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quarta-feira, 26 de maio de 2010

CRÔNICA DE UM EPISÓDIO CANALHA

"É um grito que se espalha
Também pudera
Não tarda nem falha
Apenas te espera
Num campo de batalha
É um grito que se espalha
É uma dor
Canalha"
(Walter Franco)

Junho de 2008.

O senador Marcelo Crivella, sobrinho de Edir Macedo e bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus, apostou numa reciclagem dos barracos das favelas como trampolim para a Prefeitura do Rio de Janeiro – à qual pretendia chegar com o apoio do vice-presidente José Alencar (são ambos do PRB) e a benção do Governo Federal.

O Cimento Social foi um projeto maldito desde o início.

Primeiramente por ser superfaturado, conforme então denunciou o veterano analista político Zuenir Ventura: "o custo para reformar uma casa [R$ 22 mil] é mais da metade do preço de construí-la por inteiro [R$ 32 mil]”.

Depois, porque os fornecedores escolhidos foram, obviamente, empresários ligados à IURD. Aqueles que pagam vultosos dízimos.

E, ainda, por ser um pacote escandalosamente eleitoreiro: a equipe de Crivella fez o projeto e elaborou o cadastro dos beneficiados, de forma a colher todos os dividendos políticos. Quanto à conta de R$ 16 milhões, ficou para a viúva pagar, claro.

Por último, poupou-se o custo de seguranças para a execução do projeto no Morro da Providência, delegando a função ao Exército, que sabia ser uma roubada, mas acabou engolindo o sapo.

José Sarney naquele tempo falava grosso, pois ainda não devia a sobrevivência política a Lula. Então, disse que o Exército não honrara suas tradições ao aceitar tal empreitada, contrariamente ao que fazia quando se recusava a caçar escravos fugidos por considerar que era tarefa de capitães-do-mato e não de militares.

Quando a substância fedeu, José Alencar tirou o corpo fora, negando ter sido ele quem aconselhara Lula a dar esse péssimo passo:
"Nosso partido, o PRB, não tem esse poder de convencimento, de uma força militar fazer algo que não queira. Isso tudo passou pelo presidente Lula".
A comédia de erros terminou em tragédia. Agindo com a truculência que lhes-é habitual quando atuam junto a comunidades carentes, os militares mataram ou provocaram a morte de três jovens que voltavam de uma balada.

Uma patrulha suspeitou deles e os submeteu a uma revista cujo resultado foi nulo: não portavam armas nem drogas.

Houve bate-boca. O tenente que comandava a patrulha os deteve por desacato. Seu superior (capitão) ordenou que fossem soltos. O tenente, inconformado, desatendeu a ordem. Acabaram barbaramente torturados e executados a sangue-frio (um deles recebeu 26 tiros).

A versão oficial é a de que o tenente os entregou a traficantes rivais de outro morro. A versão alternativa, sustentada por Jânio de Freitas e por mim, foi a de que algum deles sucumbiu às torturas no quartel (como acontecia freqüentemente na ditadura de 1964/85) e os militares decidiram assassinar os outros dois, montando uma farsa para atenuar suas responsabilidades.

Ambas deixavam a imagem do Exército em frangalhos. Além dos detalhes escabrosos, havia os fatos de que um tenente ignorou olimpicamente a decisão de um capitão; um capitão não teve a mínima curiosidade em verificar se sua ordem havia sido cumprida; e o comandante Militar do Leste, diante de um acontecimento de tal gravidade, preferiu continuar em férias na Europa do que vir descascar o abacaxi.

O assassinato, as circunstâncias chocantes que o cercaram e o alegado conluio entre militares e traficantes foram prato cheio para a imprensa. O castelo de areia desabou.

A Justiça Eleitoral embargou as obras do Cimento Social após a mídia noticiar que Crivella estava destacando esse projeto em folhetos e outras peças de campanha.

O ministro da Defesa ordenou a retirada das tropas.

E, o melhor de tudo: o episódio desmoralizou tanto Crivella que ele perdeu a vaga, dada como certa, no 2º turno. O azarão Fernando Gabeira arrancou na reta final.

Mais que cimento, foi uma pá de cal nas chances eleitorais do citado elemento (o jargão policial cai como uma luva neste contexto...).

Quanto aos militares, 11 foram acusados na 7ª Vara Criminal da Justiça Federal no RJ, que acaba de absolver e libertar os nove subalternos; estes safaram-se em definitivo.

O tenente Vinícius Ghidetti de Moraes Andrade e o sargento Leandro Bueno ainda irão a júri, provavelmente no mês que vem. Não vai dar em nada, claro.

A Justiça Militar também julgou o tenente, condenando-o a um ano de prisão por recusa de obediência.

Ou seja, ter desacatado a ordem do capitão, que mandara libertar os coitados, é o único crime que ele cometeu, na ótica do Exército.

Seria cômico se não fosse trágico.

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