Páginas

quarta-feira, 18 de março de 2009

WESTERN ITALIANO: ERA UMA VEZ A REVOLUÇÃO

Celso Lungaretti (*)
O CINEMA COMERCIAL JÁ ADMITIU ABORDAGENS REVOLUCIONÁRIAS

Muitos dos que hoje se deslumbram com as estilizações de duelos e a extraordinária trilha musical de Kill Bill (1), ignoram que as primeiras inspiraram-se diretamente nas coreografias dos filmes do diretor Sergio Leone, enquanto várias músicas foram compostas há quatro décadas atrás, por Ennio Morricone, para os bangue-bangues italianos.

É que Quentin Tarantino estava prestando um comovido tributo a esses dois mestres, que devem ter-lhe inspirado sonhos e brincadeiras nos seus tempos de menino.

Nascido em meados da década de 1960, o spaghetti-western lavou a alma de todos nós que gostávamos dos bangue-bangues, mas não da caretice dos estadunidenses.

Teve surpreendente sucesso nas bilheterias: O Dólar Furado (2), p. ex., chegou a ficar em cartaz por cerca de um ano num cinema de São Paulo. Isto se deveu não só a ter ocupado um espaço vazio, já que os norte-americanos haviam deixado de fazer westerns, como também a haver trazido um novo enfoque e uma nova moldura para o gênero.

Tirando obras de exceção como Matar ou Morrer (3), Sem Lei e Sem Alma (4), O Matador (5), Estigma da Crueldade (6) e Rastros do Ódio (7), os faroestes made in USA de até então tinham o insuportável defeito de tentarem nos impingir aquela ladainha da luta eterna do Bem contra o Mal -- um tédio!

O mocinho não fumava, não bebia, não praguejava e nem trepava. A mocinha era recatada donzela. O xerife, pachorrento mas digno. Os índios, selvagens bestiais que tinham de ser tirados do caminho para não atrapalharem o progresso. Os mexicanos, beberrões subumanos.

Mesmo no mato, conduzindo boiada, o mocinho tinha a decência de manter-se sempre limpo e escanhoado. Bah!

O western italiano surgiu meio por acaso. A indústria cinematográfica italiana conseguira nos anos anteriores faturar uma boa grana com filmes épicos e mitológicos. Hércules, Maciste, Ursus, Golias, fundação de Roma, guerra de Tróia, etc. O filão, entretanto, estava esgotando-se e a Cinecittà saiu à cata de um novo produto.

Sergio Leone, então com 34 anos, tinha começado a carreira no neo-realismo italiano (como assistente de direção e diretor de segunda unidade), mas não conseguira alçar-se à direção. Era difícil abrir um espaço entre mestres como Vittorio De Sica, Lucchino Visconti, Pier Paolo Pasolini, Federico Fellini, Michelangelo Antonioni, etc.

Então, entre atuar eternamente à sombra dos medalhões do cinema de arte e mostrar seu trabalho no cinema dito comercial, escolheu a segunda opção. Depois de dirigir os épicos Os Últimos Dias de Pompéia (8) e O Colosso de Rodes (9), teve a sorte de estar no lugar certo, no momento exato, para dar o pontapé de partida num novo ciclo.

Adaptou para o Oeste a história de Yojimbo (10), um filme de Akira Kurosawa sobre samurai que açula a discórdia entre dois senhores feudais para prestar-lhes serviço alternadamente, sem que percebam seu jogo duplo. O que Leone fez em Por Um Punhado de Dólares (11), basicamente, foi mudar a ambientação e colocar um pistoleiro caça-prêmios no lugar do samurai.

O protagonista também teve aí seu grande golpe de sorte. Clint Eastwood não emplacara em Hollywood como mocinho, ficando relegado a papéis secundários em séries de TV e a filminhos classe “B” e “C”.

