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terça-feira, 11 de maio de 2010

As Leituras da Lei de Anistia 2a. Parte




As Leituras da Lei de Anistia
2ª. Parte: Consequências e Perspectivas
Carlos Alberto Lungarzo
Anistia Internacional (USA)
Reg. 2152711
A Ressaca do Julgamento

Pretender avaliar os estados de ânimo dos membros do STF durante o julgamento da ADPF 153 parece uma petulância; os pensamentos e paixões das pessoas podem ser desconhecidos até por seus amigos mais íntimos. Alguns dizem que os ministros choravam de medo, outros que choravam de emoção, e outros que havia uma mistura de ambas as coisas. Mas, com base no histórico dos ministros, tendo em conta a estrutura de sua mensagem e seu estilo de apresentar suas razões, é possível induzir algumas conclusões, mesmo que isto seja uma temeridade.
É plausível suspeitar que a posição de Peluso, Mendes e Celso de Mello consistiu numa defesa da conduta dos militares durante a ditadura, que ia além do fato de que eles merecessem ou não anistia. Notava-se uma simpatia muito mal fantasiada com argumentos jurídicos. Talvez esses ministros não fossem apenas vítimas do apego à escolástica leguleia, como pode ter acontecido com os outros quatro fãs da lei 6683. As declarações destes três magistrados contra a tortura, especialmente soletradas pelo presidente do tribunal, em seu habitual estilo de predicador, carregavam um poder de convicção bastante anêmico.
No fundo, ninguém que não seja jurista e, mais ainda, membro de certa fraternidade jurídica específica, seria capaz de decifrar qual é o paradigma de “verdade” defendido por cada comunidade. A justiça é, na maioria dos países, o mais parecido à religião, mas os afazeres jurídicos levam seu misticismo além da religião. No catolicismo, existem interpretações casuais que se geram de acordo com os interesses pontuais do Papa ou dos bispos ou de alguém equivalente, mas também existem alguns mitos inamovíveis: podemos ter certeza de que um teólogo sempre defenderá o paradoxo da Trindade, a virgindade de Maria, a ressurreição da carne, e assim por diante.
O poder judicial, cuja origem é teológica tanto em Ocidente como em Oriente, não possui nem mesmo essa pequena predictibilidade das “ciências divinas”. A despeito da condena internacional da tortura, e apesar de que o Brasil foi signatário (tardio e reticente) de várias convenções e acordos contra a aplicação de tormentos, os juízes do STF não se preocupam com, pelo menos, evitar a imagem de protetores de torturadores e estupradores. A única amostra de indignação que pareceu autêntica foi a de Britto. O estado emocional de alguns que votaram contra a ADPF pode atribuir-se, sem incorrer em grave ingenuidade, a estados confusos de emoção: o dever de estado e a visão senhorial daquela abstração chamada “justiça” sobrepunham-se ao fato de ter amigos torturados ou mortos, ou ter sido eles próprios alvos de tormento.
Um fato que pode parecer muito específico, mas que chamou fortemente minha atenção na maioria do colegiado, foi a falta de preocupação pelo fato de que os militares realizaram com grande exuberância atos de estupro, uma forma de violência que, além de humilhação, constitui em alguns casos verdadeira tortura, pelo menos psíquica.
Poderia argumentar-se que o estupro, mesmo quando constitui uma real tortura para a vítima, produz transtornos físicos e psíquicos geralmente muito menos duradouros, dolorosos e irreversíveis que os tormentos convencionais. Por que, então, deve surpreender que aqueles que encobrem a tortura elétrica, ígnea, mutiladora, deveriam estar contra o estupro?
A resposta a este interrogante, que eu também me formularia em outras situações, está num exemplo histórico importante, o mais aterrador de Ocidente desde o fim do fascismo: a ditadura argentina.
Em 1987, o governo argentino emitiu duas leis em favor de genocidas, torturadores, estupradores, etc. Uma delas era uma espécie de Anistia (Lei de Ponto Final), que protegia os militares de julgamento numa forma apressada e escandalosa, mas, apesar disso, não era mais perversa que qualquer outra anistia de genocidas. Já a lei que complementou esta, dita “Lei da Obediência Devida” era um produto aberrante, impossível de imaginar após o século 18, uma amostra de covardia e miséria moral que deverá esperar muito para se repetir.
