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sábado, 20 de fevereiro de 2010

Mulheres: tempos diferentes, discursos iguais – A luta continua por uma vida mais justa e digna para todas/todos


 

“Os deuses criaram a mulher para as funções domésticas, o homem para todas as outras. Os Deuses a puseram nos serviços caseiros, porque elas suportam menos bem o frio, o calor e a guerra. As mulheres que ficam em casa são honestas e as que vagueiam pelas ruas são desonestas”. (Xenofonte: 427 –355 a.C.)

 

Neste mês de março comemora-se o Dia Internacional das Mulheres e com este texto busca-se fazer uma breve reflexão sobre os discursos que circulavam (circulam) na nossa sociedade sobre elas, desde o período de 400 a.C. até os dias atuais.

Platão, um filósofo que viveu entre 427-347 a. C., preocupou-se em explicar as questões da origem do homen. “Entre os homens que receberam a existência, todos os que se mostraram cobardes e passaram a sua vida a praticar o mal foram, conforme toda a verossimilhança, transformados em mulheres na segunda encarnação, (Platão, 1986:154)”. Segundo este filósofo, os homens que se enveredaram para caminhos errantes que, os distanciavam da constituição de uma ética de vida e não conseguiam o acesso ao mundo do conhecimento intelectual, teriam uma segunda chance sendo mulheres. Enfim, este autor considerava as mulheres como a reencarnação destes homens que fracassaram na sua primeira vida. É preciso considerar que seu pensamento é coerente à estrutura social das polis gregas cuja, base era patriarcal e práticas homoeróticas entre o sexo masculino eram comuns e consideradas “normais”.[1] Na chamada democracia de Atenas, demiurgos (estrangeiros), mulheres e escravos, a maioria da população, não votavam nem tinham direito de participar das decisões públicas.

A mulher ocidental, durante longos séculos, foi proibida de trabalhar, estudar, sair à rua sem a anuência do seu dono, pai ou marido. Ela era tratada como propriedade, objeto, em virtude dos discursos opressionistas que buscavam, através das diferenças biológicas entre homens e mulheres, explicar as desigualdades de direitos.

No livro Escola de Mulheres, do século XVII, o diálogo entre Arnolfo e Crisaldo retrata como deveria ser a mulher ideal, (Molière,1996:10).

Arnolfo – Caso com uma tola para não bancar o tolo.(... ) Uma mulher esperta é mau presságio; eu sei o quanto custou a alguns casarem com mulheres cheias de talentos; me caso com uma intelectual, (...) e fico apenas sendo marido de madame.(... ) Mulher que escreve sabe mais do que é preciso. Pretendo que a minha seja bastante opaca para não saber nem o que é uma rima. (...) Em suma, desejo uma mulher de extrema ignorância. Que já seja demais ela saber rezar, me amar, cozer, bordar!

Neste diálogo, constata-se que o homem possuía receio em casar-se com uma mulher que soubesse mais ou tanto quanto ele. É possível constatar ainda, num diálogo entre Arnolfo e a sua futura esposa Inês, como a mulher era representada nos discursos da época, quais eram as suas obrigações e que posição ela ocupava no casamento:

Arnolfo: vou me casar com você Inês; cem vezes por dia você deverá agradecer esta honra bendita (...). Seu sexo nasceu para dependência. A onipotência é para quem tem barba! (Molière,1996:41).

O filósofo Rousseau, que viveu entre 1712 até 1778, dizia que a mulher só deveria cultivar a razão, se essa faculdade pudesse lhe garantir o cumprimento de seus deveres considerados como “naturais”, ou seja, obedecer e ser fiel ao marido e cuidar dos filhos e da casa. Segundo esse autor, a mulher que ousasse se dedicar à vida intelectual deveria permanecer solteira. Ela iria contra a sua natureza, contra os seus deveres de esposa, como podemos observar, (ROUSSEAU, 1968: 490).

Mas eu ainda prefiro cem vezes mais uma jovem simples e grosseiramente educada, a uma jovem culta e enfatuada, que viesse estabelecer no lar um tribunal de literatura de que seria presidenta. Todas essas mulheres de grandes talentos só aos tolos impressionam. Toda jovem letrada permanecerá solteira a vida inteira, em só havendo homens sensatos na terra.

Um outro exemplo de opressão feminina aparece com evidência por volta de 1920, no livro O status intelectual da mulher, de Virgínia Woolf, em que a escritora inglesa mostra como as mulheres são impedidas de se desenvolverem intelectualmente na sociedade, (WOOLF, 1997: 36).

É preciso que as mulheres tenham liberdade de experimentar, que possam ser diferentes dos homens, sem medo, e que expressem estas diferenças livremente; que toda a atividade intelectual seja bastante estimulada de forma que sempre haja um núcleo de mulheres que pensem, inventem, imaginem e criem tão livremente quanto aos homens, e com tão pouco medo do ridículo ou de condescendência. Estas condições, a meu ver de grande importância, são impedidas (...), pois um homem ainda tem mais facilidade que as mulheres para tornar seus pontos de vista conhecidos e respeitados.

Discursos sobre a necessidade de manter as mulheres na ignorância circularam durante longos períodos. Esses discursos dificultavam à conquista dos direitos das mulheres à educação e à profissionalização. Acreditava-se que, quanto menos as mulheres soubessem, melhores esposas seriam. Tais discursos sobre as mulheres, sobre como elas deveriam se preparar para serem boas esposas, mães, implicavam na convenção de que não havia, para isso, a necessidade de muitos estudos.