Leone percebeu nele um bom anti-herói. Compôs seu personagem (o Estranho Sem Nome) com barba rala, chapéu sobre os olhos, charuto na boca, fala arrastada e um poncho. Com isto, acabou alçando-o ao estrelato e fazendo jus à homenagem que depois Eastwood lhe prestaria, ao dedicar-lhe sua obra-prima Os Imperdoáveis (12).

O que diferenciou o western italiano foi exatamente ter sido feito por cineastas bem diferentes dos tarefeiros hollywoodescos (os ditos artesãos, que se limitavam ao feijão-com-arroz artístico que lhes garantisse o dito cujo gastronômico).

Damiano Damiani, Carlo Lizzani e Sergio Corbucci eram outros talentos com a cabeça feita pelo cinema de arte, assim como o superlativo roteirista Sergio Donatti (aliás, até os grandes diretores Bernardo Bertolucci e Dario Argento chegaram a escrever uma história para western).

Então, não se limitaram a realizar filmes com muita ação e nenhuma vida inteligente; fizeram questão de deixar sua marca, passando mensagens cifradas, dando toques, propondo outra abordagem para o gênero.

Em vez de um palco em que o Bem vence sempre o Mal, o bangue-bangue italiano mostrou o velho Oeste como uma terra de ninguém, primitiva e selvagem, em que todos perseguem seus objetivos como podem.

Evidentemente, há muito mais verossimilhança nesse enfoque do que no norte-americano. O Oeste do século 19 seria algo como o garimpo de Serra Pelada no seu apogeu. Um grotão selvagem e sem lei.

Em vez do herói, o western italiano consagrou o anti-herói: barbudo, desgrenhado, com roupas sinistras, muitas vezes um caça-prêmios, quase sempre um mau-caráter. No fundo, só se diferenciando dos bandidos por agir sozinho enquanto os outros atuam em bando.

Lembrem-se: era a década de 1960, quando havia um imenso desencanto com a ordem estabelecida. Rebeldes eram tudo que queríamos ver. Não suportávamos mais os heroizinhos c.d.f. de Hollywood, daí termos sido imediatamente cativados pela alternativa européia, os Djangos, Sabatas e Sartanas (os únicos mocinhos nos moldes estadunidenses eram os protagonizados por Giuliano Gemma).

E, enquanto os poderosos viraram vilãos, os índios e os peões mexicanos passaram a ser mostrados como vítimas e heróis. Afinal, vários cineastas italianos tinham inclinações revolucionárias, mas não havia nada revolucionário para destacar nos EUA do século 19.

A solução foi transferir a ação para o efervescente México, como em Quando Explode a Vingança (13), Gringo (14), Reze a Deus e Cave Sua Sepultura (15), Réquiem Para Matar (16), Companheiros (17) e O Dia da Desforra (18).

Toques esquerdistas, sim, eles podiam inserir em filmes ambientados nos EUA:
o próprio Django (19), no qual os vilãos são flagrantemente inspirados na Ku-Klux-Khan;
Quando os Brutos Se Defrontam (20), reflexão sobre a gênese de líderes oportunistas;
O Especialista (21), que coloca jovens rebeldes (referência às barricadas francesas de 1968) em ação no Oeste;
O Vingador Silencioso (22), denunciando o massacre de Johnson Country, quando centenas de imigrantes eslavos foram dizimados pelos barões de gado do Wyoming – o mesmo episódio histórico que seria depois retratado na superprodução O Portal do Paraíso (23);
e o extraordinário Três Homens em Conflito (24), com algumas das mais marcantes seqüências antibelicistas do cinema em todos os tempos.
Uma última característica notável foi libertar a trilha musical da tirania do country. Não mais o que realmente existia nos EUA do século retrasado, como violões, violinos, banjos, gaitas e sanfonas, mas também flauta, saxofone, órgão, sintetizadores, castanholas -- tudo que se harmonizasse com o clima daquela seqüência, pouco importando se tais instrumentos eram encontrados ou não no velho Oeste.