Nela, se justificava a prática de genocídio, tormentos, assassinatos e outros tipos de brutalidade, quando tivessem sido cometidas por agentes do estado que cumpriam ordens de seus superiores. (Este teratoma só foi anulado pela Corte Suprema em 2005, o que serviria para provar aos nossos juízes que o tempo transcorrido não é pretexto válido universalmente.)
A lei não apenas isentava os criminosos, mas também incentivava a covardia e a renúncia à própria personalidade, pois quem molda sua conduta na obediência a alguém é uma máquina e não um ser biológico; grande parte dos vertebrados possui senso de liberdade. O humano que obedece não pode nem mesmo ser chamado de “anta”, porque antas também se rebelam às vezes.
Ainda pior do que tudo isso: e Lei de Obediência Devida poderia servir como antecedente para novos crimes apoiados nas mesmas razões. Se houver um novo genocídio escancarado como aquele, os novos algozes poderão invocar a proteção dessa lei, pois sem dúvida todos estarão executando ordens superiores.
Como já mencionei num trabalho anterior, todos os oficiais, de qualquer parente, podiam aduzir que cumpriam ordens do ditador, e este, por sua vez, (que, antes de ditador, tinha sido comandante legal das Forças Armadas no governo da viúva de Perón) poderia argumentar (mas não o fez, porque sua patologia era para ele um motivo de orgulho) que tinha obedecido ordens legadas pela presidente, durante cujo mandato começou o extermínio.
Estamos agora no cerne da questão. Um dos crimes que nenhuma de ambas as lei protegeu, foi o estupro. Claro que, mesmo mantendo esse crime como punível, ninguém foi culpado por ele, porque a violação sexual é muito difícil de provar. (Isto é uma resposta aos que acreditam que os militares são pouco legalistas; nunca aceitam ser acusados sem provas... nem com elas.)
Vale a pena analisar por que os militares fizeram uma exceção. Torturadores e genocidas (como está provado pelas poucas pesquisas que os ministérios de defesa permitiram em alguns países) padecem de profundo ódio pela sexualidade, que quase sempre executam de maneira anormal. Sendo a violência, a morte, a guerra e a tortura, os opostos do prazer, é muito natural que qualquer experiência que produza prazer nas pessoas normais seja detestada pelo aparato militar/policial, e que a experiência sexual, que produz o prazer máximo imaginável, seja detestada de maneira também máxima.
Os militares argentinos não apenas não objetavam, mas exigiam de seus subordinados a realização de atos impossíveis para pessoas normais: aplicar descargas elétricas em crianças, eviscerar mulheres grávidas, esquartejar pessoas de todo tipo, arrancar órgãos em seres vivos, programar as torturas com ajuda de médicos para que definhamento durasse dias ou até semanas.
Entretanto, os quadros médios e altos das forças armadas, todos eles crentes praticantes e convencidos de ter uma missão nobre e divina, sentiam desgosto pelo estupro praticado por seus subordinados (embora não por torturas sexuais aplicadas com eletricidade ou outros objetos).
Os oficiais entendiam que aplicar torturas com eletricidade, fogo ou aço temperava a nobreza cristã a cavalheiresca de seus homens, e que o cheiro de sangue e carne queimada purificava os algozes, enquanto as fezes e outras secreções dos torturados serviam como aprendizagem para a dura vida futura daqueles cruzados.
Entretanto, o estupro era, apesar de sua brutalidade, visto como uma licença hedonista, como uma concessão ás tentações do diabo. Ainda era pior se o estupro se praticava sobre outros homens, porque então, além de libidinosos, os torturadores provariam ser homossexuais, talvez o maior pesadelo da casta armada em muitos países de cultura monoteísta.
Voltemos ao Brasil e ao STF.
Com diversas intensidades, a aliança militar/judicial/eclesial reproduz, ao longo da história, a primitiva identidade entre nobreza e clero, da qual se desgarrou depois a classe dos juízes, na medida em que o estado se tornava mais especializado. Ainda, além das especulações teóricas, os fatos mesmos não deixam dúvida. Durante o complicado processo das células-tronco embrionárias, quando a CNBB preparou um de seus mais potentes lobbies e suas melhores tropas de choque, a imprensa interrogou a todos os juízes do STF sobre sua fé religiosa. Apenas dois disseram não ser católicos. Inclusive, um deles não chegou a definir-se como secular, mas apenas como “holista”.
