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segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

AQUI ERA O PAÍS DO FUTEBOL

“Brasil está vazio na tarde de domingo, né?
olha o sambão, aqui é o país do futebol
No fundo desse país
ao longo das avenidas
nos campos de terra e grama
Brasil só é futebol

(Milton Nascimento/Fernando Brant)
Já vão longe os tempos em que, como dizia o tema do filme Tostão, a Fera de Ouro, as ruas do Brasil ficavam vazias (como a av. Atlântica nesta foto do dia da decisão do Mundial de 1950) e os estádios lotados nas tardes de domingo.

Os motivos vão desde a violência das torcidas até a disponibilização de muitas outras opções de entretenimento, passando pelo agravamento da luta pela sobrevivência.

Mas, para aqueles que realmente amam o futebol, o principal motivo é outro: já não existe espetáculo. A tônica passou a ser muita transpiração e quase nenhuma inspiração.

Na fase de ouro do futebol brasileiro, nossos grandes craques exibiam aqui mesmo seu talento, preferindo ser bem pagos em casa do que magnificamente pagos no exterior.

Um ou outro, como Didi, se deixava seduzir pelo canto das sereias. Mas, tínhamos Pelé, Garrincha, Nilton Santos, Gerson, Tostão, Rivelino e outros que tais enchendo nossos olhos nas tardes de domingo.

De 1970 para cá, entretanto, o futebol foi se tornando, cada vez mais, mercadoria. E os interesses econômicos impuseram sua lógica perversa, a mesma que outrora relegava o Brasil à condição de exportador de café e importador de produtos industrializados.

Com a famigerada Lei Pelé (rendição incondicional ao maior poder de fogo dos grandes clubes estrangeiros), o Brasil hoje não consegue segurar suas revelações nem por uma temporada completa. São vendidas mal começam a desabrochar.

Então, os grandes clubes brasileiros hoje montam seus times com maioria de jogadores limitados e alguns craques veteranos que retornam do exterior após terem virado bagaços, mais os meninos saídos das categorias de base e que são colocados na vitrine para atraírem compradores.

Alguns desses bagaços ainda conseguem ter algo próximo a um canto do cisne, como o Ronaldo (que o humorista José Simão apelidou de Ronalducho...).

Mas, isto se dá apenas porque os raros lampejos de seu brilho de outrora são suficientes para os destacarem dos cabeças-de-bagre e carregadores de piano que com eles dividem a cena.

Fornecemos a matéria-prima futebolística que será processada lá fora e depois pagamos às redes estrangeiras para receber as imagens do verdadeiro futebol brasileiro: aquele que Ronaldinho Gaúcho e Alexandre Pato jogam na Itália, Kaká e Luís Fabiano na Espanha, etc.

De quebra, fica esse péssimo exemplo dado aos brasileiros: o dinheiro compra tudo.

O penúltimo craque que se dispôs a abrir mão de uma oferta mirabolante em nome de valores mais nobres foi Sócrates, em 1984: durante um comício das diretas-já no Anhangabaú (SP), o doutor comprometeu-se publicamente a, caso fosse aprovada a emenda Dante de Oliveira, recusar a proposta da Fiorentina e permanecer no Brasil para contribuir na redemocratização.

A infâmia dos parlamentares não só nos privou de uma saída da ditadura pela porta da frente, como encerrou a grande fase de um dos nossos supercraques e, sem dúvida, o melhor cidadão que o futebol brasileiro já projetou.

E temos o caso mais recente de Adriano, que preferiu o calor de sua gente à frieza da moeda (mas, como a história só se repete em farsa, ele já parece disposto a refazer sua opção...).

Exceções à parte, a regra é de que o homo ethicus e o homo ludicus não têm mais lugar em nossa terra arrasada. Predomina de forma avassaladora o homo economicus.

Então, teremos nossa noite de Cinderela durante a Copa, mas a carruagem vai virar abóbora logo em seguida, no Brasileirão – pois, persistindo as tendências atuais, o de 2010 será tão ruim quanto o de 2009, provavelmente o mais nivelado por baixo de todos os tempos.

LEVEZA ARTÍSTICA x CARRANCA BELICOSA

Daqui a alguns meses a pátria estará novamente de chuteiras, o asfalto e calçadas com desenhos dos símbolos nacionais (alguns rebuscados, outros singelamente imperfeitos), as bandeiras tremulando nas janelas das casas e dos carros.

Mas, essas febres de sociedade consumista me assustam. Como disse o grande Raulzito, "mas que sujeito chato sou eu/ que não acha nada engraçado".

Um acontecimento, um único acontecimento, monopolizando todas as atenções durante certo período!

Como os obesos se empanturram de comida, a sociedade se empanturra de um drama qualquer. Consumo compulsivo, pantagruélico. Doentio, em suma.

Depois, sobrevém a saturação de quem absorveu uma dose cavalar de mesmice: ninguém aguenta mais falar sobre aquilo.

Só que logo surge qualquer outro episódio e deflagra o mesmo processo.

E todos são arrastados pela nova onda, como o foram por todas as anteriores e o serão pelas posteriores: zumbis do sistema.

É tudo forçado, inautêntico.

Parece-me que o homem-massa curte até aquilo de que não gosta por medo de ser colocado à parte do rebanho.

Em suma, ainda parafraseando o maluco beleza: eu acho tudo isso um saco.

Ou pior ainda, um tanto quanto perigoso. Vêm-me à lembrança aquelas grandes manifestações de culto a Hitler e Mussolini.

Mas, não é disto que quero falar, mas do antes. Pois, houve um antes:
  • antes que sobreviessem a padronização, a domesticação e a banalização;
  • antes que o capitalismo transformasse ouro em excremento, como faz com tudo;
  • antes que os esquemas rígidos restringissem a fantasia e a criatividade do futebol;
  • antes que a competitividade substituísse a leveza artística pela carranca belicosa;
  • antes que os torcedores virassem meros coadjuvantes do espetáculo que passou a priorizar telespectadores, marketing e merchandising...
Antes de tudo isso, foram escritas no futebol páginas bonitas de nossa gente.

É delas que falarei a partir da próxima semana, começando pela primeira da qual tenho remota lembrança: a Copa do Mundo de 1958.

Obs.: artigo inicial da série CELSO LUNGARETTI / RECUERDOS DOS MUNDIAIS, que começou a ser publicada neste domingo no Congresso em Foco e será sempre disponibilizada na 2ª feira para todos os que também a quiserem publicar ou repassar.

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