Para completar, o uso criativo de sinos, caixas de música, assobios e outros achados. Morricone é, com certeza, o melhor criador de trilhas musicais de todos os tempos.

FILMES INESQUECÍVEIS



Quando Explode a Vingança está entre os melhores filmes do Leone. É, na verdade, o segundo da trilogia era uma vez, que inclui Era Uma Vez No Oeste (25) e Era Uma Vez Na América (26). Deveria ter-se chamado Era Uma Vez A Revolução, mas acabou com um título que em italiano significa "abaixe a cabeça" e, nos EUA, "agache-se, otário!".

Na visão do Leone, os verdadeiros heróis da revolução são os anônimos homens do povo, enquanto os líderes acabam sempre traindo a causa -- seja no México (o médico interpretado por Romolo Valli) ou na Irlanda (o dirigente do IRA que é amigo do John/James Coburn).

Foi feito em 1971, quando os movimentos revolucionários pipocavam na Itália, radicalizando-se progressivamente. Parece expressar o desencanto do Leone com o Partido Comunista Italiano e ser um alerta de que as Brigadas Vermelhas e congêneres teriam destino trágico.

Um lance interessante é mostrar de forma totalmente desumanizada o comandante das forças contra-revolucionárias: ele é visto escovando repulsivamente os dentes, chupando um ovo, olhando pelo binóculo. Leone não lhe concede sequer a dignidade da fala. De sua forma sutil, expressa o desprezo absoluto que tinha pela direita troglodita.

Outra grande sacada do Leone é ressaltar que a História nunca fixa a versão correta dos fatos. A frase que o Irlandês sempre repete, sobre "os grandes e gloriosos heróis da revolução", é um primor de sarcasmo.

* * *

Três Homens em Conflito foi, claramente, o divisor de águas na carreira de Sergio Leone, o momento em que ele mostrou ser muito mais do que um (brilhante) artesão.

Até então, em Por um Punhado de Dólares introduzira a figura do anti-herói no centro da trama; a amoralidade básica dos tipos e das situações; a apresentação criativa dos letreiros iniciais, valorizada com vários recursos, inclusive o uso de animação; a nova concepção musical que Morricone trouxe para os westerns; e um dos personagens mais emblemáticos do bangue-bangue à italiana, o pistoleiro oportunista interpretado por Clint Eastwood.

Depois, em Por Uns Dólares a Mais (27), todas essas características foram desenvolvidas e aprimoradas. É um filme muito melhor do que o anterior, mas, paradoxalmente, não apresentou novidades significativas.

A única que vale a pena citar é a colocação de dois personagens em destaque, em vez de um. A partir daí, os filmes de Leone trariam sempre essa dupla de anti-heróis ocupando o espaço dos antigos mocinhos. Depois dos personagens interpretados por Clint Eastwood/Lee Van Cleef em Por Uns Dólares a Mais, tivemos Charles Bronson/Jason Robards (Era Uma Vez no Oeste), Rod Steiger/James Coburn (Quando Explode a Vingança) e Robert De Niro/James Woods (Era Uma Vez na América).

Aí, finalmente, estava pronto para seu tour-de-force: Três Homens em Conflito foi a obra em que Leone definiu e afirmou seu estilo, embutindo no cinema de ação discussões mais profundas, sem prejuízo do entretenimento propriamente dito. É um tipo de obra em camadas. De acordo com sua sensibilidade, o espectador pode se divertir apenas com o básico ou captar os muitos toques subjacentes.

E é grandiosa a crítica que Leone fez ao belicismo, com algumas das seqüências mais comoventes que o cinema já apresentou: o oficial bêbado sem coragem para destruir a ponte, a orquestra do campo de prisioneiros tocando para abafar os ruídos da tortura, o jovem soldado agonizante a quem o Estranho Sem Nome dá seu charuto.

Nos três filmes seguintes ele dissecaria a lenda (vinganças) e a realidade (construção da ferrovia) no Velho Oeste, as verdades e mentiras de uma revolução; e a transição da época glamourosa do aventureirismo para a hegemonia insípida das grandes organizações.

