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quinta-feira, 20 de maio de 2010

Chile e Itália: Prisão Perpétua e Extradição


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Carlos Alberto Lungarzo
Anistia Internacional (USA) – 2152711
O caso Battisti estimulou a polêmica, geralmente evitada, sobre a crueldade prisional de alguns países desenvolvidos, como a Itália, Israel e os Estados Unidos. Este problema preocupou os humanistas do século 20, como Jean-Paul Sartre e outros intelectuais da contracultura. Michel Foucault lhe dedicou sua militância concreta e vários livros. Num nível mais científico e racional, várias escolas de sociologia na Europa e nos Estados Unidos questionaram a legitimidade do direito de punir.
Lembro isto, porque a agência EFE acaba de anunciar que o Chile confirmou a prisão perpétua de Mauricio Hernández Norambuena, um dos sequestradores do publicitário brasileiro Washington Olivetto em 2001. Essa condenação não foi imposta por causa daquele sequestro, mas por dois fatos que aconteceram no Chile: outro sequestro (um magnata do jornalismo e agente da CIA) e o pretenso planejamento do homicídio de um jurista católico devotado a justificar legalmente o terrorismo de estado de Pinochet.
Pela mesma EFE soube, ao mesmo tempo, que Regivaldo Pereira Galvão, condenado a 30 anos de prisão por ser mandante do assassinato de Dorothy Stang em 2005, ganhou liberdade provisória, porque o Tribunal do Estado de Pará diz que ele possui domicílio conhecido e atividade lícita (!), podendo, então, recorrer em liberdade.
No Brasil, Norambuena foi condenado a 30 anos de prisão, que está cumprindo na prisão de Catanduvas (PR), num regime de extrema violação dos DH. Enquanto ele foi punido no Brasil pelo sequestro local (e não pelos delitos no Chile), Galvão é autor de um crime vinculado com genocídio. Eu sei que não existe genus de uma pessoa só, mas o caso da irmã Dorothy não está isolado, pois faz parte do planejamento de extermínio de camponeses montado pelos ruralistas, e já cobrou centenas de vítimas (Chico Mendes, as de Carajás, e muitas outras menos conhecidas).
Todos os crimes são igualmente graves? Se for assim, poderia simplificar-se o sistema legal-judicial, e fixar uma pena para todas as infrações, desde briga de rua até assassinato em massa? Estou oferecendo esta dica aos candidatos nas próximas eleições.
Neste artigo, quero fazer uma breve colocação fusionando dois problemas, que, apesar de ter implicações diferentes, estão relacionados pelo caso Norambuena.
' A parcialidade das condenações aplicadas no Brasil, de acordo com os interesses das elites na punição.
' A diferente atitude do Chile e da Itália no caso de extradição, comparando o caso de Norambuena com o de Cesare Battisti.
O Crime no Brasil
Em 2001, Norambuena e outros 5 estrangeiros sequestraram o publicitário W. Olivetto, e o mantiveram durante 53 dias em cativeiro, com o objetivo de resgate (v). Não foram denunciados tratos cruéis, além da privação da liberdade.
Ninguém precisa explicar como os sequestros são angustiantes para a vítima e os familiares. Todos nós imaginamos isso e também sabemos que alguns deles acabam em morte. Entretanto, uma pessoa não pode ser punida pelo crime que eventualmente teria cometido se aquele que cometeu fosse diferente. Isto é fazer direito-ficção. De fato, ninguém morreu nem foi ferido nesse sequestro.
Os ativistas de DH não somos unânimes sobre o uso da violência, e em nossas ONGs há várias tendências. Eu, pessoalmente, entendo que só é válida a violência defensiva, mesmo quando vai além da “reação imediata”, condição prevista em algumas fontes do direito internacional. Por exemplo, o sequestro do embaixador americano no Brasil tinha por objetivo a liberdade de ativistas políticos que estavam sendo torturados. Tratava-se de uma violência defensiva, não letal, de luta contra uma ditadura, e alvo do sequestro, que era um culpável direto dos crimes da ditadura, não sofreu danos especiais.
Numa sociedade dominada por uma ditadura sangrenta, os grupos de resistência podem atuar como substitutos dos corruptos e truculentos sistemas de polícia e de justiça do sistema, sem que isto gere uma tendência perversa de “fazer justiça por contra própria”. Se toda resistência violenta fosse considera “hedionda”, os milhões de resistentes contra o nazismo deveriam ter sido julgados e condenados por terrorismo!
Entretanto, o sequestro do publicitário não foi defensivo, e deve ser considerado um delito comum, não associado a um objetivo político claro, já que a vítima não tinha relação com as ditaduras, e o Chile era governado agora por uma semidemocracia. Então, era justo aplicar alguma forma de punição.
O TJ de São Paulo, citado várias vezes nos relatórios de Anistia Internacional como protetor de terroristas de estado, e realizador das vinganças dos poderosos, tinha inicialmente sentenciado os 6 membros do grupo a 16 anos de cadeia, mas posteriormente mudou a condenação para 30 anos. Informações oficiosas da época mencionam a “pressão” (moral?) para conseguir uma retaliação à altura da relevância social da vítima. A condenação se baseia somente no delito de sequestro.
Atualmente, existem algumas denúncias, que as ONGs de Direitos Humanos não parecem ter visto, sobre os atos de sadismo usados no RDD, o Regime Disciplinar Diferenciado, ou, dito mais claramente, o sistema oficial de tomento psicológico para provocar danos irreversíveis no réu. Os organismos oficiais e paraoficiais ditos “de DH” foram criados na para conter as demandas dos autênticos ativistas; não causa surpresa, então, sua indiferença. Mas, preocupa que os movimentos independentes pareçam indiferentes.
