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sexta-feira, 26 de novembro de 2010

OS QUE NÃO SE IMPORTAM

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Os que não se importam somente se importam com as suas razões. E com elas dormem tranqüilos, levam a sua vida, aceitam as verdades que consideram melhores para as suas consciências, preferem o surrealismo dos seus pensamentos eufemísticos, criam os filhos como robôs programados e os associam às mesmas sociedades dos ancestrais, onde reinam as verdades eternas e perfeitas.

     Os que não se importam são especialistas em arrazoados. Através deles enxergam os demais, que consideram como naturalmente inferiores, mas necessários para os trabalhos mais rudes. Julgar, para eles, é um dever natural, posto que são deuses, e acreditam que não só o presente mas também o futuro lhes pertence – colorido e cheio de prazeres -, mas somente a eles, porque os demais são considerados como servos a serem utilizados pela sua suprema inteligência.

     Os que não se importam também fingem se importar. Tomam a frente nas ações cívicas com data marcada; orgulham-se de ajudar aqueles que exploram o ano inteiro. Ficam felizes consigo e com o universo que demarcaram quando se despojam de seus restos em favor dos muito necessitados, já acostumados a viver do lixo dos que freqüentam academias para emagrecer.

     Os que não se importam com a aridez do deserto dos seus escravos ou com a fome dos deserdados, porque os seus jardins são floridos e tem a gula sempre satisfeita, são os que acreditam fervorosamente no deus cúmplice que mora nos brancos templos dos shopping-centers onde só entram os selecionados pelo valor dos seus cartões de crédito.

     E preferem o mundo virtual, embalsamado e asséptico, à visão dos corvos e famintos em torno à vala comum do lixo do seu desprezo.

     Os que não se importam dedicam-se à metafísica ou a outras volúpias mentais onde encarceram os seus olhos medrosos e fugidios, trocando-os por uma mente passiva, gorda, satisfeita com o seu mundo linear.

     Os que não se importam tem medo quando estão fora dos seus condomínios ou quando, inadvertidamente, dão alguns passos nas ruas poluídas pelos infectados comuns. As grades lhes são afáveis e nelas encontraram a maneira da segregação perfeita.

     Os que não se importam adoram o trágico e o inusitado, desde que representado em salas escolhidas, afastadas da ruidosa multidão, que sobrevive na comicidade do seu cotidiano insosso e frustrado e sem nenhum fulgor heróico. São os que patrocinam a arte abstrata, que não incomoda, não tem cheiro ruim nem revela olhares ansiosos de vida ou perdidos na solidão. Para eles, a arte é revelada através das instalações, sempre penumbrosas e sutis, apenas a percepção do vago – muito além do mistério da luta pela vida, do dissabor da angústia dos que deixaram de sonhar e que não são sutis, nem vagos, mas apenas bruscos na sua metodologia da sobrevivência.

     Os que não se importam determinam a vida e a morte, a política e as relações sociais, a paz e a guerra, o amor e o ódio, de maneira equilibrada, sazonal, entre pequenas perfídias e grandes traições.

     Fabricam a sua própria moral, de acordo com a moda e as circunstâncias, mas a resguardam para si, para os seus brinquedos lúdicos, para a sua alegria plastificada, metódica, prevista para os momentos de medida insensatez.

     A outra, a moral oficial, é reservada para controlar e domesticar a fúria dos servos em seus impulsos primários, resultado de genes mestiços e confusos.

     Para os que não se importam todas as reações dos seres inferiores são catalogadas e estudadas com a natural frieza científica dos dominadores. Sua secreta tecnologia permite-lhes interferir nos sonhos, induzir pensamentos, promover paixões e determinar momentos de calma e de euforia.

     Os que não se importam estão acima e além de qualquer possibilidade de sentimento ou emoção.

     Apenas espreitam, observam, manipulam, mas não se importam.

     São os que constroem imensos mausoléus e não se importam de morrer depois que usarem toda a sua cota do secreto elixir da longa vida, desde que tenham a certeza da reverência póstuma.

     Seus clones continuarão como eles a perpetuar a estirpe escolhida e a não se importar.

Fausto Brignol.

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