Foi o cineasta que conseguiu ir mais longe na proposta de mesclar entretenimento e reflexão, saindo-se tão bem nas bilheterias quanto em termos de qualidade cinematográfica.

* * *


Keoma (28) foi o canto do cisne do western italiano. E encerrou o ciclo com extrema dignidade. Trata-se daquela única obra-prima que, às vezes, um diretor convencional faz na vida, como que para provar que tinha talento para vôos maiores.

O subtexto é riquíssimo:
a briga entre os quatro irmãos remete, evidentemente, a Freud e suas teorias sobre a horda primitiva;
o nascimento da criança num estábulo é um paralelo bíblico, assim como a crucificação do herói;
a presença da velha índia nos momentos culminantes do filme vem da mitologia grega, ela é um tipo de deusa do destino;
o herói errante em busca de um desígnio que justifique sua vida também tem inspiração mitológica;
a peste se constituiu num elemento bíblico e mitológico ao mesmo tempo, além de estabelecer uma ponte com o escritor Albert Camus (A Peste, O Estrangeiro), cujas obras são uma óbvia referência no delineamento do personagem principal;
finalmente, Castellari reverencia seus mitos cinematográficos -- Keoma é filho de Shane, o herói protagonizado por Alan Ladd em Os Brutos Também Amam (29), enquanto a presença de Woody Strode no elenco constitui uma homenagem a John Ford, de quem era um dos atores prediletos.
E não foi só Castellari quem se superou, atingindo uma qualidade de que ninguém o suporia capaz. A dupla de compositores Guido e Maurizio de Angelis fez uma trilha musical extraordinária, capaz de rivalizar com as melhores de Morricone. O contraste do baixo com a soprano chega a nos arrepiar, as letras se casam maravilhosamente com o filme.

Em suma: trata-se de um clássico ainda não reconhecido.

Kill Bill: Vol. 1, 2003, e Kill Bill: Vol. 2, 2004, d. Quentin Tarantino
Un Dollaro Bucato, 1965, d. Giorgio Ferroni
High Noon, 1952, d. Fred Zinneman
Gunfight at O.K. Corral, 1957, d. John Sturges
The Gunfighter, 1950, d. Henry King
The Bravados, 1958, d. Henry King
The Searchers, 1956, d. John Ford
Gli Ultimi Giorni di Pompei, 1959, creditado, entretanto, a Mario Bonnard
Il Colosso di Rodi, 1961, d. Sergio Leone
Yojimbo, 1961, d. Akira Kurosawa
Per un Pugno di Dollari, 1964
Unforgiven, 1992, d. Clint Eastwood
Giù la Testa, 1971, d. Sergio Leone
El Chuncho, Quién Sabe?, 1967, d. Damiano Damiani
Prega Dio... e scavati la fossa, 1968, d. Edoardo Mulagia
Requiescant, 1967, d. Carlo Lizzani
Vamos a Matar, Compañeros, 1970, d. Sergio Corbucci
La Resa dei Conti, 1966, d. Sergio Sollima
Django, 1966, d. Sergio Corbucci
Faccia a Faccia, 1967, d. Sergio Sollima
Gli Specialisti, 1969, d. Sergio Corbucci
Il Grande Silenzio, 1968, d. Sergio Corbucci
Heaven’s Gate, 1980, d. Michael Cimino
Il Buono, Il Brutto, Il Cattivo, 1966, d. Sergio Leone
C’Era Uma Volta il West, 1968, d. Sergio Leone
Once Upon a Time in América, 1984, d. Sergio Leone
Per Qualche Dollaro in Più, 1965, d. Sergio Leone
Keoma, 1976, d. Enzo G. Castellari
Shane, 1953, d. George Stevens

* Jornalista e escritor, mantém os blogs
http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/

http://naufrago-da-utopia.blogspot.com/

Nenhum comentário:

Postar um comentário