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segunda-feira, 8 de março de 2010

FOUCAULT - HISTÓRIA DA SEXUALIDADE (RESENHA DO LIVRO)

Resenha - Michel Foucault

Marko Monteiro (markosy@uol.com.br)

(Campinas, 1997)

A) FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A Vontade de Saber. Rio de Janeiro: Graal, 1993.

Scientia Sexualis

Neste capítulo, Foucault analisa o que ele denomina de scientia sexualis, ou uma ciência do sexo, uma ciência que pretendia iluminar esse aspecto do ser humano. A partir dos séculos XVI e XVII vemos na sociedade ocidental uma multiplicação de discursos sobre o sexo que, ao esquadrinhá-lo, definí-lo, acabaram por ocultá-lo, segundo o autor. Isso vai contra o senso comum que prega que, até o século XIX, o sexo era reprimido, ocultado, negado. Foucault diz claramente que existiu um projeto de iluminação de todos os aspectos do sexo, do seu esquadrinhamento. Cria-se neste momento um aparelho que, ao multiplicar os discursos sobre o sexo, visa produzir verdades sobre ele. No século XIX, momento crítico, esse projeto alia-se a um projeto científico, fatalmente comprometido com o evolucionismo e com os racismos oficiais. O discurso médico, sob uma aura de neutralidade científica, produz crescentemente verdades sobre o sexo, mas que estava ligado a uma moral da assepsia e da conexão entre o "patológico" e o "pecaminoso". A medicina do sexo se associa fortemente à biologia (evolucionista) da reprodução. Essa associação do discurso sobre o sexo com o discurso científico deu a ele maior legitimidade.

Foucault opõe dois conceitos, o de ars erotica e o da scientia sexualis.

Ars erotica, própria de civilizações como Roma, Índia, China, etc., buscavam no saber sobre o prazer formas de ampliá-lo, era um saber de dentro, onde a verdade sobre o prazer é extraída do próprio saber.

No ocidente configurou-se a scientia sexualis, onde a confissão é central na produção de saberes sobre o sexo. Os ocidentais são levados a confessar tudo, expor seus prazeres, uma obrigação já internalizada. A confissão estabelece uma relação de poder onde aquele que confessa se expõe, produz um discurso sobre si, enquanto aquele que ouve interpreta o discurso, redime, condena, domina.

No século XIX o procedimento da confissão extrapola a penitência, extrapola o domínio religioso. Há uma sobrecarga de discursos, e a interferência de duas modalidades de produção da verdade: os procedimentos da confissão e a discursividade científica.

Foucault enumera as maneiras, as estratégias usadas para extorquir a verdade sexual de maneira científica:

1- codificação clínica do fazer falar: a confissão é assim inscrita no campo de observações científicas;

2- postulado da causalidade geral e difusa: qualquer desvio possui consequências mortais, o sexo representa perigos ilimitados;

3- princípio da latência intrínseca da sexualidade: o sexo é clandestino, sua essência é obscura. A coerção da confissão é articulada à prática científica;

4- interpretação: a verdade era produzida através dos discursos interpretativos da confissão;

5- medicalização: confissão é transposta no campo do normal e patológico. Os médicos são por excelência os intérpretes da verdade sobre o sexo.

Em ruptura com as tradições da ars erotica, nossa sociedade constituiu uma scientia sexualis. Mais precisamente, atribuiu-se a tarefa de produzir discursos verdadeiros sobre o sexo, e isto tentando ajustar, não sem dificuldade, o antigo procedimento da confissão às regras do discurso científico. (FOUCAULT, 1993:66)

Desde o século XVI, esse rito fora, pouco a pouco, desvinculado do sacramento da penitência e, por intermédio da condução das almas e da direção espiritual - ars artium - emigrou para a pedagogia, para as relações entre adultos e crianças, para as relações familiares, a medicina e a psiquiatria. (FOUCAULT, 1993:67)

Em todo caso, a hipótese de um poder de repressão que nossa sociedade exerceria sobre o sexo e por motivos econômicos, revela-se insuficiente se for preciso considerar toda uma série de reforços e de intensificações que uma primeira abordagem manifesta: proliferação de discursos, e discursos cuidadosamente inscritos em exigências de poder; solidificação do despropósito sexual e constituição de dispositivos suscetíveis, não somente de isolá-lo, mas de solicitá-lo, suscitá-lo, constituí-lo em foco de atenção, de discursos e de prazeres; produção forçosa de confissão e, a partir dela, instauração de um sistema de saber legítimo e de uma economia de prazeres múltiplos. Muito mais do que um mecanismo negativo de exclusão ou de rejeição, trata-se da colocação em funcionamento de uma rede sutil de discursos, saberes, prazeres e poderes; não se trata de um movimento obstinado em afastar o sexo selvagem para alguma região obscura e inacessível mas, pelo contrário, de processos que o disseminam na superfície das coisas e dos corpos, que o excitam, manifestam-no, fazem-no falar, implantam-no no real e lhe ordenam dizer a verdade: todo um cintilar visível do sexual refletido na multiplicidade dos discursos, na obstinação dos poderes e na conjugação do saber com o prazer. (FOUCAULT, 1993:70-71)

A história da sexualidade, para o autor, deve ser feita a partir de uma história dos discursos.