No caso de Norambuena, sua família tem denunciado que as condições sub-humanas da reclusão o estão conduzindo a um estado limite de crise psicológica.
Além disso, o sistema judicial-prisional não está cumprindo a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), de transferir os sequestradores de Olivetto para regime semiaberto a partir de 2007 (v). Seja ou não justa a condenação inicial, o concreto é que em outubro de 2005, a 6ª turma do STJ concedeu o benefício da progressão. Isto foi uma aceitação do argumento de um dos ministros, Júlio Neves, de que a lei de crimes hediondos era anti-constituicional.
Então, vejamos a situação de maneira esquemática:
Caso Norambuena:
Quem é: Ex militante político de esquerda. Ações famosas: projeto de alto risco para derrubar a ditadura de Pinochet no Chile.
Crime no Brasil: Sequestro por 53 dias sem lesões nem mortes.
Vítima: Um alto representante do empresariado nacional.
Condenação: Máxima. Trinta anos de prisão sem recurso em RDD.
Caso Pereira Galvão:
Quem é: Membro de um grupo ruralista empenhado no massacre de ativistas sociais.
Crime no Brasil: Mandante de assassinato premeditado com requintes de violência.
Vítima: Uma ativista estrangeira pelos direitos dos camponeses.
Condenação: Trinta anos de prisão com direito de recorrer em liberdade.
Podemos estar em contra ou a favor desta situação, mas ninguém pode refutar um fato objetivo: nossa justiça se mantém (embora em menos de 100% dos casos) numa espécie de direito censitário e na punição como vingança social.
O Chile e a Itália: Duas Atitudes
Num artigo de hoje, Celso Lungaretti (v), compara a sinceridade dos poderes públicos chilenos (que tornaram pública a sentença a prisão perpétua de Norambuena), com a tortuosidade dos italianos, que quiseram convencer o Brasil de que fariam um “desconto” à condenação de Battisti, reduzindo a prisão perpétua para 26 anos.
O ministro da justiça italiano, encarado pelo clube de familiares das “chamadas vítimas da subversão” (na maioria dos casos, repressores que morreram em troca de fogo com resistentes), tranquilizou os reclamantes, lhes garantiu que Battisti cumpriria prisão até o último instante de sua vida, e até se permitiu reconhecer que estava enganando as autoridades brasileiras com o objetivo de acelerar a extradição.
Lungaretti cita a Dalmo Dallari, que tocou no ponto sensível da questão, ao lembrar que a condena de Battisti tinha transitado totalmente na justiça, e que o governo italiano não podia alterar a decisão judicial por respeito à divisão de poderes. Por sua vez, a própria justiça não poderia reabrir o caso. A única possibilidade seria que, em algum momento de sua prisão, o réu fosse indultado. Esta hipótese, provável ou não, nunca pode ser exigida num convênio sério sobre entrega de extraditandos, porque seu cumprimento depende de fatores imprevisíveis num futuro talvez remoto.
Esta observação realça ainda a lisura de Chile. Se este país quisesse obter a extradição e, para tanto, decidisse enganar o Brasil, poderia ter evitado que se aplicasse uma condenação a prisão perpétua, e se teria cingido aos 30 anos aplicados no Brasil. Lungaretti está certo ao reconhecer na justiça chilena certo sentido ético do qual carece a italiana. Entretanto, esta transparência não deve criar ilusões muito exageradas sobre a equanimidade do sistema jurídico de nosso vizinho.
A prisão perpétua é uma punição atroz, que depois de 20 anos de governos democráticos (mesmo que sejam precários e condicionados pelo aparelho militar-policial), Chile deveria ter derrogado. Deve lembrar-se que o avanço do humanismo judicial no Chile é lento. O país se tornou abolicionista da pena de morte só em 2001, e ainda hoje é (como também o Brasil) retencionista para casos de crimes de guerra. Aliás, a última execução aconteceu há apenas 25 anos.
No caso específico de Norambuena, o Chile tem o direito de considerar a morte de Jaime Guzmán como um homicídio planejado, mas não deve esquecer sua componente política. Guzmán era o artífice jurídico do modelo neofascista de Pinochet. Além disso, o sequestro de Cristian Edwards em 1991, embora fosse injustificado, não produziu danos perceptíveis na vítima, salvo, como em todos os sequestrados ou prisioneiros, medo, apreensão e insegurança.
O sequestro de Edwards foi um crime comum, mas ele não pode ser reprimido com prisão perpétua. Ou, então, qual é a condenação que se aplicaria a um assassino serial ou massivo? Parece que estamos na hipótese de que todos os crimes são equivalentes, à qual me referi no começo deste artigo.
Além disso, a condenação tem de considerar quanto risco representa o réu para a segurança da sociedade. Norambuena deixou, quase com certeza, de constituir uma ameaça para a comunidade chilena. Finalmente, o sistema democrático, que até a eleição recente de Piñera, esteve gerido por uma aliança que se considerava, com certo otimismo, de centro-esquerda, ignora os serviços prestados por Norambuena na luta contra Pinochet. Com efeito, Norambuena planejou um ataque, com enorme risco para sua própria vida, para neutralizar o sinistro ditador (v). O ataque falou, mas foi o único grande projeto para acabar com a ditadura, enquanto democratas cristãos e ex membros da Unidade Popular esmolavam (mais decorosamente que no Brasil, isso é verdade) por uma abertura democrática.

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