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sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

FERREIRA GULLAR - 62 ANOS DE POESIA



Considerado pela crítica como o mais importante poeta brasileiro vivo, José Ribamar Ferreira, o Ferreira Gullar, está concluindo seu 15º livro de poemas:“Em alguma parte alguma”, que será lançado este ano, quando o autor completará 80 anos. Jornalista, crítico de arte, dramaturgo, ensaísta, apresentador de TV, Gullar é um multimídia e tem participação decisiva na cultura brasileira nos últimos 55 anos.

Ele foi um dos fundadores dos movimentos Concretista e Neoconcretista de literatura e artes plásticas, participou da reformulação estética e conteudística do Jornal do Brasil no final da década de 50. Atuou, também, como presidente do Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE), nos anos 60. O CPC teve grande influência em algumas tendências do teatro, do cinema, da literatura nacional e importante militância na resistência ao golpe militar de 1964 e à ditadura que o sucedeu.

No rol de suas criações poéticas, destacam-se “Poema sujo”, considerado uma das obras-primas da literatura latino-americana, “A luta corporal”, “Dentro da noite veloz”, “Barulhos”, “Muitas vozes”, entre outros títulos importantes. Alguns desses livros foram traduzidos para o inglês, o espanhol, o alemão e o holandês. Ex-integrante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) – filiou-se em 1º de abril de 1964, dia do golpe de Estado -, Gullar, como outros intelectuais opositores àquela ordem política, foi perseguido e obrigado a exilar-se no exterior. Viveu, nesse período, na União Soviética, no Chile, no Peru e na Argentina.

Nascido em São Luis, capital do Maranhão, o poeta vive no Rio de Janeiro há 58 anos. Nesta entrevista, Gullar fala um pouco de suas atividades literárias, políticas, artísticas e de sua visão de mundo.


Você é considerado o mais importante poeta brasileiro contemporâneo e o seu próximo livro é esperado com expectativa. Como se sente sendo tão reverenciado?

Gullar – Essa coisa de melhor poeta é opinião de algumas pessoas, não é unânime. Evidentemente, fico feliz que tenham meu trabalho em tão alta conta. Os adjetivos, comentários sobre minha obra e a expectativa sobre o meu próximo livro, entendo-os como coisa natural, consequência de todo trabalho que realizei. Estou com 79 anos e metido com isso desde os 17 anos. É produto de uma entrega de vida inteira à poesia, à arte.


Além de poeta você é dramaturgo, ensaísta, trabalhou em rádio, televisão.

Como consegue lidar com meios e linguagens tão diferentes?

Gullar – Tenho certa facilidade em me ajustar às coisas. Acredito no trabalho e no aprendizado. Evidentemente, minha produção não tem a mesma qualidade nesses diferentes meios. Grande parte do que fiz foi para ganhar a vida, porque a poesia não dá camisa a ninguém. Se eu fosse viver de poesia, tinha morrido de fome.


Por que decidiu vir para o Rio de Janeiro?

Gullar – Eu tinha 20 anos, estava sufocado, tinha necessidade de participar da vida moderna, me sentia marginalizado, fora do mundo. Tinha curiosidade pela pintura, pela literatura, pela poesia, pelo teatro e em São Luis não acontecia nada. Livro era uma dificuldade. Pintura, então, que era minha paixão, não existia.



Deixou o parnasianismo em São Luis e veio namorar o modernismo no Rio?

Gullar – Não. Aprendi a fazer poesia como parnasiano, mas lá mesmo em São Luis, ao tomar conhecimento da poesia moderna, entendi que não era o caminho e passei a estudar e fazer poesia moderna. E fui a uma escala tal de exigência e de busca, que em pouco tempo estava arrebentando a linguagem, fazendo uma poesia que voltava a ser anacrônica à poesia brasileira que se fazia então.


De que maneira?

Gullar – Nesse momento, a poesia moderna, que era a da Geração de 45, tinha se transformado em poesia clássica, acadêmica, voltada ao soneto, à rima. Carlos Drummond, Jorge de Lima, Murilo Mendes, Vinícius de Moraes passaram a fazer sonetos. João Cabral de Melo Neto, figura mais importante de 45, é 100% formalista. Ou seja, uma poesia totalmente diferente da do meu livro “A luta corporal”, publicado em 1954, que é um livro totalmente explosivo.