O Dispositivo da Sexualidade

Foucault expõe, neste capítulo, a sua concepção de poder, difuso no social e presente em todos os pontos, e faz a relação disso com o discurso e a sexualidade.

O autor recusa imediatamente a imagem do poder como meramente opressor, negador do sexo, este uma força selvagem, a ser domesticada. Ele quer compreender como o poder e o desejo se articulam Essa imagem do poder como repressor da liberdade permite-nos, segundo o autor, aceitar a sua vigência, pois o alcance do poder é muito maior. O discurso jurídico e as leis não mais simbolizam o poder de maneira mais ampla; este extrapolou seus limites a partir do século XVIII, criando novas tecnologias de dominação. Nós somos controlados e normatizados por múltiplos processos de poder. Essa visão do poder também é vital para uma história da sexualidade.

"Dizendo poder, não quero significar 'o poder', como um conjunto de instituições e aparelhos garantidores da sujeição dos cidadãos em um estado determinado. Também não entendo poder como um modo de sujeição que, por oposição à violência, tenha a forma de regra. Enfim, não o entendo como um sistema geral de dominação exercida por um elemento ou grupo sobre o outro e cujos efeitos, por derivações sucessivas, atravessem o corpo social inteiro. A análise em termos de poder não deve postular, como dados iniciais, a soberania do Estado, a forma da lei ou a unidade global de uma dominação; estas são apenas e, antes de mais nada, suas formas terminais. Parece-me que se deve compreender o poder, primeiro, como a multiplicidade de correlações de forças imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização; o jogo que, através de lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte; os apoios que tais correlações de força encontram umas nas outras, formando cadeias ou sistemas ou ao contrário, as defasagens e contradições que as isolam entre si; enfim, as estratégias em que se originam e cujo esboço geral ou cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais." (FOUCAULT, 1993:88-89).

O poder, para Foucault, provém de todas as partes, em cada relação entre um ponto e outro. Essas relações são dinâmicas, móveis, e mantêm ou destróem grandes esquemas de dominação. Essas correlações de poder são relacionais, segundo o autor; se relacionam sempre com inúmeros pontos de resistência que são ao mesmo tempo alvo e apoio, "saliência que permite a preensão" (FOUCAULT, 1993:91). As resistências, dessa forma, devem ser vistas sempre no plural.

Para uma metodologia de análise, Foucault sugere quatro "prescrições de prudência":

1- regra de imanência: a produção de saberes se relaciona com relações de poder; focos de saber-poder;

2- regra das variações contínuas: as relações de poder não são estáticas, não há dualidade opressor/oprimido;

3- regra do duplo condicionamento: os focos locais de poder são condicionados por estratégias globais e vice-versa, ambos apoiando-se mutuamente um no outro;

4- regra da polivalência tática dos discursos: o discurso não reflete a realidade, o poder e o saber se articulam no discurso. Não há discurso excluído e o dominante, mas uma multiplicidade de discursos, que se inserem em estratégias diversas. O discurso veicula e produz poder. Por exemplo: o discurso instituiu a homossexualidade como pecado, classificou-a como patologia, mas também possibilitou-a de falar por si, de reivindicar espaços e discursos próprios.

Foucault fala de quatro estratégias globais de dominação, constituintes do dispositivo da sexualidade: a histerização do corpo da mulher, a pedagogização do corpo da criança, a socialização das condutas de procriação e a psiquiatrização do prazer "perverso". Essa nova tecnologia sexual surge no século XVIII, criando uma relação entre degenerescência, hereditariedade e perversão.

O dispositivo da sexualidade, que instituiu o sexo como verdade maior sobre o indivíduo, transpôs o controle para a carne, os corpos, os prazeres. O autor contrapõe isso ao dispositivo da aliança, que definia o proibido/permitido através da relação. O dispositivo da sexualidade vê sua ascensão no seio da burguesia, é ligado à ascensão desta. As classes populares submetidas antes somente ao dispositivo da aliança, se viram submetidas também ao dispositivo da sexualidade com a hegemonia burguesa.

FONTE : http://www.artnet.com.br/~marko/resenhafoucault.htm

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