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sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Caso Battisti: Fim do Pesadelo

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Carlos A. Lungarzo

Anistia Internacional





Desde Novembro de 2009, quando o presidente Lula manifestou na cidade de Salvador, que já tinha tomado sua decisão sobre o Caso Battisti, e que apenas aguardava o acórdão do STF (que foi publicado em abril) para fazer-la conhecer, a comunidade progressista e humanitária já sabia que o chefe de estado iria a encontrar uma maneira de rejeitar o pedido de extradição impetrado pela Farnesina, e concedido pelo máximo tribunal. Entretanto, nenhum de nós sabia qual seria o conteúdo do ato executivo onde se expressaria essa decisão.

Pessoalmente, junto com meus amigos mais comprometidos, pensei que o mais adequado era a outorga do asilo presidencial, que, por seu caráter discricionário, colocaria o escritor italiano, pelo menos teoricamente, a salvo da tentativa do STF de reabrir a questão, um risco com o qual tinham ameaçado várias vezes o então chefe do Supremo e o relator do caso. Foi por isso que empreendemos uma coleta de assinaturas que, em tempo três vezes menor, conseguiu 14 vezes mais adesões que a petição dos fãs do linchamento, apesar da ajuda brindada a eles pelo generoso governo italiano.

É verdade que a figura mais adequada seria a de imigrante (ou seja, a fórmula outorgada sob o visto de residente permanente), porque daria a estadia definitiva, permitindo a naturalização, e garantindo uma profunda integração num país cujo povo encantador em nada se parece àquela décima parte (ou menos), formada pelas das elites que mantêm o poder físico, jurídico e mediático. Entretanto, alguns pensamos que o presidente evitaria usar a fórmula de imigração para diminuir os atritos com o governo italiano, para quem uma proteção tão forte poderia ser interpretada como um desafio. Tratar Cesare como imigrado esquentaria ainda mais o surto de “febre vendettária” do estado e da mídia da Itália, pois daria a ele a possibilidade de dar um adeus definitivo ao país onde ele, como milhares de outros jovens sonhadores, foi perseguido e humilhado. Ele se tornaria, como muitos de nós, uma nova pessoa, numa nova cultura, com novas esperanças.

Entretanto, embora não saibamos quem pensou exatamente na figura de imigrado (poder ter sido o talentoso advogado Luiz Inácio Adams), ela era a melhor escolha possível do ponto moral e jurídico.

Juridicamente, se um perseguido é admitido como permanente, a praxe internacional é que qualquer ação jurídica de expulsão, seja com base em extradição ou com qualquer outra, seja extinta. É claro que o Supremo poderia ignorar esta decisão, como o fez ao “derrogar” na prática a lei 9474/97, e criar sua própria justiça, como fez numerosas vezes, mas a dificuldade seria maior, e lançaria um aberto desafio ao governo e parte do parlamento, contra os quais não poderia lutar facilmente. Além disso, agora que está claro o apoio total do estado a causa do asilado, os ativistas de causas humanitárias (que, em alguns casos, não temos talvez rendido todo o que podíamos) poderiam criar algum “desconforto” numa decisão de tal grau de aberração. Finalmente, um ato judicial em direito humanitário pode ser apelado junto à CIDH, que já condenou numerosas vezes o Brasil e até conseguiu que fosse aprovada a famosa Lei Maria da Penha.

Do ponto de vista moral, a medida é digna porque não se vale de pretextos para proteger Cesare, como se tivesse medo dos buffoni peninsulares. De fato, quando Giuseppe Crucciani, autor de um dos livros contra Battisti que tenta manter mais objetividade e o único que dissimula parcialmente seu ódio, foi interrogado pela imprensa italiana em junho de 2010 sobre o que faria Lula, disse: “ele vai argumentar alguma coisa como problemas de saúde”.

Não foi esse o estilo do decreto presidencial. É verdade que este não faz referência às fraudes no julgamento de Cesare nem a justiça de sua causa (não cabia esperar isso na situação atual), mas reconhece que Battisti é alvo de graves riscos, nos termos salientados pelo Tratado de Extradição. Devemos estar gratos que o perseguido tenha sido protegido sob uma forma que não é humilhante nem caridosa, mas, simplesmente, justa.

