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sexta-feira, 26 de novembro de 2010

A BATALHA DO RIO DE JANEIRO

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Canso de repetir: a criminalidade é intrínseca ao capitalismo.

Porque as molas mestras do capitalismo são a ganância, a busca do privilégio e da diferenciação, e o consumismo.

Ter cada vez mais posses e recursos materiais.

Competir zoologicamente com os semelhantes, no afã de se colocar em situação superior à deles.

Mitigar todas as suas insatisfações adquirindo e desfrutando coisas.

E se relacionando com os outros seres humanos como se eles fossem também coisas a serem desfrutadas; coisificando-os, enfim.

Com isto, nunca é preenchido por completo o vazio da irrealização, sempre falta algo e sempre o que falta é mais importante do que o já conquistado. O homem moderno é um Cidadão Kane que nunca encontra o  rosebud.

Pois os seres humanos só se realizam plenamente na coexistência cooperativa, solidária, harmoniosa e amorosa com outros seres humanos.

O capitalismo é um sistema perverso, que se alimenta do desequilíbrio e da desarmonia.

Que não garante a todos o necessário para todos, embora meios haja para tanto.

Que gera sempre, como uma secreção, seu exército industrial de reserva, seus excluídos, seus miseráveis.

Eles são o resultado da mais-valia, que continua firme, forte e toda poderosa.

Apenas sofisticou-se, ocultando-se atrás dos hologramas projetados pela indústria cultural; o grande truque do diabo é fingir que não existe.

A mais valia continua dividindo a humanidade em exploradores e explorados.

Continua estabelecendo graduações entre os explorados, de forma que eles mirem apenas o degrau superior e não a sociedade sem graduações nem classes; que nunca vejam a floresta por trás das primeiras árvores.

O dado novo é que alguns dos que estavam bem embaixo perceberam a inutilidade de tentarem realizar seus sonhos consumistas subindo a escada, degrau por degrau.

Descobriram atalhos para passar ao lado dos degraus e chegar logo ao topo.

Ironia da História: o capitalismo passou à fase das corporações, da liderança compartilhada, tornando quase impossível que grandes empreendedores ergam impérios do nada (Bill Gates é uma exceção que confirma a regra), mas a criminalidade forneceu uma válvula de escape para tais indivíduos.

Pablo Escobar foi o Henry Ford dos novos tempos. E outros não conhecemos porque os néo-Escobares perceberam que não lhes convinha alardear seu poderio.

Mas, a brecha que existiu era provisória e começa a ser fechada: também nesta modalidade de negócios o capitalismo selvagem está sendo substituído por práticas criminosas mais eficientes, com melhor relação custo-benefício.

Vale reproduzir a ótima avaliação de Luiz Eduardo Soares, ex-secretário nacional de Segurança Pública (2003) e ex-coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania do RJ (1999/2000), no seu artigo A crise no Rio e o pastiche midiático:
"O modelo do tráfico armado, sustentado em domínio territorial, é atrasado, pesado, anti-econômico: custa muito caro manter um exército, recrutar neófitos, armá-los (nada disso é necessário às milícias, posto que seus membros são policiais), mantê-los unidos e disciplinados, enfrentando revezes de todo tipo e ataques por todos os lados, vendo-se forçados a dividir ganhos com a banda podre da polícia (que atua nas milícias) e, eventualmente, com os líderes e aliados da facção.

"Quando o tráfico de drogas no modelo territorializado atinge seu ponto histórico de inflexão e começa, gradualmente, a bater em retirada, seus sócios – as bandas podres das polícias - prosseguem fortes, firmes, empreendedores, politicamente ambiciosos, economicamente vorazes, prontos a fixar as bandeiras milicianas de sua hegemonia.

"Discutindo a crise, a mídia reproduz o mito da polaridade polícia versus tráfico, perdendo o foco, ignorando o decisivo: como, quem, em que termos e por que meios se fará a reforma radical das polícias, no Rio, para que estas deixem de ser incubadoras de milícias, máfias, tráfico de armas e drogas, crime violento, brutalidade, corrupção?
"O modelo policial foi herdado da ditadura. Ele servia à defesa do Estado autoritário e era funcional ao contexto marcado pelo arbítrio. Não serve à defesa da cidadania. A estrutura organizacional de ambas as polícias [a civil e a PM] impede a gestão racional e a integração, tornando o controle impraticável e a avaliação, seguida por um monitoramento corretivo, inviável".
No fundo, os traficantes dos morros sempre foram complementares ao capitalismo e dele indissociáveis, fornecendo aquilo de que muitos explorados necessitam para continuar suportando sua existência insatisfatória.

Mas, o seu  modelo de gestão  caducou e outros  empreendedores, que já eram seus sócios, estão prontos a substitui-los com mais discrição e eficiência empresarial: os policiais-bandidos.

Desesperados por perceberem que perdiam terreno dia a dia, partiram para um desafio insensato, atingindo um dos valores mais sagrados da classe média: o automóvel.

Foi o suficiente para desencadear uma bestial demonstração de força do Estado, com seu poder de fogo infinitamente superior.

Morreram muitos inocentes no fogo cruzado, o cidadão comum sofreu prejuízos e enfrentou transtornos, a indústria cultural faturou em cima das manchetes empolgantes, traficantes foram presos ou mortos -- e a única certeza é de que empresários mais aptos herdarão os negócios dos que estão sendo excluídos do mercado.

De quebra, a mentalidade policialesca ganha reforço e penetra mais fundo na cabeça dos videotas: a repressão é o que nos salva de termos nossos carros queimados!

E dá-lhe mais repressão, mais tropas de elite! A fascistização da sociedade vai avançando imperceptivelmente, naturalmente.

Antes, gatos escaldados por 1964, os mais sensatos queriam as Forças Armadas longe das questões sociais, defendendo apenas o Brasil dos seus inimigos externos.

Agora, já se aplaudem os blindados da Marinha subindo o morro.

Como tantos aplaudiram a defesa da tortura e das truculências policiais num filmeco repulsivo.

De toda essa tempestade de som e fúria, o que restará?

O Estado venceu, como era de se prever, a  Batalha do Rio de Janeiro.

Que só não foi de Itararé porque houve mortos e feridos. Mas, não decidiu guerra nenhuma.

Decidiria se os traficantes vencessem. Mas, eles nunca venceriam. Nem aqui, nem na Colômbia que os pariu. Pelo contrário, para eles significou o canto do cisne.

O Estado não quer, verdadeiramente, acabar com o tráfico. Consentirá que, aos poucos, reassuma a antiga magnitude, sob nova direção e com outra metodologia operacional.

Só teremos solução real quando: 
  • identificarmos o capitalismo como o verdadeiro inimigo, oculto por trás dos espantalhos que ele, em cada instante, tenta fazer crer que sejam responsáveis por todos os males. Escobar, Castro, Bin-Laden, Saddam, Chávez, Ahmadenijad, há sempre um na berlinda, sem que nada melhore quando sai de cena, pois a indústria cultural imediatamente o substitui por outro, para que as ilusões e a alienação sejam mantidas;
  • e, consequentemente, quando nos mobilizarmos para dar um fim ao capitalismo, antes que -- condenado pela História e cada vez mais devastador em sua agonia -- seja ele a nos levar juntos para a destruição, ao aniquilar as bases naturais que sustentam a vida humana no planeta.

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