Se o marido possuísse boas condições financeiras, a mulher não necessitava trabalhar, ter uma profissão para contribuir no orçamento familiar. Ainda hoje, o marido é considerado por alguns como o responsável pelo sustento do lar. Enfim, tempos diferentes e discursos iguais sobre a mulher. Segundo (COLLING, 2000: 49):

O discurso da inferioridade feminina estava tão arraigado na estrutura da vida das mulheres e dos homens que poucos o questionaram. A maioria das mulheres acomodavam-se na instituição familiar dominada pelos homens, que lhe garantiam subsistência, lhe ofereciam um companheiro para toda a vida e forneciam um sentimento de proteção frente ao cotidiano da vida. Vivendo para seus maridos, esquecidas, esqueciam de pensar sobre si mesmas.

Os discursos retratavam as mulheres como seres imperfeitos por natureza, seres inferiores aos homens e que, naturalmente, estariam destinadas a serem submissa a eles. A natureza feminina era considerada desde sempre como algo dado, mas segundo (HÉRITIER, 1996:282), “não existe instituição social que se baseie exclusivamente na natureza. Todas são um efeito da arte, da invenção dos grupos, nos limites, certamente, do fato biológico e natural”.

As ideologias positivistas e higienistas também preocupavam-se em manter a mulher no espaço doméstico e impor-lhe regras de conduta que regulavam seu comportamento, constituindo-a, assim, na esposa perfeita, submissa ao marido e, depois, aos filhos homens.

A mulher, até 1840, era considerada como “boneca”, “criança mimada”. Mais tarde, ela conquistou a posição de “pedestal”, passando a ocupar outros espaços além da cozinha. Com a passagem do arquétipo de “boneca”, para “anjo”, “rainha do lar”[2], a mulher começa a ser tratada com mais respeito e com direito à educação, para cumprir adequadamente com as obrigações de sua nova posição. Mesmo assim, a educação feminina ainda visava à formação da esposa agradável e da mãe competente.

Segundo (PERROT, 1988:186), “o século XIX levou a divisão das tarefas e a segregação sexual dos espaços ao seu ponto mais alto. Seu racionalismo procurou definir estritamente o lugar de cada um”. À mulher era delegado o espaço da casa, da maternidade e do magistério. O homem assumia cargos de poder, como a política, a medicina etc. Nesse período, os homens ainda eram ensinados a olhar as suas mães e esposas como outras “Marias”, isto é, como “santas”.

Com o processo de urbanização e industrialização e a emergência de uma camada média detentora de uma cultura escolarizada, ampliaram-se as fronteiras para a profissionalização das mulheres, ensejando mudanças acerca do que a sociedade pensava sobre o papel destinado a elas. Essas múltiplas transformações sócio-econômicas ocorridas nos últimos séculos alargaram de forma notável a visibilidade da mulher. O aumento dos padrões industriais do mundo contemporâneo criou as condições propícias para a sua inserção no mundo do trabalho.

Passaram-se milênios, séculos, décadas desde o período da Antigüidade grega. Muitas mudanças, conquistas, rupturas aconteceram na sociedade, na vida das mulheres, durante esse longo período. Mas, ainda há concepções, há discursos que consideram a mulher como um ser inferior. Um fator que possibilita pensar nesta direção, é o alarmante índice de violência[3] contra as mulheres, principalmente no ambiente doméstico. Segundo os dados da ONU, em todo o mundo, pelo menos uma a cada três mulheres já foi espancada, coagida ao sexo ou sofreu alguma forma de discriminação durante a vida. Um outro fator, é que muitas mulheres ainda recebem um salário inferior em comparação aos homens que, desempenham a mesma função.

Neste mês de março, em especial, são realizadas palestras, conferências, protestos, demonstrações de luta por uma vida mais digna para todos os sexos, em vários países. E que estas manifestações, sirvam para fomentar a discussão e a conscientização de que, as políticas públicas são necessárias para a redução da desigualdade, da discriminação, da violência e da violação dos direitos humanos.



Bibliografia:

COLLING, Ana Maria. A construção da cidadania da Mulher Brasileira: a questão da igualdade e da diferença. PUC - RS. Porto Alegre, 2000, p. 49. (Tese de doutorado)

HÉRITIER, Françoise. Masculino/Femenino. El pensamiento de la diferencia. Barcelona: Ariel, 1996, p. 282.

Lei Maria da Penha: 11.340/2006 (LEI ORDINÁRIA) 07/08/2006. http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11340.htm .

MOLIÈRE. Escola de mulheres. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p.10.

PERROT,  Michelle. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p.186.

PLATÃO. Diálogos: Timeu, Critias, o Segundo Alcebíades, Hipias Menor. Belém: UPPA/GEU, 1986, p. 154..

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou da Educação. São Paulo: Difusão Européia do Livro,  1968, p. 490.

WOOLF, Virgínia. Kew gardens; O status intelectual da mulher; Um toque feminino na ficção; Profissões para mulheres. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, p.36.


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[1] Talvez a exceção seria Esparta, menos por causa do reconhecimento da igualdade de direitos entre os gêneros e mais em função de sua característica eminentemente militar. As espartanas podiam participar da vida pública em praticamente todas as esferas, inclusive no exército e na política.


[2] Rousseau, no seu Livro Quinto, em que aborda sobre Sofia ou a Mulher, inaugura o discurso da mulher como “anjo do lar”, “santa” descrevendo como deveria ser a relação entre o homem e a mulher, (ROUSSEAU, 1968:432), e WOOLF, aborda que a mulher precisa matar o “anjo do lar” para conquistar outros espaços, (WOOLF, 1997: 43).

[3] São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher: a violência física, sexual, psicológica, moral e patrimonial, segundo a Lei Maria da Penha - 11.340/2006 (LEI ORDINÁRIA) 07/08/2006. http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11340.htm
Doutoranda em Educação na Universidade de Osnabrueck – Alemanha

http://www.espacoacademico.com.br/070/70esp_graupe.htm

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