O documento da AGU, assinado pelo advogado substituto Fernando Luiz Albuquerque Faria, levanta um argumento de impecável evidência. É verdade que havia muitas mais ameaças concretas, bem documentadas, que as que o parecer descreve, mas não era necessário falar de todas elas. Faria mencionou algo que ninguém poderia negar de boa fé: a enorme agitação nas ruas italianas pedindo a cabeça de Battisti. Se, (acrescentemos) toda esta descarga de histeria e de doença social, se dispara contra uma pessoa que permanece numa prisão a 10.000 Km de distância, que aconteceria se o alvo de ódio estivesse aí, perto, nas mãos daqueles fanáticos sedentos de vendetta?

Temos lá o poderoso chefe policial Maccari, “herói” do massacre de estudantes de Genova em 2002, que sugeriu, talvez num momento de grave aumento de sua adrenalina, que a Itália deveria “declarar guerra a países como esse (Brasil)”.

Mais famoso que ele, é o Ignazio La Russa, menino de ouro nas juventudes fascistas de 1970, quando comandou os ataques anticomunistas da Praça de San Babila, em Milão, e lamentou não poder torturar Battisti. (Se ele não tivesse sido acolhido pelo Brasil, agora ele poderia). Sem falar das declarações ameaçadores da AIVITER, do sindicato dos carcereiros, e de muitos outros.

Não seria útil nem saudável indagar quais são as razões com que o governo brasileiro decidiu finalmente acolher Battisti. Os fins não justificam os meios, mas existem meios que são neutros, e que se tornam bons se os fins são bons. Não cabe, neste dia de celebração, colocar problemas como “por que o Brasil se mostrou finalmente justo com um perseguido político”. Não importa se foi por orgulho nacional, pela influência negativa da própria Itália, que com seus insultos descabidos e delirantes acendeu ao máximo a indignação do governo, tampouco importa que não tenha sido por apego aos direitos humanos. Afinal, a luta pelos direitos humanos no Brasil tem décadas, e deverá seguir durante muito tempo até obtermos algum resultado respeitável.

Devemos reparar em que o governo reagiu, por quaisquer motivos, da maneira justa. Até o silencioso Itamaraty, que nunca escreveu uma linha para defender o nobre ministro Tarso Genro, disse:

O governo brasileiro manifesta sua profunda estranheza com os termos da nota da Presidência do Conselho de Ministros da Itália, em particular com a impertinente referência pessoal ao Presidente da República.

Ainda temos muito para refletir. A não extradição de Cesare é o produto da ação de numerosos movimentos e de figuras nacionais estrangeiras que muito lutaram para que o país não caísse numa atitude medieval e inquisitorial, voltando às brumas de um mundo totalmente governado pela cruz e a espada. São muitas as pessoas que deveríamos analisar, e espero poder faze-lo em próximas etapas. Por enquanto, só desejo referir-me à escritora francesa Fred Vargas, ao jornalista Celso Lungaretti e ao Senador Eduardo Suplicy. Deixo para um momento menos emocionante analisar todos os atores que com suas condutas, sentimentos, atos de grandeza e generosidade lutaram contra a direita parlamentar, a direita armada, os jagunços de todos os naipes, a sabotagem do CONARE e, sobretudo, contra a mídia coprofágica e mentirosa, que encheu de ódio e desinformação as massas brasileiras.

Um fato crucial, neste momento, é a decisão sobre a liberação concreta do novo imigrante. No momento de escrever esta nota (31/12/2010 – 19:24) havia uma certa confusão semeada, aparentemente, pela cúpula do Supremo Tribunal Federal. O presidente Peluso teria dito, segundo as notícias circulantes, que cabia a ele abrir as portas da cadeia, e também tinha cogitado que desejava consultar o plenário do STF antes de fazer isso.

Entretanto, figuras com um peso jurídico e bom senso bem maior que o esforçado inquisidor, tem dito o contrário. Luís Barroso afirma que o próprio ministro de Justiça pode liberar Battisti, já que a decisão de negar a extradição veio do poder executivo.

Tão ou mais categórico é o célebre magistrado Marco Aurélio De Mello, que afirma que, extinta a extradição, não há motivos para a prisão. De fato, o extraditando é mantido preso em antecedência a seu deslocamento ao país requerente, mas agora o país requerente ficou, dito seja com todo respeito, chupando o dedo. Portanto, Cesare deveria ser liberado imediatamente.

Veremos o que acontece nas próximas horas ou dias, mas os milhares de pessoas que apoiaram a liberdade de Cesare, devem permanecer em estado de alerta. Todos os militantes mostraram muito bom senso nos últimos dias, controlando sua impaciência e facilitando a ação do presidente Lula. Essa atitude deve ser mantida, mas isso não significa baixar a guarda.

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