Sem eufemismos: os países católicos (e Brasil não é o mais prejudicado neste sentido) possuem uma justiça tão confessional como a dos tribunais islâmicos do Irã, ou da Inquisição Espanhola. Durante os Anos de Chumbo, na Itália, que está no coração da Europa e muito longe de nosso primitivismo, muitos juízes foram mais exagerados que os nossos, pois até planejavam (mesmo que não executassem) a aplicação de tormentos. Isto foi sofrido na própria carne por Sisinio Bitti, como foi relatado por mim no resumo dos Cenários Invisíveis do Caso Battisti.
Caberia conjeturar, então, que os magistrados do STF se declarariam contra a proteção aos militares pela lei 6683, já que essa proteção equivale a reconhecer o estupro como crime conexo com o crime político. Porque, embora a tortura tenha sido uma profissão nobre até 1997 (sim, foi nessa data que Igreja se manifestou pela primeira vez contra a tortura!!!), o estupro sempre foi pecado, que é a pior forma de crime. O motivo não é sua índole violenta e humilhante, mas sua índole sexual.
Mas o STF não excluiu o estupro dos crimes conexos com os políticos. Talvez, como mostram atualmente muitos escândalos muito afora, a teologia esteja reconsiderando eliminar esta conduta de sua lista de pecados.
As Ações Futuras
No caso da ADPF 153 e no da extradição 1085, a maioria do STF (que foi diferente em ambos os casos) colocou uma bomba de alto poder em duas das mais relevantes garantias dos direitos humanos: a punição/prevenção da tortura e o genocídio, no primeiro caso, e o direito de asilo, no segundo.
No caso de asilo, o impacto é menor porque, como provarei numa matéria próxima, o Brasil está por baixo do lugar 130º entre os países que concedem refúgio/asilo. Isto desmente a incompreensível e paranóica crença de que o país é enormemente aberto aos perseguidos, e que será invadido por criminosos, como dizem algumas mentes alucinadas nos comentários de jornais e blogs.
De qualquer maneira, vista como uma questão de princípios, a anulação do judiciário de um refúgio concedido pela autoridade competente, é um fato sem antecedentes tanto na Europa Ocidental quanto nas Américas. Aliás, ninguém imagina que um tribunal pudesse anular um refúgio, salvo por um ato criminoso da autoridade que o concedeu (por exemplo, se um ministro decidisse dar refúgio a Bin Laden, o identificando como um anônimo árabe perseguido, digamos, o vendedor de roupa Abu Ali), mas não por um interpretação técnica do conteúdo.
Contrariando algumas opiniões respeitáveis, considero impossível que esta situação (refiro-me às decisões judiciais e não aos fatos julgados) seja revertida dentro das instituições próprias do país, e a demora em encontrar uma solução internacional só conseguirá estimular a barbárie das gangues repressivas, as torturas e assassinatos policiais (alguns muito especializados, como no caso dos motoboys), e talvez ações futuras muito graves. Não devemos ser catastrofistas, mas a precariedade de nossa democracia é óbvia. As elites estão contentes porque o desenvolvimento do país aumenta seus lucros, mas não podemos esquecer que um governo com uma política de centro sempre merecerá a desconfiança e o desprezo das classes altas que exigem um poder exercido pela ultradireita.
Por outro lado, mesmo se não fosse imprescindível o recurso a uma autoridade internacional, é um ato educativo fundamental na política de Direitos Humanos enfatizar que os crimes contra a humanidade são universais, e os tribunais que lidam com eles possuem jurisdição planetária.
A Corte Penal Internacional talvez não possa ser utilizada neste caso, porque, por causa das pressões dos Estados Unidos e alguns outros países, seu funcionamento sofre às vezes de interferências. Por exemplo, a Corte não acolhe a tradição dos julgamentos de crimes de guerra, que, diferentemente do direito convencional, permite a retroação, como aconteceu em Nuremberg e na Grécia, mas exige que os crimes julgados tenham sido cometidos após 2002.
Entretanto, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, e a respectiva Corte, estão funcionando relativamente bem, com uma morosidade muito menor que em outras épocas. Depois dos acordos de Contadora, as ações diretas de militares americanos e seus aliados no Continente tem-se tornado mais fracas, salvo na Colômbia. Isto diminui o temor do Comando Sul e da CIA de que seus mercenários venham ser indiciados. Ao mesmo tempo, a OEA progrediu moral e socialmente graças ao surgimento de governos avançados na região, e da administração de José Miguel Insulza, um antigo membro do MAPU chileno que preserva parte de seus sentimentos de esquerda.
