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terça-feira, 9 de março de 2010

O QUE AFUGENTOU BERLUSCONI, AFINAL?

"Um homem de moral
não fica no chão

Nem quer que mulher
Venha lhe dar a mão
Reconhece a queda
e não desanima

Levanta, sacode a poeira
E dá a volta por cima"
(Paulo Vanzolini)

O primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi deveria ter chegado segunda-feira (08/03) ao Brasil, para visita oficial.

Desistiu na enésima hora, a tarde de sexta-feira (05/03), sem quê nem pra quê.

O Ministério das Relações Exteriores brasileiro comunicou apenas que a visita tinha ido para o espaço. Se nosso governo foi inteirado do verdadeiro motivo calou, da mesma forma que as autoridades italianas.

A BBC Brasil recorreu à correspondente em Roma, Assimina Vlahou, que tentou e não conseguiu esclarecer o episódio:
"A assessoria de imprensa do governo italiano informou (...) que a viagem do primeiro-ministro não foi cancelada, mas adiada, sem explicar, contudo, o motivo do adiamento. Uma nova data será definida.

"'Somente após a definição da nova data será explicado o motivo do adiamento', informou um dos assessores do premiê".
A jornalista especulou, então, que a causa poderia ser uma crise política relacionada às eleições regionais marcadas para o fim do mês. Papo furado.

Tal crise existe mesmo: o partido fascistóide de Berlusconi, cuja denominação (Povo da Liberdade) é típico duplipensar orwelliano, deveria ficar de fora do pleito nas duas principais regiões do país devido a irregularidades em suas listas de candidatos, mas o governo remediou/remendou a situação com um decreto-lei, obviamente casuístico.

Até a Conferência Epicospal Italiana ficou contra. Seu responsável por assuntos jurídicos, Domenico Mogavero, declarou, ao ser entrevistado pela Rádio Vaticana:
"Mudar as regras enquanto o jogo está em andamento é incorreto, porque se legitima qualquer intervenção arbitrária".
Há, no entanto, um porém: fosse esta a razão do adiamento, por que não a estariam admitindo? Afinal, não se trata de uma sigilosa crise de bastidores, mas sim de uma que transcorre às claras. Quem recriminaria Berlusconi por preferir apagar os incêndios domésticos, antes de viajar?

Se o primeiro chute da correspondente da BBC pareceu ter passado perto da trave, no segundo ela simplesmente isolou a bola:
"Além da questão das listas eleitorais, Silvio Berlusconi enfrenta problemas com o suposto envolvimento de funcionários do governo em casos de corrupção e com o processo no tribunal de Milão sobre supostas irregularidades na compra de direitos televisivos pelas empresas de propriedade do primeiro-ministro.

"No processo, cuja audiência foi marcada inicialmente para esta segunda-feira e adiada para o próximo dia 12 de abril, Silvio Berlusconi está sendo acusado de fraude fiscal".
Alguém consegue discernir alguma emergência nesses casos que se arrastam há anos? Eu, não.

O XÍS DA QUESTÃO

São essas as besteirinhas a que a grande imprensa brasileira dá credito, reproduzindo-as na maioria dos veículos. A BBC Brasil é in, os comentaristas independentes somos out, embora sejam nossas avaliações as que acabam quase sempre se confirmando.

O que aconteceu de realmente inesperado na última sexta-feira foi o anúncio da sentença da Justiça Federal do Rio de Janeiro, condenando o perseguido político italiano Cesare Battisti a prestar serviços comunitários durante dois anos, porque estava portando passaporte falsificado ao ser preso no Rio de Janeiro, em março de 2007.

Para bom entendedor, foi o xeque-mate na estapafúrdia, rancorosa e extemporânea caça às bruxas em que o Governo Berlusconi tanto se empenhou.

Enquanto estiver cumprindo a sentença brasileira, Battisti não poderá ser extraditado. Depois, a sentença italiana já terá prescrito, mesmo segundo os critérios anômalos que o tendencioso relator do processo de extradição no Supremo Tribunal Federal, Cézar Peluso, introduziu para contornar a pequena inconveniência de a prescrição já haver ocorrido.

A menos que o presidente da República o eximisse do cumprimento da pena daqui, lembrou Célio Borja, que foi ministro da Justiça de Collor.

Fazendo lobby em favor do linchamento, Borja apontou a possibilidade de nosso legalista presidente Luiz Inácio Lula da Silva atropelar uma sentença da Justiça brasileira para atender a espúrios interesses estrangeiros (uma mera vendetta de direitistas empedernidos e comunistas envergonhados, estes últimos querendo silenciar quem denuncia consistentemente o papel infame que o PCI desempenhou nos anos de chumbo, acumpliciando-se aos excessos policiais e farsas judiciais perpetrados contra a ultra-esquerda).

Sabem qual a chance disso acontecer? Nenhuma. Lula tem vergonha na cara, ao contrário dos brasileiros que rezam pela cartilha berlusconiana.

Quanto a como procederá seu sucessor, é uma incognita, claro.

Mas, tão abjeta sujeição a imposições externas pegaria mal para qualquer presidente. O estigma que Getúlio Vargas carregou por haver entregado Olga Benário aos nazistas ainda está bem vivo na memória dos brasileiros.

Isto, claro, na eventualidade de o Supremo Tribunal Federal continuar redigindo com lerdeza exasperante o acórdão de sua decisão de novembro/2009 sobre o Caso Battisti, que só passará à alçada de Lula depois da publicação da sentença.

Quando o STF finalmente cumprir com sua obrigação, Lula dará a palavra final.

E esta vai ser, todos sabem, a confirmação da decisão que seu governo tomou em janeiro/2009, quando concedeu a Battisti o direito de escrever seus livros no Brasil, em liberdade e em paz.

Isto é reconhecido na própria matéria da BBC Brasil (vindo, aliás, ao encontro do que a comentarista Eliana Cantanhêde antecipou e eu noticiei):
"A tendência, depois de entendimentos com autoridades italianas, é que o presidente Lula anuncie sua decisão depois da eventual visita do premiê italiano ao Brasil e de uma forma que não questione o funcionamento das instituições italianas nem a democracia no país".
Traduzindo: os italianos já se conformam com uma decisão favorável a Battisti, desde que o anúncio não coincida com a estada de Berlusconi e seja justificada por razões humanitárias, não pelas aberrações jurídicas que marcaram os processos italianos dos anos de chumbo, destacadas pelo ex-ministro da Justiça Tarso Genro quando apreciou o caso.

Foi aí que a coisa pegou. A sentença da Justiça Federal do RJ surpreendeu a todos, pulverizando de vez as possibilidades de extradição.

E Berlusconi, mau perdedor, não quis ser indagado sobre sua acachapante derrota, assunto que inevitavelmente entraria como prato principal no cardápio jornalístico se ele desembarcasse aqui logo depois do desfecho real do Caso Battisti, cujos trâmites restantes serão meramente formais.

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