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sábado, 24 de outubro de 2009

Pequenos ditadores

Num texto pouco lembrado, “Carta sobre o Stalinismo”, Lukács identificou o autoritarismo na URSS sob domínio de Stalin a uma espécie de pirâmide, em cujo vértice estava o ditador, e que, “alargando-se sempre, na direção da base, compunha-se de “pequenos stalins”, os quais vistos de cima, eram objetos, e vistos de baixo, eram os produtores e mantenedores” [da pirâmide].*

As ditaduras políticas são a expressão da imposição violenta, quando a política assume abertamente a sua face mais trágica e aterrorizante, o poder legitimado pela força bruta. As palavras do pensador húngaro mostram que mesmo os sistemas políticos mais opressivos são criações humanas e também se legitimam pela adesão consciente ou passiva. Os ditadores não resistiriam muito tempo sem o uso permanente do terror – toda sociedade ditatorial é governada pelo medo. Mas também não sobreviveriam sem o apoio da pirâmide, isto é, dos pequenos ditadores que reproduzem e mantém a cultura e poder autoritários.

Costumamos pensar o autoritarismo sob a perspectiva do Estado, enquanto opressão do poder político. Muitas vezes esquecemos que a sociedade também apresenta traços e cultura autoritários. No Brasil, por exemplo, persistem manifestações autoritárias que herdamos do passado colonial e escravista. A cultura autoritária, por sua vez, se manifesta no nível micro, nas relações cotidianas na família, no trabalho e na universidade pública. Talvez seja um paradoxo que a instituição que deveria favorecer a crítica, o diálogo e a liberdade, seja também o locus onde as relações de poder, a despeito da fachada democrática e da racionalidade burocrática e científica, apresentem caráter opressivo. Nas universidades por este Brasil afora há quem, eleito ou não, ocupe postos chaves na estrutura burocrática e age como pequeno ditador.

Mais paradoxal ainda é estes indivíduos se apresentarem como revolucionários. Eles se imaginam profetas do novo mundo e parecem crer que os cargos são trincheiras da luta pelo bem da humanidade, ainda que esta desconheça. Amam a humanidade, mas são incapazes de respeitar os que compartilham o mesmo o ambiente. Atuam como feudais, erguem muralhas e fossos de proteção. São protetores do dogma e não toleram os infiéis, os que teimam em não segui-los. Agem autoritariamente e transformam o cargo em meio de proteção da “panelinha”, dos que professam a mesma ideologia. Usam o poder que a função confere para dificultar ou interditar o acesso dos “outros” aos direitos e recursos públicos. Não é surpresa que, em muitas das universidades, o ambiente de trabalho seja estressante e muitos estejam esgotados diante das relações (des)humanas.

Não surpreende que um conservador seja autoritário. Também não é mistério que um liberal seja conservador. Afinal, há muito que o liberalismo se limita a defender o status quo. Mas é surpreendente que alguém que se considere revolucionário tenha em relação aos colegas de trabalho uma postura, conservadora, autoritária e desrespeitosa. Ou é ingenuidade surpreender-se?!

De qualquer forma, é inadmissível manifestações permeadas pelo sarcasmo quanto ao trabalho e tema de pesquisa do outro. É inadmissível, por exemplo, o uso do poder de chefia para prejudicar os que não são da “turma”. Há quem fale em mudar o mundo, mas não consegue transformar nem mesmo as relações de poder do pequeno mundo do seu departamento.

Os indivíduos que agem como pequenos ditadores, os “pequenos stalins”, são os sustentáculos da ordem política e social autoritária. Suas ações no nível micro expressam bem o que são capazes de fazer se conquistarem o poder do Estado e da sociedade. Marx nos livre de tais indivíduos!

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* George Lukács. Carta sobre o Stalinismo. In: Temas de Ciências Humanas, nº 1. São Paulo, Editorial Grijalbo, 1978.

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