somente desinteresse?

     Aquele repórter, naquela matéria sobre crack, entrevistou alguém do governo. Uma diretora ou presidente de uma daquelas instituições governamentais. Não lembro a sigla. Está fazendo uma pesquisa muito aprofundada sobre o crack no Brasil. Acumulando detalhes, índices, verbetes, a respeito. Pesquisando as causas e conseqüências do efeito do crack sobre os usuários.

     Fiquei pasmado, quase chapado, mas a minha caretice me impediu de chegar a tal. Para que serve aquilo tudo? Para uma tese de mestrado ou doutorado? Mas, na prática, o que faz o governo contra os fabricantes?

     Há quem diga que os fabricantes não moram no Brasil. Este país é imenso, mas não tem lugar para eles. Eles estão nos países menorzinhos das redondezas. Mesmo se fosse assim – e eu não acredito – não seria muito difícil chegar aos fabricantes através dos traficantes.

     Pedras de crack rolam pelas cidades do Brasil inteiro e ninguém sabe de onde elas vem? A culpa é dos viciados que caíram em tentação?

III

     Cuidados ao sair de casa, cuidados ao chegar em casa. Para você conseguir uma arma defensiva neste país, só depois de muita burocracia. Menos para os traficantes. Talvez seja mais fácil comprar armas dos próprios traficantes para a eventualidade de precisar defender-se deles.

     Nunca se sabe quem é quem nas ruas. Aquele menino na esquina poderá ser um assassino, louco para comprar a sua pedra de crack diária. E poderá matar você, porque sabe que nada acontecerá com ele. A lei protege os menores, mas não protege os maiores. Somente existe punição depois de uma certa idade. Até lá, tudo é permitido. Este é um país permissivo.

     Aqui, se proíbe o cigarro em lugares fechados, mas é incentivado o consumo de bebidas alcoólicas. E nada é feito contra os fabricantes de drogas. Este é um país decadente, com instituições decadentes. Dominado por pessoas decadentes.

Tome cuidado ao sair na rua.

Fausto Brignol.

Nenhum comentário:

Postar um comentário