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quarta-feira, 24 de março de 2010

TORTURA, ATÉ QUANDO MAIS?

Graças a uma indicação do bom amigo e correspondente José Caldas da Costa, autor de Caparaó - a primeira guerrilha contra a ditadura, tomei conhecimento detalhado de um dos muitos casos escabrosos das prisões do Espírito Santo, este ocorrido no município de Viana.

O jornal capixaba em que Caldas colabora tem nome engraçado, Século Diário. Faz lembrar o Planeta Diário, no qual o Super-Homem finge ser apenas o tímido repórter Clark Kent.

Mas, foi alentador constatar que, longe dos grandes centros, continua se praticando o jornalismo de verdade que, aqui, no más.

Primeiro, o Século Diário fez longa e dramática reconstituição (Masmorras escondem histórias de morte, dor e suplício), em sua edição do último fim de semana, de um episódio de julho de 2009: Lucas Costa de Jesus, de 19 anos, detido por bancar seu vício em drogas traficando pequenas quantidades de maconha, foi alvejado pela tropa de choque que invadiu seu pavilhão na chamada penitenciária de Cascuvi. A bala de borracha o deixou com o lado esquerdo do corpo paralisado, preso a uma cadeira de rodas.

As recordações da casa dos mortos que o repórter José Rabelo colheu de Lucas são bem mais estarrecedoras do que as de Fiodor Dostoievski. Como esta, sobre o assassinato de um preso por outros:
"Lucas conta que durante o curto período em que esteve em Cascuvi, presenciou a cena bárbara de um detento sendo esquartejado. 'Eles chegam bem de surpresa. Enquanto uns cobrem cabeça do preso com um lençol, os outros já vão enfiando os chuchos (...) no peito e na barriga. Na sequencia, eles começam a cortar as partes do corpo. Puseram o coração ainda quente na minha mão e eu tive que segurar. Dava pra ver aquelas coisa amarela saindo. Acho que era gordura'".
E eis o episódio que o privou de uma existência normal:
"Lucas (...) não se lembra de quase nada que aconteceu na noite daquela sinistra segunda-feira (13/07/2009). 'Estava me preparando pra dormir. Já estava até deitado na parte de cima do beliche. Era mais de dez horas da noite quando escutamos os passos dos policiais do BME [Batalhão de Missões Especiais] subindo as escadas correndo. Eles começaram a bater no chapão. Depois entraram com tudo, batendo na gente com cassetetes, dando tiros de 12 e jogando gás. Quando acordei, já estava no hospital. Não me lembro de mais nada. Só sei que estou vivo hoje porque (...) um preso me pegou no colo e implorou socorro para mim".
Depois de passar quase um mês em coma, Lucas voltou a Cascuvi e acabou sendo libertado pela Justiça em função da lastimável condição física a que fora reduzido (tendo até de usar fraldas geriátricas) e da inexistência de cuidados médicos adequados naquela penitenciária.

Apesar da inacreditável omissão do Estado, que não fornece recursos para sua reabilitação (a família é paupérrima e não tem como custear tomografias, fisioterapia, etc.), ele já começa a andar com muletas.

VISITANTES: REVISTAS ÍNTIMAS DE
MENINOS DURAM QUASE MEIA HORA

Mas, o pior de tudo é que não se trata de caso isolado naquele pretenso centro de reeducação (duplipensar orwelliano?), mas sim da ponta de um iceberg, conforme se constata na reportagem seguinte do Século Diário, Pedro Valls exige que caso de baleado na Cascuvi seja investigado ‘até o fim’.

Aí ficamos sabendo que, em agosto/2009, o então desembargador Pedro Valls Feu Rosa, pediu providências das autoridades competentes para apuração imediata de crimes de execuções e torturas e lesões corporais contra Lucas e outros 12 detentos, assinalando:
“...todos os laudos de exame de lesões corporais destes 13 reeducandos foram emitidos em um mesmo dia! Em todos eles o médico legista (...) foi claro: ‘Houve ofensa à integridade física ou à saúde do paciente, e esta ocorreu em decorrência de ação contundente’. (...) Chamou-me a atenção, na sinistra lista que li, o relato alusivo ao (...) 'Lucas Costa de Jesus. Vítima de tortura, espancamento e lesões corporais (...) por parte de policiais dentro do presídio’.(...) Noventa dias foi o tempo que o Estado levou para massacrá-lo, torturá-lo, transformá-lo em paraplégico e depois colocá-lo em liberdade (...) preso a uma cadeira de rodas”.
E o quadro geral que o desembargador apresentou de Cascuvi, novamente, consegue superar o que Dostoievski e nosso Graciliano Ramos narraram, só ficando atrás mesmo dos horrores relatados por Alexander Soljenitsin:
Ocupação das celas. “São inúmeras as denúncias sobre a venda das mesmas. O preso que não tem como pagar passa de presídio em presídio e fica geralmente nas celas mais superlotadas e sujas. Para ter direito a cama ou (...) rede (...) tem que pagar. No IRS a galeria (...) destinada a presos que trabalham (...) custa muito dinheiro. Temos informação que chega a custar até R$ 15 mil uma vaga nessa galeria.”

Saúde. “60% dos detentos estão infectados com doenças infectocontagiosas somente porque faltam condições mínimas de higiene, tais como banheiro decente, água filtrada e sabão.”

Alimentação. “A comida que é servida aos presos é horrível, além de custar em média 12 a 14 reais e vem sempre estragada, fria e entregue fora do horário comum das refeições.”

Visitas. “Fila para entrar. Mesmo chegando às 5 horas da manhã não se consegue entrar no horário, pois as mulheres dos chefes do crime chegam tarde e entram na frente da fila, pois os seus lugares são garantidos pelos próprios policiais.”

Revista íntima dos familiares. “Há ocasiões onde várias mulheres ficam nuas durante horas aguardando as agentes concluírem a revista. Os locais das revistas são imundos, cheios de fungos. As revistas são coletivas, o que constrange ainda mais. As portas são abertas sem nenhum cuidado, com as mulheres ainda nuas. É comum as mães, mulheres e irmãs ouvirem comentários maldosos e olhares indiscretos dos agentes e policiais. Porém o pior acontece com as crianças e principalmente com os meninos. Ficam nus sozinhos e tem seus órgãos genitais revistados por policiais militares. Temos relato de que às vezes uma revista em uma criança chega a durar quase meia hora. (...) Em outras vezes as meninas são revistadas junto com as mães tendo que assistir todo o procedimento vexatório que a sua mãe é submetida e sendo obrigada a olhar e depois essa mesma criança fica completamente nua diante das agentes. (...) No dia de visita a maior parte dos familiares sai chorando e constrangido da sala da revista íntima.”

Crime de tortura. “Destes temos as provas de uns cem e temos também um CD com fotos de todos esses casos."
Lucas confirma as torturas:
“Eu apanhava ou era torturado sem saber qual era o motivo. Os policiais ou agentes chegavam de repente, mandavam a gente tirar toda a roupa e levavam a gente pro pátio, que já estava todo molhado. Isso tudo debaixo de pancada. Depois eles mandavam a gente sentar no chão molhado e começavam a dar choque. Eles riam muito da nossa cara”.

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