“Em alguma parte alguma” já está concluído?

Gullar – Meus livros nascem à medida em que os poema vão surgindo. A obra vai tomando forma aos poucos, vão aparecendo caminhos que definem os rumos dos poemas. Não sou como alguns poetas que programam à própria obra. Que definem o tema antecipadamente. Comigo é diferente, surgem indagações, perplexidades que encaminham meu projeto poético. É verdade que assumo o controle do processo à medida que os temas vão se manifestando. Maria Amélia (editora da José Olympio) tem me pressionado. Respondo-lhe que o livro é que tem que dizer quando está pronto. Mas, digamos, já estamos na etapa final. (risos)


Como é seu processo de construção poética?

Gullar – Minha poesia nasce do espanto. Pode ser de uma coisa trivial, mas que desvele um lado inesperado da realidade, da vida. A partir deste fato se desencadeia um processo, um estado de espírito que é específico. A sociedade, o ser humano vivem regidos por regras, no entanto elas se rompem quando o espanto se sucede. Entramos em outro estado, que não é divino nem supranormal. É um estado especial de comunhão com o cosmo, onde a imaginação e a linguagem se tornam mais livres, mais amplas. Eu produzo muita prosa, mas pouca poesia. A poesia, para mim, é muito rara porque surge inesperadamente e depende desse estado.


É como uma epifania joyceana?

Gullar – James Joyce era torturado por sua formação jesuítica, eu não. Mas é por aí. É por isso que não posso escrever poesia quando quero, pois não posso provocar esse estado.


Poema Sujo é seu livro mais celebrado, de que maneira o concebeu?

Gullar – Eu estava exilado na Argentina, depois de ter passado por União Soviética, Chile e Peru. Perón (Juan Domingo) havia morrido e assumira a presidência Isabelita, sua mulher. O país vivia uma instabilidade política muito grande e circulavam boatos de que haveria um golpe de Estado. Quando escrevi “Poema sujo”, a embaixada brasileira havia cancelado meu passaporte, eu não podia ir a lugar algum, havia ditaduras por todas as partes: Chile, Uruguai, Paraguai, Bolívia. Falava-se, também, da ação dos militares além das fronteiras nacionais, no que depois ficou conhecido como “Operação Condor”. Eu via a morte como coisa iminente. Então pensei, vou escrever a última coisa da minha vida, tudo que tenho a dizer, vou dizer agora. Por isso o poema é tão extenso, pois é um resgate das experiências afetivas, literárias, políticas, artísticas e de minha infância em São Luis. Quando conclui o livro, em outubro de 1975, Vinícius de Moraes o trouxe para o Brasil, o trabalho circulou clandestinamente por um tempo e depois o Ênio da Silveira o editou. Lançaram em 1976, em uma noite de autógrafos sem a presença do autor. (risos)


Os teóricos apontam como principais características do Pós-modernismo a fragmentação da realidade, a espacialidade da História e a negação da utopia. Qual é sua percepção desse movimento cultural?

Gullar – Entendo pouco desse negócio de pós-modernismo. Não me detenho a pensá-lo. No fundo, é mais uma categoria forçada. Muitas dessas características estavam presentes em obras e manifestações anteriores. É simplesmente desdobramento e ampliação de uma coisa que foi feita sem esse nome, como conseqüência desse processo de vanguarda e assimilação da vanguarda. O pós-modernismo é um movimento que retroage, pois não vai adiante nas conseqüências externas da vanguarda. Ele volta ao texto, por exemplo. Com todas suas características positivas ou negativas, ele não vai adiante do Finnegan’s wake , do James Joyce, vai?


Você tem feito críticas ácidas aos rumos tomados pelas artes plásticas.

Gullar – As manifestações de vanguarda surgiram em todos os campos a partir do final do século XIX e início do século XX. Na literatura, nas artes plásticas, em diferentes campos houve movimentos propondo novos caminhos estéticos . O teatro, a literatura, a música, o cinema absorveram as experiências de vanguarda e voltaram enriquecidos ao campo normal. Cito muito o exemplo do Joyce, pois o Finnegan’s Wake é um livro limite. Ele revela, numa carta, que sua próxima obra seria clara como água, porque, evidentemente, depois daquilo não há como ir adiante. Seria a incomunicabilidade total.