Por outro lado, temos evidências factuais de que a CIDH e a Corte Interamericana estão reagindo com bastante celeridade às queixas contra violações dos DH. Minha denúncia no caso Battisti demorou seis meses para a apreciação inicial, mas atualmente está congelada a meu pedido, por causa da solução institucional dada pela Presidência. Quando me referi a meu ceticismo sobre soluções internas, não estava aludindo ao caso específico de Césare Battisti, que entendo vai ser resolvido. Minha referência era à anulação de acórdão judicial, algo que só pode ser feito por outra corte de maior jurisdição.
Um caso de maior repercussão é a denuncia dos desaparecidos de Araguaia, que deverá ser julgada nos dias 20 e 21 de maio. As penalidades que a Corte pode impor ao país são administrativas, pois os jogos internacionais de interesses impedem que a Corte Interamericana possa aplicar medidas prisionais como a Corte Penal internacional. Entretanto, mesmo assim seriam importantes, pois contemplam indenizar as vítimas, forçar uma mudança na legislação e introduzir educação em DH para os militares, uma atividade que se pratica nos países mais avançadas e até, parcialmente, em alguns estados subdesenvolvidos.
Para ter uma idéia de como é necessária uma ação sincronizada e uma ação de esclarecimento maciça e incansável, observe que estas reparações mínimas, que até ajudariam eventualmente a ter uma força de repressão menos cruel, encontram resistências no governo. O ministro Jobim, que mostra inocultável pânico quando recebe uma repreensão de seus “subordinados” militares, desafiou à Corte de que não cumpriria as eventuais condenações. (Vide)
O recurso internacional fortifica o sentimento da universalidade dos Direitos Humanos e as punições por suas violações. Além disso, contribui a estreitar um relacionamento internacional entre as ONGs que defendem esses direitos nos diversos países. Como já temos visto em várias atitudes recentes, o oportunismo e utilitarismo das relações internacionais estão exacerbados, e é necessária a construção de relações internacionais paralelas entre órgãos que se propõem como objetivo a justiça e a felicidade dos povos e não apenas o poder, o lucro ou algumas poltronas mais confortáveis nas Nações Unidas.
Do ponto de vista prático, deve lembrar-se que o julgamento dos genocidas argentinos, que é muito louvado pelos ativistas de outros países, especialmente do Brasil, mesmo que deva muito à militância interna dos familiares dos desaparecidos, teria sido impossível sem uma poderosa pressão internacional que se exerce sobre os tribunais austrais desde há décadas. Países como Suécia, França, Holanda e muitos outros, que incluem até Espanha e Itália, têm exigido permanentemente a entrega dos genocidas que mataram seus cidadãos. Um hiper-genocida argentino da aviação naval foi condenado a várias décadas de prisão na Espanha
Mesmo assim, eu calculo que, do total de pessoas comprometidas com crimes de lesa humanidade, em condições físicas de responder por suas atrocidades, os que já foram processados não ultrapassam o 2%.
Portanto, deve ser organizada rapidamente uma ampla campanha para apresentar junto à CIDH uma denúncia documentada, justificada e apoiada por todos os setores da sociedade que aceitem participar. Isto deve ser amplamente divulgado em todas as escalas e ser utilizado como elemento de educação e informação boca-a-boca, como faziam os partidos de esquerda e também fez o próprio PT na década de 1980. Além disso, a denúncia deve incluir todos os cúmplices dos criminosos, sejam civis ou militares, e também os que, tendo possibilidade de puni-los, se omitirem. Lembrem que o Código Penal condena a omissão de socorro em caso de acidente. Então, a omissão dos que têm o dever de punir também deve ser condenada.
Apesar de que a situação é difícil, há reflexões que ajudam a sobreviver. É considero alentador este pensamento, que aprendi do assassinado primeiro ministro da Suécia, Sven Olof Pälme (1927-1986), quando fiz minha primeira experiência na Europa.
As elites têm as armas, o dinheiro e a mídia. Nós temos a coragem, a inteligência e o amor. É uma luta desigual, e por isso muitas vezes somos vencidos, mas as elites nunca conseguirão nos esmagar definitivamente.

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