Imagine se o romance, como as artes plásticas, teimasse em levar adiante uma experiência esgotada. Não teria havido William Faulkner, Borges, Cortázar, George Orwell, Camus, Sábato, Drummond, Hemingway, Guimarães Rosas... Teria acabado a literatura. Hoje, o cara corta um cartão, põe dentro de uma caixa de vidro com holofotes, expõe, e a Bienal de Veneza o premia. O pós-modernismo é arte conceitual?

Estou cansado de tanto enquadrar as coisas em categorias. Falo a você, com franqueza, para mim o quadro cubista do Picasso só vale porque ele é um bom quadro, não porque ele é cubista.


Em que circunstâncias ocorreu seu exílio?

Gullar - Em dezembro de 1968, com a radicalização do regime militar e a decretação do AI-5, fui detido junto com Caetano Veloso, Gilberto Gil e outros artistas e intelectuais. Em 1969, eu respondia a um Inquérito Policial Militar, mas em liberdade. Mas um colega foi detido e torturado, revelando muitas coisas sobre o partido e sobre mim. Então o PCB decidiu que eu deveria entrar para a clandestinidade, pois poderiam me torturar para que eu confessasse coisas que eu não sabia. Podiam até mesmo me assassinar. Eu tinha um cargo de direção no PCB, mas era quase simbólico, honorífico. Ademais, invadiram minha casa, ameaçaram minha família, meus filhos. Saí do país pela fronteira com o Uruguai, atravessei o Rio da Plata até Buenos Aires, de onde embarquei para Paris e de lá para Moscou.


Como o ex-militante do PCB vê esta crise do capitalismo, ainda acredita no comunismo?

Gullar - Imaginar que o ser humano, passivamente, vai se deixar manobrar até chegar à sua anulação total ou ao seu extermínio, não existe. Aquela imagem do “grande irmão”, do George Orwell, não vai acontecer. O ideal de justiça é inerente ao ser humano e jamais morrerá. O ser humano não é afeito à injustiça. Pode até praticá-la, mas não a aceita. Em relação ao capitalismo: ele vive em crises cíclicas, mas isto não significa que vai acabar, como alguns predizem. Ele tem a vitalidade e o catastrofismo da natureza. O comunismo é uma utopia e o socialismo uma etapa para se chegar até ele. O socialismo é uma invenção humana para introduzir ética, solidariedade em um sistema destituído disso. Ele cumpriu o seu papel, o mundo mudou muito da publicação do “Manifesto comunista”, em 1848, até hoje. O capitalismo era uma selvageria muito mais inominável do que agora, tiravam crianças do orfanato para trabalharem 12 ,16 horas por dia e depois elas morriam à míngua, tuberculosas. O socialismo esgotou suas possibilidades efetivas não apenas no que degenerou: na sua própria idealização existem erros.


Nos seus últimos livros, principalmente em “Barulhos”, você está muito reflexivo e o tema da morte é recorrente. Como lida com essa questão?

Gullar – É isso mesmo, acaba. A vida é minha consciência de estar vivo. Na hora que se apagar minha consciência, eu nunca existi para mim. Eu passarei a existir para os outros, os que sobrevivem. Escritores como Cervantes e Shakespeare existem para nós, pois como acabou a consciência deles - que era eles - eles nunca existiram. Acho que o sentido da vida são os outros. O que você faz, imagina, é uma invenção. A própria vida é uma invenção nossa e a transferimos para o outro como contribuição, esforço de cada um para construir o que se chama de sociedade humana, de civilização. Fiz um poema para o meu filho que morreu com 32 anos que diz assim: “ Os mortos veem o mundo pelos olhos dos vivos “. A morte é um tema constante na minha poesia e, realmente, estou mais reflexivo nos meus últimos livros.


Embora você seja um homem otimista...

Gullar – Ser pessimista é a coisa mais fácil que tem: você vai ficar velho, brocha, morrer, e isso é natural. Mas o que importa na vida não é ser o natural, temos que lutar contra o natural para afirmar o ser humano, mudar o mundo e fazer as coisas caminharem. Deixar-se ir pelo automatismo da vida não tem sentido. Sou otimista no sentido de acreditar que você tem que construir a vida, que ela não é uma coisa externa a nós. Não falo do otimismo diletante, mas da obrigação com o otimismo, não há outra saída.


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Postado por Carlos Silva Miranda às Segunda-feira, Janeiro 04, 2010

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